Migalhas de Peso

O direito de manifestação do pensamento se protrai no tempo, ou se esgota com o seu exercício público e notório?

O direito de livre manifestação do pensamento não é incessante, pois se exaure no momento em que é pública e notoriamente exercido.

20/1/2023

No dia 8 de janeiro de 2023 o Brasil e o mundo assistiram com perplexidade a tentativa de golpe de Estado levada a efeito por seguidores extremistas do ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro, que invadiram a sede dos três Poderes em Brasília/DF, e empreenderam toda sorte de vandalismo contra o patrimônio público, desrespeitando as instituições democráticas e vilipendiando os representantes desses poderes, desferindo maior ódio e fincas de destruição contra o Supremo Tribunal Federal, lugar onde nem a imagem de Cristo escapou ilesa.

Afirmando estarem acobertados pelo sagrado manto do direito constitucional de livre expressão do pensamento, os golpistas, que não aceitam a vitória democrática de Lula nas eleições de outubro de 2022, penetraram às dependências do Congresso Nacional, do Palácio do Alvorada e Supremo Tribunal Federal, defecaram, urinaram, quebraram e arremessaram a mobília pelas janelas, danificaram os instrumentos de trabalho, destruíram obras de arte de valor histórico, assaltaram os prédios, e pincharam paredes e vidraças, externando o comportamento mais primitivo de ira e assolação que nada tem a ver com o direito de manifestação do pensamento.

Com efeito, o ordenamento jurídico deve ser interpretado como um sistema e não isoladamente, de sorte que, havendo conflito entre o direito à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV da CF/88) e à própria ordem democrática que o sustém, deve prevalecer esta última.

Nesse sentido, Pablo Buogo, citando Mario Sbriccoli e Rousseau, giza que:

“Os eventos que iniciaram ainda nas eleições de 2022, levam à reflexão do chamado paradoxo da liberdade, expressão difundida pelo falecido historiador do Direito, e professor da Universitá di Macerata, Mario Sbriccoli. A discussão reside na oposição ao bem político que é a segurança dos cidadãos (segurança pública), e o inalienável direito do indivíduo à sua liberdade inviolável.

Em suma: todos desejamos liberdade, mas ao mesmo tempo, almejamos ordem. Imaginemos um cenário onde todos exercem sua liberdade da forma que lhes parecer mais apropriado. Onde ficaria a ordem? Logo, a liberdade do indivíduo encontra limitações pela necessidade de imposição de ordem pelo Estado.

Pode o Estado reduzir ou suspender as liberdades dos cidadãos para conservar a si mesmo, ou seja, para conservar a ordem? (SBRICCOLI, 2011).

A resposta tende a ser positiva.

Rousseau, em sua obra O Contrato Social escreveu que o homem nasceu livre e por toda parte está agrilhoado, defendendo, de um lado, a relevância da liberdade, mas ao mesmo tempo, deixando claro que a ordem social é um direito sagrado fundado nas convenções sociais (ROUSSEAU, 1999, p. 09). O pacto social de Rousseau aborda a necessidade de abrir mão de algumas liberdades em nome da ordem, para que seja possível a convivência em sociedade”.1

Uma simples pesquisa on line no dicionário, é suficiente para ver-se que o termo “manifestar” significa “tornar(-se) manifesto ou público; declarar(-se), divulgar”.

Tem-se que o direito de manifestação do pensamento não se protrai no tempo ad aeternum, mas se esgota com o seu exercício público e notório, especialmente quando ressoa evidente que a invocação de tal direito se presta, na verdade, para acobertar condutas antijurídicas.

No momento em que o indivíduo ou o grupo de indivíduos declara, divulga e torna público o seu ponto de vista acerca de determinado assunto, ali se esgota a manifestação do seu pensamento, sendo que “eventuais abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento são passíveis de exame e apreciação pelo Poder Judiciário, com a cessação das ofensas, direito de resposta e a fixação de consequentes responsabilidades civil e penal de seus autores”.2

Todos passam a ter conhecimento de suas ideias, convicções e opiniões, entretanto, ninguém é obrigado a acatá-las e a elas se curvar. Caso se faça necessário reforçar tais ideias, poder-se-ia até pensar num prazo razoável para torná-las públicas, o que não se admite, é o alojamento quase que permanente de pessoas na frente de instituições públicas, tentando, a qualquer custo, fazer prevalecer a sua vontade, utilizando-se inclusive da força e da violência. Esse prazo razoável seria, portanto, aquele que pudesse impedir que acampamentos ou invasões de locais públicos se estabelecessem.

É dizer: a manifestação do pensamento não admite continuidade indefinida no tempo, não é o mesmo que insurreição, tomada à força, imposição ou bagunça, notadamente em um Estado Democrático de direito.  Não se pode admitir que o direito à livre manifestação do pensamento se converta em direito à livre manifestação antidemocrática. Certo é que a liberdade de expressão e da manifestação do pensamento, deve ser exercida em harmonia com os demais direitos e valores constitucionais, notadamente a ordem, que antecede o progresso.

