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A alteração do artigo 3º da lei de improbidade e sua repercussão

Os fundamentos para o sancionamento do terceiro particular por atos de improbidade estão claros na lei. Qual será a interpretação que o Poder Judiciário dará a eles?

23/1/2023

A lei de Improbidade Administrativa (8.429/92) foi radicalmente alterada no ano de 2021 através da lei Federal 14.230/21. Muitos dispositivos foram alterados e tantas dessas alterações já foram questionadas em face da Constituição Federal.

Uma das alterações promovidas foi a redação do art. 3º da LIA. Por este dispositivo, conforme redação originária da lei, os terceiros não agentes públicos poderiam ser sancionados por atos de improbidade, desde que tivessem induzido ou concorrido para ele ou, ainda, quando dele se beneficiassem, direta ou indiretamente.

Com o advento da lei 14.230/21, até mesmo para guardar consonância com uma das maiores alterações por ela promovida, a exclusão da modalidade culposa de improbidade, os terceiros não agentes públicos somente poderão ser sancionados por atos de improbidade que induziram ou concorreram. Não há mais, portanto, a previsão de sanção aos particulares que meramente se beneficiaram, direta ou indiretamente, do ato ímprobo.

A regra do caput do dispositivo alterado não foi questionada por nenhuma das ADIs ajuizadas no Supremo Tribunal Federal e, por assim ser, é indispensável que analisemos os impactos dessa alteração que obviamente repercutirão nos procedimentos investigatórios e nos processos judiciais que tratem de improbidade e que de alguma forma envolvam terceiros não agentes públicos.

Primeiramente, cumpre destacar que “terceiro” é aquele que não se enquadra como servidor ou agente público. Conforme a doutrina de Marcelo Figueiredo (in probidade administrativa, 2009, p. 58), o agente público é aquele que “... dispõe efetivamente de meios e condições” para a prática da improbidade e, portanto, o terceiro apenas assumiria o papel de coautor ou partícipe da improbidade, nada obstando, entretanto, que seja seu “mentor intelectual”.

Logo, o terceiro, embora não seja quem tenha condições de praticar, por si só, o ato de improbidade, pode tanto praticá-lo em cooperação com os agentes públicos, como induzi-los a praticá-lo e, portanto, deve ser sancionado pelo ato quando demonstrada essa coautoria ou participação.

A alteração promovida pela lei 14.230/21 em expurgar a possibilidade de sancionamento pelo mero beneficiamento do ato ímrpobo é saudável e traz maior segurança jurídica aos que de alguma forma se relacionam com a Administração Pública. A redação legal, portanto, “destinou-se a eliminar distorções verificadas anteriormente, relacionadas com a punição de particulares independentemente da prática de qualquer conduta reprovável” (JUSTEN FILHO in Reforma da lei de improbidade administrativa comentada e comparada: lei 14230, de 25 de outubro de 2021, 2022, p. 49).

Certo é que da forma que estava disposta a redação legal, os riscos de se ter uma responsabilização objetiva eram altíssimos, ao passo que bastava provar o nexo de causalidade entre o ato inquinado pela improbidade e o “benefício” do terceiro, não agente público, que ele poderia ser sancionado, implicando um regime de responsabilização muito mais rígido que o dos próprios agentes públicos.

A doutrina já alertava nesse sentido, como podemos observar em Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves (in Improbidade Administrativa, 2017, p. 356):

Assim, constatado que o terceiro tinha conhecimento da origem ilícita do benefício auferido – pois a admissibilidade da responsabilidade objetiva, além de não ter amparo legal, em muito comprometia a segurança das relações jurídicas – estará ele passível de sofrer as sanções cominadas no art. 12 da lei 8.429/92. É preciso, portanto, seja demonstrada a presença do liame subjetivo entre o terceiro e o agente público, não a mera obtenção de benefício a partir da conduta alheia, cuja ilicitude era simplesmente desconhecida.

Desse modo, a alteração traz importante repercussão para os casos em que a improbidade é imputada aos terceiros, impedindo que sejam condenados sem o enfrentamento e enquadramento de sua conduta, de sua participação, de seu ato doloso de induzimento ou concorrência para a improbidade.

