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O que são as medidas cautelares em caráter antecedente de recuperação judicial?

É nítido o seu caráter absolutamente excepcional, que demandará do Poder Judiciário uma análise pormenorizada do cumprimento dos requisitos e suas limitações.

19/1/2023

À luz dos fatos atuais, o recente pedido de tutela de urgência cautelar em caráter antecedente preparatória de processo recuperacional realizado pelo Grupo Americanas certamente contribuiu para a intensificação do debate acerca da ferramenta prevista pela lei 11.101/05, notadamente sua utilização e limitações legais.

A decisão que acatou a cautelar do Grupo considerou que “a espinha dorsal do microssistema de recuperação judicial reside no princípio da preservação da empresa e sua função social, com esteio no art. 47 da LRE, de forma que a relevância da atividade econômica desempenhada pelas Requerentes é facilmente identificada nos expressivos números englobados pelo Grupo Empresarial, com operação em diversos canais no mercado, com geração de mais de 100.000 (cem mil) empregos diretos e indiretos; manutenção de 3.600 estabelecimentos espalhados por todo o país; mais de 146 mil acionistas e recolhimento anual de cerca de R$ 2 bilhões de reais em tributos, garantindo a circulação de riquezas e desenvolvimento social”.

Além dos reflexos diretos, em levantamento da TradeMap compartilhado pela Forbes1, denota-se que o grupo dos grandes bancos brasileiros, que inclui nomes como Bradesco (BBDC4), Banco do Brasil (BBAS3), BTG Pactual (BPAC11), Itaú Unibanco (ITUB4) e Santander (SANB11), perdeu R$ 36,8 bilhões em valor de mercado desde o anúncio da dívida da varejista Americanas (AMER3) no início de janeiro do corrente ano.

Resgata-se que o desenvolvimento milenar dos regimes de insolvência constituiu um dos pilares institucionais do próprio capitalismo, frente a necessidade iminente do mercado por mecanismos saneadores e rápidos para as situações de insolvência2. Diante disso, as mudanças advindas da lei 14.112/20 à Lei de Recuperação de Empresas e Falência (lei 11.101/05) objetivou, sobretudo, a modernização do sistema de insolvência empresarial brasileiro, de modo a oferecer ferramentas eficazes para a preservação de empresas e empregos, equilibrando os interesses de devedores e credores, sem se olvidar do fomento ao empreendedorismo.

Dentre essas alterações, respaldada no próprio Princípio da Preservação da Empresa e Função Social, encontra-se a previsão de antecipar total ou parcialmente os efeitos do deferimento do processamento da recuperação judicial desde que observados a existência dos elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (art. 6º, § 12 da lei 11.101/05 c/c art. 300 do CPC).

Refinando a previsão geral, o Legislador prevê no art. 52 da lei 11.101/05 as cautelas que devem ser seguidas pelo Poder Judiciário quando defere o processamento da recuperação judicial, tendo como uma das consequências mais importantes, por óbvio, a ordem de “suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor” (art. 52, III da lei 11.101/05), recaindo sobre o Juízo da recuperação judicial a competência para avaliar se estão presentes os requisitos para a concessão de tutela de urgência objetivando antecipar o início do stay period ou suspender os atos expropriatórios determinados em outros Juízos, antes mesmo de deferido o processamento da recuperação (STJ, 2ª. Seção, CC 168.000/AL, Rel. Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, j. 11/12/19, DJe 16/12/193).

Sobre a questão, orienta brilhantemente o doutrinador Manoel Justino Bezerra Filho (2021)4:

“[...] A previsão portanto, neste parágrafo, é no sentido de que o juiz da recuperação poderá conceder tutela de urgência, podendo, portanto, entre outras determinações, mandar desde logo sobrestar o andamento dos processos contra o pretendente à recuperação. Deve o juiz tomar bastante cuidado, fundamentando, como sempre, as razões da concessão da tutela e, especialmente, estabelecendo o prazo de validade da tutela. Deve haver atenção para não permitir que o autor do pedido de recuperação, escudado por tal tipo de tutela de urgência, sinta-se estimulado a não tomar as providências faltantes de forma célere. A suspensão das ações e das execuções contra o devedor deixa manietados seus credores, de tal forma que a tutela de urgência, se for o caso de concessão, deve ser por tempo limitado”.

