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Exercício fiscalizatório no âmbito de contrato de concessão e o dever de cooperação existente nas relações público-privadas

Não se nega a importância de um dever de cooperação entre o concessionário e o poder concedente para a fiscalização da utilização dos serviços públicos por parte dos usuários.

20/1/2023

Diferentemente de relações meramente privadas, a natureza finalística do Estado implica no reconhecimento de que todo ato editado pelo Poder Público tem sua validade jurídica condicionada à concretização do interesse público1. Por essa razão, o direito administrativo, e consequentemente os seus institutos, desenvolvem-se a partir de um vetor interpretativo e axiológico de precaução contra a captura do Estado e contra a possibilidade de sua autofagia2. Exemplos não faltam na redação constitucional, submetidos por sua vez aos princípios da impessoalidade e da moralidade que figuram no caput do art. 37 do Texto de 1988.

Ao contrário do que se pode pensar, essa lógica não se conecta à estruturação de um Estado de cunho autoritário, mas tem reflexos até mesmo na adoção de formas inspiradas em relações entre particulares3. A figura jurídica das cláusulas exorbitantes do contrato administrativo está umbilicalmente ligada a essa percepção e já não deve atrelar-se a um mero desenvolvimento de um Estado de Polícia, compreendido tão somente sob a ótica do poder, mas à concretização de valores constitucionais, pela qual cada aparente vantagem do Estado legitimar-se-ia como condição necessária para o melhor exercício das funções públicas4.

Essa perspectiva implica na possibilidade de cooperação válida entre a Administração e os particulares. Embora possa soar paradoxal, é possível perceber que a mesma concretização de valores constitucionais que permite o exercício válido de prerrogativas estatais, quando necessárias, há de realizar-se em um âmbito democrático e republicano, no qual os interesses privados devam ser considerados, em sua dimensão coletiva, com o fim de legitimarem-se os conteúdos das prescrições normativas oriundas da Administração5.

Esses conteúdos podem configurar-se pelos mais distintos objetos. A Constituição Federal, todavia, veiculou um importante recorte metodológico das atividades materiais de fornecimento de utilidades e comodidades, e lhes atribuiu distintos regimes jurídicos. A grande parte delas rotulou como atividades econômicas, desenvolvidas sob normas de direito privado e desempenhadas, em regra, pelos particulares6. Em paralelo, concebeu o conjunto de serviços públicos, de titularidade estatal, desenvolvidos sob regras de direito público e selecionados pelo agente normativo competente em razão de sua estrita importância com necessidades ou conveniências da sociedade7.

Por questão de titularidade, a prestação dos serviços públicos é, em primeiro momento, vedada aos particulares. Para que se viabilize, é necessário o ato de outorga (publicatio) a entidades privadas, cuja validade formal se condiciona à configuração do motivo de necessidade de parceria por parte da Administração Pública. Esse ato, que encontra guarida no teor do art. 175 da Constituição Federal, e que se concebe a partir do contrato de concessão ou de permissão de serviço público, destina-se a atribuir a responsabilidade pela prestação material8 ao outorgado e implica, consequentemente, que o conjunto de regras incidente seja aquele desenvolvido propriamente para os particulares.

Essa conduta gera uma importante consequência jurídica. Como uma balança, que necessita que se pese um dos pratos para trazer o mais leve de volta para o eixo, a Administração deve pesar o controle a posteriori para compensar a flexibilidade conferida ao exercício e, assim, retomar a legitimação na prestação de serviços públicos9. Em razão disso, o constituinte, desde a redação originária, determinou que a lei dispusesse a respeito do regime de fiscalização dos serviços públicos concedidos, no mesmo rol em que determinou que deveriam esses ser prestados de forma adequada.