Nada justifica a permanência de acampamentos com escaladas antidemocráticas, sob a justificativa de se estar exercendo um direito constitucional, especialmente quando se sabe no que isso pode acabar desaguando. De igual forma é inaceitável que insultos públicos em aviões, aeroportos, órgãos públicos e instituições privadas, xingamentos (como os que ocorreram recentemente contra uma Ministra do STF), e até atos agressivos que evoluem para vias de fato sejam alegados como direito de se manifestar.

Admitir aquartelamentos nos quais se pede intervenção militar, prisão e destituição de membros do STF e violação ao resultado das urnas, ou mesmo, tolerar bloqueio de rodovias, invasão de prédios públicos e uso de redes sociais para não esbarrar no direito à liberdade de pensamento são posturas que devem ser evitadas pelo Poder Público. O Estado não pode ter medo de fazer valer a ordem entre as pessoas. É uma questão de sobrevivência democrática.

Nem toda manifestação pode ser controlada apenas a posteriori. As que são publicamente antidemocráticas devem ser imediatamente rechaçadas, porque, tais como a que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2022, ou mesmo aquela que foi cognominada como movimento "300 do Brasil", tem como único propósito abalar a democracia. Todos sabem onde esses movimentos acabam. O direito não socorre a condutas criminosas.

Nenhum dispositivo da Constituição Federal pode servir de escudo à comportamentos golpistas que atentam contra o resultado das eleições democráticas, contra as instituições públicas e seus agentes, contra os Poderes da República, e, portanto, contra o seu próprio texto, sobretudo considerando serem vedados comportamentos contraditórios em nosso ordenamento jurídico (venire contra factum proprium).

Conforme já assentou a Suprema Corte, “Todas as limitações passíveis de serem opostas à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas, ante a peremptoriedade dos textos indicados, hão de estar estabelecidas de modo explícito ou implícito, na própria Constituição”.3

E nesse sentido, a CF/88 é expressa ao estatuir que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (art. 1º); “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2º); “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI); “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (art. 5º XLIII); “Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (art. 5º, XLIV); “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” (art. 14); etc.

Esclareça-se que ao falar em “grupos armados” a Constituição não especifica quais os tipos de arma, se letais ou não letais. Um porrete, uma faca ou um canivete podem perfeitamente ser utilizados para depredar o patrimônio público, e guarnecer grupos que atentam contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Assim, é preciso repensar o direito à manifestação do pensamento, estudando-o com maior profundidade. Ele é livre, conforme dispõe a Constituição Federal, mas uma vez manifestado, ali se aperfeiçoa, não havendo que o protrair por tempo indeterminado, notadamente quando a ordem, e portanto, o próprio Estado Democrático de Direito, em razão do exercício indiscriminado de tal direito, acaba ficando em perigo, e “Isto quer dizer que não se pode proibir (censurar) a manifestação da liberdade de pensamento ou de expressão; mas, uma vez que se as utilize, ou seja, uma vez que se exerça a liberdade de pensamento ou de expressão, o uso desse direito não pode extrapolar o limite do razoável (...)”.4

O fato é que a liberdade de expressão não pode amparar comportamentos delituosos que tenham, na manifestação do pensamento, um de seus meios de exteriorização, notadamente naqueles casos em que a conduta praticada pelos agentes encontra repulsa na própria Constituição (conforme os dispositivos citados acima) ou no ordenamento positivo nacional (arts. 155, § 4º, I e IV, 163, par. único, II, 359-L e 359-M, do Código Penal), que não admitem atos que ofendam, inclusive em sede penal, valores fundamentais que a todos assistem.

O direito de se manifestar não significa “ficar se manifestando” indefinidamente, mas de exteriorizar o descontentamento ou a aprovação, condutas que se esgotam quando há publicidade e notoriedade da exposição, e que não admitem violação à ordem democrática, que, por sua importância, vem antes do progresso.

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1 BUOGO, Pablo. O paradoxo da liberdade: garantia de liberdade ou manutenção da ordem pública?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7133, 11 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101948. Acesso em: 12 jan. 2023.

2 Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 44244 AgR, Relator Ministro: Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe de 11-1-2021.

3 STF. ADI 869, Relator(a): ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ de 4-6-2004.

4 MAZZUOLI ,Valerio de Oliveira (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana  sobre Direitos Humanos”, vol. 4/136, obra conjunta escrita com LUIZ FLÁVIO GOMES, 2008, RT).

Leonis de Oliveira Queiroz
Servidor do Superior Tribunal de Justiça, ex Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, Especialista em Direito Público, Mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Direito UNB

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