Migalhas de Peso

A preferência do crédito tributário e a anterioridade da penhora prevista no CPC, segundo o STJ

Difícil não concluir que os credores particulares poderiam atuar como assistentes das Fazendas Públicas, na medida em que dedicam tempo a agir com diligência na busca de satisfazer seus próprios créditos.

16/1/2023

Recentemente, nos últimos meses de 2022, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou os Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.603.324/SC, dando provimento ao recurso interposto pelo Estado de Santa Catarina. No acórdão em questão, asseverou-se que, independentemente da existência de ordem de penhora na execução fiscal, a Fazenda Pública pode habilitar seu crédito privilegiado nos autos de Execução por Título Extrajudicial ajuizada por particulares em face do devedor e, então, requerer o levantamento do produto financeiro de eventual penhora realizada na Execução particular, dado o privilégio do crédito tributário.

A fim de contextualizar-se acerca do julgamento em questão, a Primeira Turma do STJ, ao analisar recurso especial interposto por cooperativa de crédito, deu provimento a este recurso para reconhecer a inexistência de preferência da Fazenda Pública Estadual para levantar valores advindos de leilão judicial de imóvel do devedor, imóvel este arrematado por terceiros nos autos de Execução de Título Extrajudicial ajuizada pela cooperativa.

A Primeira Turma entendeu que, embora o crédito tributário possua preferência legal, nos termos do art. 186, do CTN1, não havia penhora da Fazenda Pública sobre o imóvel, requisito que seria essencial para que o concurso de credores fosse configurado. Assim, diante da ausência de penhora, não haveria que se falar em pluralidade de credores e/ou exequentes, nos termos do art. 908, do CPC2.

Posteriormente, entretanto, o Fisco Estadual interpôs embargos de divergência em face de acórdão que desproveu seu Agravo Interno e manteve o quanto decidido no recurso especial. Para fundamentar o dissídio de entendimentos dentro do próprio STJ, requisito para os embargos de divergência, o Fisco Estadual apontou dissonância entre o acórdão recorrido e um acórdão da Quarta Turma do STJ.

Uniformizando-se a jurisprudência da Corte Cidadã sobre o tema, o STJ julgou os Embargos de Divergência e proferiu o acórdão (no EREsp 1.603.324/SC), de lavra do Ministro Luis Felipe Salomão, no qual entendeu que não há como sobrepor uma preferência de natureza processual a uma preferência do direito material.

O acórdão afirma que o art. 908, do CPC, menciona que “o dinheiro lhes será distribuído e entregue [aos credores] consoante a ordem das respectivas preferências”. Assim, o trecho final do caput, trata das preferências de direito material, como é caso do crédito tributário.

Somente caso não haja uma preferência de direito material, é que o § 2º, do art. 908, seria aplicado. Ou seja, observar-se-ia a anterioridade da penhora, preferência esta de natureza processual.

Assim, a máxima prior in tempore, potior in iure, que aduz que o primeiro a promover a penhora (ou arresto) tem preferência na satisfação do seu crédito, somente seria aplicável, portanto, na hipótese de inexistirem créditos mais privilegiados sob a ótica do direito material.

O acórdão, inclusive, cita os créditos trabalhistas como privilegiados, consoante teor do já citado art. 186, do CTN, e, ainda, aduz que a necessidade de pluralidade de penhoras para exercício do direito de preferência legal abalaria a finalidade social das preferências de direito material, conforme trecho a seguir:

(...) Porém, a exigência de pluralidade de penhoras para o exercício do direito de preferência reduz, significativamente, a finalidade do instituto — que é garantir a solvência de créditos cuja relevância social sobeja aos demais —, equiparando-se o credor com privilégio legal aos outros desprovidos de tal atributo.

Firmou-se, assim, entendimento no sentido de que a Fazenda Pública tem preferência de habilitação, com reconhecimento de crédito privilegiado em execução por título extrajudicial, independentemente da existência de penhora na execução fiscal. Por outro lado, se não houver execução fiscal aparelhada, garante-se o exercício do direito do credor privilegiado mediante a reserva da totalidade (ou de parte) do produto da penhora levada a efeito em execução de terceiros.

Embora, à primeira vista, possa parecer correta e lógica a sobreposição dos privilégios creditórios provenientes do direito material sobre o privilégio temporal, estabelecido no CPC, é certo que o entendimento pode prejudicar o credor particular diligente em muitas situações.

Exemplificativamente, caso o credor particular, em execução movida contra devedor, de maneira diligente, promova a penhora e o leilão judicial de imóvel do devedor, arcando com honorários periciais para avaliação do imóvel e demais custos intrínsecos ao processo de execução, a persecução de seu crédito, ao final, pode restar integralmente prejudicada por uma simples petição da Fazenda Pública que demonstre que o valor devido a ela pelo executado é superior ao valor do imóvel arrematado.

Neste caso, tem-se, ainda, que o credor particular não só nada receberia, como também perderia tempo e, ainda, não seria ressarcido dos custos processuais em que incorreu para a penhora e o leilão do imóvel.

Não há que se falar, tampouco, que o credor particular poderia ser diligente a ponto de verificar se o devedor e proprietário do imóvel em questão sofre ação de execução fiscal, a fim de, diante de tal informação, ponderar se há ou não risco de seguir com o leilão. Isso porque a existência de Execução Fiscal movida pelo Fisco não é um pré-requisito para o exercício do privilégio creditório por parte da Fazenda, como já dito.

É preocupante, portanto, a desnecessidade de Execução Fiscal para reserva dos valores, embora o acórdão tenha asseverado que, nesta hipótese, o levantamento de valores penhorados fique condicionado à “ordem de pagamento a ser exarada em demanda que certifique a certeza, a liquidez e a exigibilidade da obrigação encartada no título executivo”.

Nada impede, dessa forma, que o credor com privilégio tributário habilite o seu crédito em todas as execuções ajuizadas por diligentes credores particulares, aqui chamados ironicamente de “quirografários”, requerendo a reserva de todos os valores eventualmente penhorados até decisão definitiva.

Difícil não concluir que, nesses casos, os credores particulares poderiam atuar como assistentes das Fazendas Públicas, na medida em que dedicam tempo, recursos e expectativas em processos que podem, ao fim e ao cabo, servir somente de instrumento para satisfazer créditos tributários, deixando-os à mingua e desestimulando-os, em última análise, a agir com diligência na busca de satisfazer seus próprios créditos.

Dessa forma, o julgamento do EREsp 1.603.324/SC pela Corte Especial do STJ, embora tenha uniformizado a jurisprudência da Corte sobre o tema, trouxe questões relevantes a serem discutidas e observadas, sobretudo em relação aos credores “comuns”, sem privilégios de direito material.

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1 Arts. 186, do CTN: “O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho.”

2 Art. 908, do CPC: “Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências.

§ 1º No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência.

§ 2º Não havendo título legal à preferência, o dinheiro será distribuído entre os concorrentes, observando-se a anterioridade de cada penhora.”

Matheus Lira
Advogado e sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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