Merece destaque, ainda, que o “induzir” significa “incitar”, isto é, dar luz à inclinação para a prática do ilícito pelo agente público. É, nas palavras de Garcia e Alves (Ibid., p. 355), o “auxílio moral” para a prática da improbidade. Já o “concorrer para o ato” é o auxílio material para a prática da improbidade. Apenas estas duas circunstâncias poderão acarretar sancionamento do terceiro particular por ato de improbidade, desde que também fique demonstrado que essas suas condutas – induzimento e/ou concorrência – foram praticadas dolosamente.

Embora o Supremo Tribunal Federal não tenha decidido especificamente sobre o artigo 3º e a possibilidade de retroação para fatos praticados anteriormente à vigência da nova lei, em um exercício de probabilidade, pode-se conjecturar como o Poder Judiciário, a partir do julgamento do Tema 1.199 da Repercussão Geral do Supremo, deverá aplicar essa nova redação.

No referido Tema 1.199, o Supremo Tribunal Federal decidiu o seguinte acerca da retroatividade da lei Federal 14.230/21 no que toca à exclusão da modalidade culposa da improbidade administrativa:

“(...) 2) A norma benéfica da lei 14.230/21 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova lei 14.230/21 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; (...)”

Para assim definir, o acórdão se fundou nas razões que foram resumidamente apresentadas no Informativo 1065/22:

Por força do art. 5º, XXXVI, da CF/1988, a revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, promovida pela lei 14.230/21, é irretroativa, de modo que os seus efeitos não têm incidência em relação à eficácia da coisa julgada, nem durante o processo de execução das penas e seus incidentes.

O princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (CF/1988, art. 5º, XL) não tem aplicação automática para a responsabilidade por atos ilícitos civis de improbidade administrativa, por ausência de expressa previsão legal e sob pena de desrespeito à constitucionalização das regras rígidas de regência da Administração Pública e responsabilização dos agentes públicos corruptos com flagrante desrespeito e enfraquecimento do direito administrativo sancionador.

Referido princípio baseia-se em particularidades do direito penal, o qual está vinculado à liberdade do criminoso (princípio do favor libertatis), fundamento inexistente no direito administrativo sancionador. Trata-se de regra de exceção que, como tal, deve ser interpretada restritivamente, prestigiando-se a regra geral da irretroatividade da lei e a preservação dos atos jurídicos perfeitos, especialmente porque, no âmbito da jurisdição civil, prevalece o princípio tempus regit actum.

Incide a lei 14.230/21 em relação aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência da lei 8.429/92, desde que não exista condenação transitada em julgado, cabendo ao juízo competente o exame da ocorrência de eventual dolo por parte do agente.

Diante da revogação expressa do texto legal anterior, não se admite a continuidade de uma investigação, uma ação de improbidade, ou uma sentença condenatória por improbidade com base em uma conduta culposa não mais tipificada legalmente.

Entretanto, a incidência dos efeitos da nova lei aos fatos pretéritos não implica a extinção automática das demandas, pois deve ser precedida da verificação, pelo juízo competente, do exato elemento subjetivo do tipo: se houver culpa, não se prosseguirá com o feito; se houver dolo, prosseguir-se-á. Essa medida é necessária porque, na vigência da lei 8.429/92, como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo.

Nesse contexto, todos os atos processuais até então praticados são válidos, inclusive as provas produzidas, as quais poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal, assim como a ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao erário.

Dito de outra forma, o Supremo Tribunal Federal afirmou a irretroatividade da lei no que toca à revogação da tipificação do ato culposo em relação aos casos já transitados em julgado. Entretanto, afirmou categoricamente que: “Diante da revogação expressa do texto legal anterior, não se admite a continuidade de uma investigação, uma ação de improbidade, ou uma sentença condenatória por improbidade com base em uma conduta culposa não mais tipificada legalmente”.

Em continuidade, o Pretório afirmou que as ações de improbidade não deveriam ser extintas antes de se verificar o elemento subjetivo do tipo, ou seja, somente deveriam ser extintas as ações que fossem, de fato, fundamentadas na culpa. Caso fundadas em dolo, a ação deve prosseguir. Isso porque: “como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo”.