Em caráter infraconstitucional, a lei 8.987/95, em seus art. 3º e art. 29, I, reforça o dever de fiscalização pelo poder concedente. Em conjunto ao art. 23, VII, determina que tanto a forma de fiscalização das instalações, dos equipamentos, dos métodos e das práticas de execução do serviço, quanto a indicação dos órgãos competentes, fossem cláusulas obrigatórias do contrato de concessão. O art. 30 estabelece que o poder público concedente tenha acesso aos dados relativos à administração, à contabilidade, aos recursos técnicos, econômicos e financeiros do parceiro privado. Este, por sua vez, em razão do art. 31, V, obriga-se a não inviabilizar o dever administrativo de acessar quaisquer obras, equipamentos, instalações integrantes do serviço, bem como seus registros contábeis.

Embora celebrado entre a Administração Pública e o parceiro privado, o contrato de concessão veicula verdadeira relação triangular, caracterizada por sub-relações que conectam o Estado ao usuário e ao concessionário, e estes conectados, por sua vez, em uma relação própria. Pela característica de importância social que envolve o conceito de serviço público, não há como permitir que a outorga aleije o usuário de seu dever de participação da coisa pública. Por consequência, atento à determinação constitucional, o legislador criou mecanismos para que a fiscalização envolvesse não só o desempenho da máquina pública, mas a participação daqueles que seriam titulares imediatos do serviço.

Assim, além de impor, por meio do art. 3º da Lei de Concessões, que a fiscalização se dê com participação dos usuários – questão essa concretizada em certa medida pelo parágrafo único do art. 30, que determina o acompanhamento periódico do serviço por comissão composta de representantes do poder concedente, da concessionária e dos usuários, a ser instituída com base em norma regulamentar. O legislador também editou, no ano de 2017, a lei 13.460, dando corpo ao inciso I do § 3º do art. 37 da Constituição Federal10. Por meio dela, determinou a criação dos mecanismos de ouvidorias e conselhos de usuários, bem como reforçou a avaliação continuada dos serviços públicos, como formas de se viabilizar o controle social a partir das manifestações de quem daqueles se utilizam.

A relação triangular, todavia, implica na necessidade de outros mecanismos. Não se nega a importância de um dever de cooperação entre o concessionário e o poder concedente para a fiscalização da utilização dos serviços públicos por parte dos usuários. Não faltam exemplos de deterioração da infraestrutura necessária à prestação de serviços públicos, cuja revitalização é precificada, onerando o contrato de concessão11. Esse viés, embora pouco discutido, já encontra alguns exemplos de experiência brasileira. É o exemplo do contrato do município de Blumenau, pelo qual a concessionária é autorizada a acompanhar e apoiar o Poder Concedente na realização dos processos de medições e cobranças dos usuários12.

Em sintética conclusão a este breve arrazoado, pode-se dizer que, ao assinar um contrato de concessão, o Poder Público só se desincumbe da responsabilidade pela prestação direta dos serviços públicos. A função normativa que nele permanece exige que sejam criados veículos de interação entre as três partes da relação configurada como forma de permitir a edição de atos administrativos democráticos que, por sua vez, concretizem-se com atenção às necessidades dos usuários e dos parceiros privados. A fiscalização, dessa maneira, não deve ser vista como um mero exercício de poderes autoritários, mas como um mecanismo constitucional que assegure que o desempenho da prestação se dê a partir do exercício de função que caracteriza a figura do Estado.

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 46-47

2 Pode-se citar o próprio dever de licitar constante no inciso XXI do mesmo artigo 37, bem como as consequências jurídicas resultantes da prática de atos de improbidade administrativa, conforme reza o §4º, ambos do dispositivo mencionado.

3 Afirmam Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández: “Ora, algo semelhante ocorre com o direito administrativo, que não é nem o direito próprio de alguns órgãos ou de um poder, tampouco o direito próprio de uma função, mas sim um direito de natureza estatutária, na medida em que trata da regulamentação das espécies singulares de sujeitos que se agrupam sob a denominação de Administrações Públicas, subtraindo estes sujeitos singulares do direito comum”. (tradução livre) No original: “Pues bien, algo semejante sucede con el derecho administrativo, que no es ni el derecho propio de unos órganos o de un poder, ni tampoco el derecho propio de una función, sino um derecho de naturaleza estatutaria, en cuanto se dirige a la regulación de las singulares especies de sujetos que se agrupan bajo el nombre de Administraciones Públicas, sustrayendo a estos sujetos singulares dei derecho común(Curso de Derecho Administrativo, 11 ª ed., vol. I, Madri, Civitas, 2002, p. 42).