No caso em questão, a 4ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro determinou a antecipação dos efeitos jurídicos: (i) o sobrestamento dos efeitos de toda e qualquer cláusula que imponha vencimento antecipado das dívidas das Requerentes; (ii) a sustação da exigibilidade de todas as obrigações relativas aos instrumentos financeiros celebrados entre as Requerentes e todas as entidades de seus grupos econômicos e eventuais sucessores/cessionários a qualquer título, que constituem créditos sujeitos a um eventual processo recuperacional, inclusive nas obrigações em que as Requerentes figurem como avalistas; (iii) a sustação dos efeitos do inadimplemento, inclusive, para reconhecimento de mora; de qualquer direito de compensação contratual; e de eventual pretensão de liquidação de operação com derivativos; (iv) a sustação de qualquer arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição sobre os bens, derivados de demandas judiciais ou extrajudiciais, sem a prévia análise deste Juízo Recuperacional; (v) a preservação de todos os contratos necessários à operação do Grupo Americanas, inclusive linhas de crédito e fornecimento; (vi) a imediata restituição de todo e qualquer valor que os credores eventualmente tiverem compensado, retido e/ou se apropriado; como, também, (vii) a suspensão de qualquer determinação de registros em cadastros de inadimplentes referentes a créditos sujeitos ao processo de recuperação principal.

Além do recente pedido ajuizado pelo Grupo Americanas, rememora-se que as tutelas cautelares antecedentes preparatórias ao pedido de Recuperação Judicial também foram utilizadas nos emblemáticos casos da Rede Abastecedora de Combustíveis Grupo Tabocão (TJ-GO); da Sociedade Anônima do Futebol Figueirense Futebol Clube (TJ-SC) e da Rede de Educação Instituto Metodista de Educação (TJ-RS).

Sob o viés prático, à luz dos entendimentos dos Tribunais pátrios, para a concessão da ferramenta, é necessário que o devedor comprove a probabilidade de seu direito, demonstrando, por certo, que atende aos requisitos para a recuperação judicial, além de expor com clareza o periculum in mora que vislumbra, veja-se:

"RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Tutela Cautelar Antecedente - Pedido de antecipação dos efeitos do processamento da recuperação judicial – Art. 6º, § 12 da lei 11.101/05 – Medida que somente pode ser concedida caso haja probabilidade do direito, risco ao resultado útil do processo ou perigo de dano e a presença dos documentos elencados no art. 48 da Lei 11.101/05 – Ausência de elementos que autorizam a concessão da medida – Falta de certidões para aferir se já foram feitos pedidos de recuperação judicial – Inexistência de medidas capazes de provocar a interrupção da empresa - Não documentado a instauração do procedimento de conciliação e mediação, conforme exige o art. 20-B, § 1º, da lei 11.101/05 – Decisão mantida – Recurso improvido."

(TJ-SP - AI: 20042983520228260000 SP 2004298-35.2022.8.26.0000, Relator: J. B. Franco de Godoi, Data de Julgamento: 13/5/22, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 13/5/22).

(Grifou-se)

Em outras palavras, o pedido deve estar fundamentado no periculum in mora e fumus boni iuris. No primeiro, é imprescindível que se demonstre que a possibilidade imediata de eventual constrição nos ativos do empresário ou sociedade empresária poderiam comprometer as estratégias de soerguimento e o próprio procedimento de recuperação judicial per si.

Noutro passo, deve-se resguardar o direito invocado pelo preenchimento de todos os requisitos do art. 48 da lei 11.101/05, comprovando-se o efetivo direito ao futuro deferimento da recuperação judicial e que os próprios efeitos desse processamento ocasionariam o dano ao qual se visa proteger.

Uma vez deferida a ferramenta em caráter antecedente, a Devedora deve formular o pedido de recuperação judicial no prazo de 30 (trinta) dias corridos (art. 189, I da lei 11.101/05), na forma do inciso I do § 1º do art. 303 c/c 308 do Código de Processo Civil, sob pena de perda imediata da eficácia da medida cautelar obtida.

Dessarte, em meio a um cenário de crise econômico-financeira reversível, a medida cautelar em caráter antecedente à recuperação judicial pode funcionar como uma importante ferramenta para a reestruturação e soerguimento empresarial. Não obstante, é nítido o seu caráter absolutamente excepcional, que demandará do Poder Judiciário uma análise pormenorizada do cumprimento dos requisitos e suas limitações, evitando-se, assim, que a medida se torne um benefício de suspensão por prazo indeterminado das obrigações do devedor em detrimento dos direitos de seus credores.

