Tratadas, por vezes, como corriqueiras, as atividades estatais de persecução penal têm o potencial de representar a fronteira, em última análise, entre a hipertrofia do punitivismo e a insuficiência da intervenção estatal. De fato, como bem salienta Norberto Bobbio, ¨a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole totalitária1¨.
No Brasil, vivemos em um Estado Democrático de Direito, como determina a CRFB. É mandatório que a busca pelo sistema de justiça criminal mais eficiente possível se desenvolva sem descuidar do respeito aos direitos fundamentais de todos aqueles que se submetem à força do Estado.
Em paralelo, a LGPD introduziu no sistema jurídico brasileiro um microssistema normativo protetivo da autodeterminação informativa da pessoa natural, dando maior densidade ao direito fundamental à proteção de dados pessoais, já reconhecido pelo STF2 e, depois, pelo próprio Parlamento, quando da promulgação da EC 115/22, que inseriu o inciso LXXIX no art. 5º da Constituição Federal.
Nesse passo, a LGPD, inaugura não só um marco regulatório inédito no cenário nacional, mas também uma nova lógica por trás do tratamento dos dados pessoais das pessoas naturais nos cenários em que é aplicada.
Com objetivos expressos de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural, a LGPD pretende proteger os titulares de dados pessoais das consequências nefastas do tratamento ilegal para a autodeterminação informativa.
Em que pese a importância do tema, a consequência de dar à proteção de dados pessoais o status de Direito Fundamental é reconhecer-lhe características típicas de tal categoria de direitos, como a inalienabilidade, a imprescritibilidade, a universalidade e a identidade. Tais direitos são ainda dotados de eficácia objetiva, o que faz com que eles irradiem efeitos para o legislativo, executivo e judiciário na prática, ou seja, quando na execução de suas atividades.
Parece haver, então, um novo desafio para gestão pública. Isso porque o desenvolvimento da tecnologia trouxe a reboque o ônus de se preservar os direitos fundamentais do cidadão, seja no manejo da política pública por meio legislativo, seja durante a execução de mandamentos legais ou na atividade jurisdicional.
O legislador brasileiro, ao instituir, por meio da LGPD, o sistema brasileiro de proteção de dados pessoais, decidiu pela adoção de um sistema compreensivo. Isso significa que a legislação protetiva tem um amplo escopo de incidência, seja objetivo (todo e qualquer tratamento de dados pessoais), seja subjetivo (aplicando-se a todas as pessoas, privadas ou pública, que realizem o referido tratamento).
Além disso, a norma geral sobre proteção de dados pessoais estabelece princípios, regras, sistemas de responsabilização, diálogos de fontes, competências administrativas e muito mais.
Isso não impediu, no entanto, que a LGPD previsse algumas ressalvas quanto ao seu âmbito de incidência. A limitação do seu escopo material é expressamente prevista pelo seu art. 4º.
No que diz respeito à atividade de segurança pública, assume especial importância a alínea “d”, do inciso III do mencionado dispositivo,3 que dispõe não ser a LGPD aplicável ao tratamento de dados pessoais realizado com a finalidade exclusiva de atividades de investigação ou repressão de infrações penais.
A pergunta que surge parece óbvia, mas um olhar mais atento identificará uma digressão mais profunda do que se imagina. Afinal: A LGPD se aplica às atividades de persecução penal?
Para enfrentar o tema com a devida antifragilidade4, devemos retirar do emaranhado de incertezas alguns antecedentes dogmáticos e lógicos. Vejamos a letra da lei:
Art. 4º Esta lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais:
(...)
III - realizado para fins exclusivos de:
a) segurança pública;
b) defesa nacional;
c) segurança do Estado; ou
d) atividades de investigação e repressão de infrações penais; ou
Da leitura do dispositivo citado, é possível concluir que, para a não incidência direta e integral da LGPD, é necessário que a atividade de tratamento analisada pressuponha exclusivamente alguma das finalidades elencadas anteriormente.
Em outras palavras, o tratamento de dados pessoais que não guarde conformidade com a finalidade exclusiva das exceções legais se submete ao regramento da LGPD.
A complexidade desse ponto encontra-se em definir quais, dentre as inúmeras atividades de tratamento de dados pessoais praticadas pelos órgãos públicos pertinentes, servem, de forma exclusiva, em sua finalidade, à persecução penal.