4 São as palavras de León Duguit: “Assim, a primeira regra do direito público estabelece a obrigação imposta ao Estado de se organizar de modo a assegurar nas melhores condições possíveis a proteção dos direitos naturais do indivíduo.” (tradução livre) No original: “Ainsi la premiére régle du droit public édicte l’obligation que s’impose à l’État de s’organiser de tele façon qu’il assure dans le meilleures conditions possibles la protection des droits naturels de l’individu” (DUGUIT, León. Les transformations du droit public, Paris: Librairie Armand Colin, 1913, Introduction, XIII). Mais adiante: “Sem dúvida, neste sistema, a soberania do Estado é limitada pela liberdade. Mas a liberdade é, para o indivíduo, o direito de desenvolver sua atividade física, intelectual e moral sem impedimentos.” (tradução livre) No original: “Sans doute, dans ce système, la souveraineté de l’État est limitée par la liberté. Mais a liberte est pour l’individu le droit de développer sans entrave son activité physique, intellectuelle et morale”. (Idem, p. 31).

DUARTE, David. Imparcialidade Administrativa e Controlo Jurisdicional da Decisão. Revista de Direito Administrativo, Infraestrutura, Regulação e Compliance. n. 20. ano 6. p. 259-260. A figura do processo administrativo é diretamente impactada por essa compreensão. Como um instituto próprio do Estado de Direito, destina-se a possibilitar não só o controle dos atos editados para que se chegue à decisão final, mas também a permitir a participação dos particulares – através de institutos como consulta e audiências públicas – cujos interesses devem ser levados em conta para que o conteúdo final não se destoe daquilo que seria melhor para a coletividade. Sobre a participação dos particulares no processo administrativo: MARTINS, Ricardo Marcondes. Estudos de direito administrativo neoconstitucional. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 309.

6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 759.

7 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da Constituição Federal. São Paulo: Malheiros, 2011, 209-210.

8 Distinguem-se, tecnicamente, os termos “delegação” e “outorga”. Enquanto este se refere à transferência da prestação material, configurada por fatos jurídicos, ao particular, aquele designa situação configurada pelo exercício do particular de editar atos estatais, como ocorre com os serviços notariais. Sobre o tema: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio Bandeira, "Serviço público e poder de polícia: concessão e delegação", RTDP, 20/21 -28, São Paulo, Malheiros Editores, 1997.

9 Em breves termos, é sob essa lógica que se concebeu a Administração Gerencial em substituição à Administração Burocrática e se implementou, no Estado, a concepção do ciclo PDCA. Sobre o tema: ALTOUNIAN, Cláudio Sarian; SOUZA, Daniel Luiz de; LAPA, Leonard Renne Guimarães. Gestão e governança pública para resultados: uma visão prática. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 44.

10 Estabelece o dispositivo que a lei “disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: (...) I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços”.

11 MAGALHÃES, Luiz Ernesto. BRT: Intervenção melhora operação, mas sistema ainda enfrenta problemas e exigirá mais investimentos da prefeitura. O Globo. Rio de Janeiro, 21 de set. 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/brt-intervencao-melhora-operacao-mas-sistema-ainda-enfrenta-problemas-exigira-mais-investimentos-da-prefeitura-2-25204392. Acesso em 09 de out. de 2022.

12 É o exemplo em COHEN, Isadora; SCHWARTZ, Felipe Gurman; CADEDO, Matheus Silva. Um outro olhar para a fiscalização em contratos de concessão. Jota. São Paulo, 06 de agosto de 2021. 

André Paulani Paschoa
Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Certificado internacional, nível Foundation, em PPPs (CP³P-F). Sócio de Dal Pozzo Advogados.

João Victor Tavares Galil
Mestre e Doutorando em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Assessor Jurídico em São Paulo Parcerias S/A.

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