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1 FERNANDES, Vitória. Bancos perdem R$ 36,8 bilhões em valor de mercado com dívida da Americanas. Forbes. 17 de janeiro de 2023. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-money/2023/01/bancos-perdem-r-368-bilhoes-em-valor-de-mercado-com-divida-da-americanas/

2 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas [livro eletrônico] / Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, coordenador. – 1ª Ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

3 CONFLITO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PEDIDO DE PROCESSAMENTO PENDENTE DE ANÁLISE. EXECUÇÃO FISCAL. TUTELA DE URGÊNCIA. SUSPENSÃO. ATOS EXPROPRIATÓRIOS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL.

1. Cinge-se a controvérsia a definir o juízo competente para o julgamento de tutela de urgência incidente em ação de recuperação judicial na qual ainda não foi deferido o processamento do pedido, objetivando a suspensão de atos expropriatórios determinados em execução fiscal.

2. O conflito positivo de competência ocorre não apenas quando dois ou mais Juízos se declaram competentes para o julgamento da mesma causa, mas também quando proferem decisões incompatíveis entre si acerca do mesmo objeto.

3. O artigo 189 da LRF determina que se apliquem aos processos de recuperação e falência as normas do Código de Processo Civil no que couber, sendo possível concluir que o Juízo da recuperação está investido do poder geral de tutela provisória (arts. 297, 300 e 301 do CPC/2015), podendo determinar medidas tendentes a alcançar os fins previstos no artigo 47 da Lei nº 11.101/2005.

4. Um dos pontos mais importantes do processo de recuperação judicial é a suspensão das execuções contra a sociedade empresária que pede o benefício, o chamado stay period (art. 6º da LRF). Essa pausa na perseguição individual dos créditos é fundamental para que se abra um espaço de negociação entre o devedor e seus credores, evitando que, diante da notícia do pedido de recuperação, se estabeleça uma verdadeira corrida entre os credores, cada qual tentando receber o máximo possível de seu crédito, com o consequente perecimento dos ativos operacionais da empresa.

5. A suspensão das execuções e, por consequência, dos atos expropriatórios, é medida com nítido caráter acautelatório, buscando assegurar a elaboração e aprovação do plano de recuperação judicial pelos credores ou, ainda, a paridade nas hipóteses em que o plano não alcance aprovação e seja decretada a quebra.

6. Apesar de as execuções fiscais não se suspenderem com o processamento da recuperação judicial (art. 6º, § 7º, da Lei nº 11.101/2005), a jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que os atos expropriatórios devem ser submetidos ao juízo da recuperação judicial, em homenagem ao princípio da preservação da empresa.

7. O Juízo da recuperação é competente para avaliar se estão presentes os requisitos para a concessão de tutela de urgência objetivando antecipar o início do stay period ou suspender os atos expropriatórios determinados em outros juízos, antes mesmo de deferido o processamento da recuperação.

8. Conflito positivo de competência conhecido para declarar a competência do Juízo da 10ª Vara Cível de Maceió/AL.

(CC 168.000/AL, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Segunda Seção, j. 11/12/2019, DJe 16/12/2019 – sem destaques no original).

4 Bezerra Filho, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência [livro eletrônico]: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo / Manoel Justino Bezerra Filho, Adriano Ribeiro Lyra Bezerra, Eronides A. Rodrigues dos Santos. – 7ª ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.

Alexandry Chekerdemian Sanchik Tulio
Advogado com mais de 15 anos de experiência na área de insolvência empresarial, atua na administração judicial de processos de recuperação judicial e falência de médio e grande porte. É Administrador Judicial pelo Instituto Brasileiro de Administração Judicial (IBAJUD) em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso.

Diogo Siqueira Jayme
Advogado com mais de 10 (dez) anos de experiência na área de insolvência empresarial, atua na administração judicial de processos de recuperação judicial e falência de médio e grande porte. É especialista em Direito Empresarial pelo Instituto Goiano de Direito Empresarial (IGDE) e Direito Civil e Processo Civil.

Gustavo A. Heráclio Cabral Filho
Advogado com mais de dez anos de experiência na área de insolvência empresarial. Embaixador do IBAJUD no Estado de Goiás. Sócio cofundador da Dux Administração Judicial S/S Ltda. Vasta experiência na área de Compliance. Exerce a função de Compliance Officer na Dux Administração Judicial.

Letícia Marina da S. Moura
Advogada e jornalista. Especialista em Direito Empresarial e Falência e Recuperação de Empresas. Membro do Grupo de Estudos Avançados em Processo Recuperacional e Falimentar da Fundação Arcadas/USP.

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