A partir dessa decisão podemos vislumbrar que, tal como a condenação por culpa, não é mais possível a condenação do terceiro por “beneficiamento direto ou indireto” e, com efeito, ante a nova redação legal, não se pode admitir a continuidade de uma investigação, uma ação de improbidade, ou uma sentença condenatória por improbidade com base em beneficiamento direto ou indireto do terceiro particular.

De outro lado, é provável que o Supremo Tribunal Federal, em eventual enfrentamento da questão, por dever legal do art. 926 do CPC, impedirá a retroação da nova lei mais benéfica aos casos já transitados em julgado e determinará aos juízos que, antes de extinguirem as ações em face de terceiros não agentes públicos, avalie se há elementos que demonstrem o induzimento ou concorrência dolosa deles nos atos examinados e, caso existam, apliquem as sanções previstas na lei de Improbidade Administrativa.

Sobre essa possível reafirmação de orientação, externamos nossa preocupação sobre sua legalidade e constitucionalidade.

Aos juízes é imposto o dever de imparcialidade e de tratamento paritário às partes. Além disso, a inércia é princípio característico da jurisdição, de forma que somente atua sobre e nos limites daquilo que lhe é submetido. Dito isso, a petição inicial é quem traz elementos sobre os fundamentos fáticos e jurídicos para a sanção do terceiro. Então, se a petição inicial se fundar em mero beneficiamento, sem mencionar a prática de atos de colaboração ou indução do terceiro, não pode o juízo analisar de ofício a existência desses elementos, sob pena de transgredir a inércia da jurisdição e os deveres de imparcialidade e paridade de tratamento.

Essa preocupação se reproduz em relação à recomendação feita aos juízos no julgamento do Tema 1.199, na medida em que, ao se determinar que os juízos analisem qual é o elemento subjetivo do tipo e, “se houver culpa, não se prosseguirá com o feito; se houver dolo, prosseguir-se-á”, diversas seriam as implicações que trariam nulidade ao feito.

Primeiramente, há o problema de se antecipar o julgamento sem o devido respeito ao contraditório e ampla defesa.

Ora, o dolo é elemento que caracteriza o ato como ímprobo e tal elemento está para a condenação do agente público assim como o induzimento e/ou concorrência dolosos está para o sancionamento do terceiro particular. Portanto, se o juízo, antes de encerrada a instrução, se imiscuir na existência de desses elementos para o prosseguimento do feito ou não, violará o devido processo e ampla defesa.

Em segundo lugar, e ligado umbilicalmente ao primeiro ponto de preocupação, temos o dever de a petição inicial trazer os fatos e fundamentos jurídicos do pedido que, a seu turno, deve ser certo e determinado. Ou seja, é absurda a razão de decidir desta recomendação,1 pois desde antes do advento da lei Federal 14.230/21 o CPC já impunha os deveres de clareza da petição inicial e da certeza e determinação dos pedidos formulados.

O fato de a condenação culposa por improbidade ter sido possível num passado próximo não implica reconhecer liberdade ao autor da ação por ato de improbidade descrever condutas genéricas que possam ser enquadradas em dolo ou culpa, indistintamente.

Se a petição inicial não é clara sobre o fundamento do pedido de condenação, deve ser – assim como deveria ser, antes da reforma - rejeitada ou no mínimo emendada, sob pena de violação aos princípios mais comezinhos dos acusados.

Aguardemos como se comportará o Poder Judiciário, notadamente os Tribunais Superiores, acerca da questão da responsabilização do terceiro particular por atos de improbidade. Esperamos que ao menos seja observado o dever de integridade, coerência e estabilidade da jurisprudência.

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1 “Essa medida é necessária porque, na vigência da Lei 8.429/1992, como não se exigia a definição de dolo ou culpa, muitas vezes a imputação era feita de modo genérico, sem especificar qual era o elemento subjetivo do tipo.”

Lucas Pedroso Klain
Bacharel em Direito pelo Claretiano Faculdade; Especialista em Direito Tributário pela Faculdade Damásio e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Sócio de Marcelo Figueiredo Advogados Associados.

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