A título de ilustração do cenário que se enfrenta, tome-se por exemplo um crime de furto de veículo em que haja possibilidade de coleta de material datiloscópico para que a atividade de papiloscopia policial seja capaz de identificar o autor do fato.
O trabalho do papiloscopista policial será o de coletar com a maior precisão possível o vestígio da “impressão digital” deixado na cena do crime para, então, compará-lo com um banco de dados disponível e, em caso de correspondência, identificar o dono daquele material biológico.
O parâmetro de comparação, portanto, será um sistema que guarda a impressão datiloscópica das pessoas de forma perene, inerte, à disposição do Estado para pronto acesso. Daí indaga-se: a manutenção de dados pessoais nesta data base precisa ou não estar adequado à LGPD?
É dizer que, em estado inerte, antes do desenvolvimento da dinâmica das atividades de persecução penal, existe à disposição do Estado um aparato tecnológico desenvolvido (umas vezes mais, outras, menos) para suportar o bom desenvolvimento da prestação do serviço público.
Não há persecução penal em andamento nesses casos, o que faz, em tese, incidirem as normativas pertinentes de proteção de dados pessoais. Isso porque, de acordo com o próprio texto da exceção à incidência material da LGPD, não se aplica a normativa de proteção de dados pessoais ao tratamento realizado para fins exclusivos de persecução penal, ou seja, a exceção parece não abranger tratamentos de dados pessoais que, pela via indireta, servem àquelas hipóteses elencadas.
Neste cenário, a melhor interpretação parece ser a de que não é a tipicidade da atuação estatal o critério para a não incidência da Lei de Proteção de Dados Pessoais, mas a finalidade (exclusiva, frise-se) de uma determinada atividade de tratamento de dados.
Uma dentre muitas outras. Todas inseridas no iter da atuação persecutória, seja na fase processual ou na fase inquisitiva (ou pré-processual, como preferem alguns).
Desta forma, somente algumas delas, entretanto, guardam finalidade exclusiva de servir diretamente à persecução penal – e a estas, e somente estas, não se aplicariam todos os controles da LGPD5.
Harmonizar o direito de proteção de dados pessoais com a persecução penal é um dever do Estado. Definir tão objetivamente quanto possível o limite para a intervenção estatal no direito fundamental à proteção de dados pessoais não só é solução de segurança jurídica como equilibra as expectativas dos titulares em relação ao braço mais invasivo do Estado.
A manutenção de registros auditáveis de ponta a ponta das atividades de tratamento de dados pessoais que acontecem enquanto a fase processual da persecução penal não acontece parece ser, a partir da LGPD, uma obrigação.
Desta forma, parece certo afirmar como falso o recorrente recurso retórico – ainda comum em doutrina e em julgados sobre o tema – de afirmar que a LGPD não se aplica às polícias porque os controles da privacidade no âmbito das suas atividades típicas serão objeto de legislação específica.
A atividade típica do órgão público, como abordado anteriormente, não reflete necessariamente a natureza de todos os processamentos de dados que ali acontecem.
Órgãos que servem ao público através atividades de Estado voltadas à segurança pública e à persecução penal também se submetem à LGPD em alguma medida – mesmo no bojo das suas atividades típicas. Para isso, precisam se dedicar à formação de uma postura institucional sólida sobre o tema, sob pena de afrontar direitos fundamentais de todos os titulares potencialmente alcançados.
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1 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador. Ed. JusPodivm, 2020. p. 41.
2 Julgamento conjunto de medida liminar nas ADIs 6387, 6388, 6389, 6393, 6390 disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/verImpressao.asp?imprimir=true&incidente=5895165 – acesso em 15/10/2021.
3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm - acesso em 15/10/21.
4 TALEB, Nassim Nicholas. Antifragil: coisas que se beneficiam do caos /Nassim Nicholas Taleb: tradução Renato Marques – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2020.¨.
5 Ressalta-se, por oportuno, que esta afirmação ainda merece trabalho específico de estudo dogmático, uma vez que o parágrafo primeiro do artigo 4º da Lei 13.718/19 informa que, apesar de as hipóteses do inciso III carecerem de legislação específica, deverão obedecer aos princípios gerais de proteção de dados pessoais e os direitos dos titulares previstos pela LGPD.