Migalhas de Peso

Cyberbullying e o Direito Penal Contemporâneo

As possibilidades geradas pela conexão rápida de pessoas de todo o mundo são infinitas. Mas, de igual forma, as práticas criminosas também são muitas, merecendo especial atenção.

9/1/2023

Podemos afirmar, com algum grau de precisão, que vivemos hoje em um mundo que está inteiramente interconectado. Atualmente, qualquer pessoa com um celular na mão e acesso à internet tem a possibilidade de estar em contato com outras ao redor do globo terrestre. Se por um lado essa aproximação trouxe diversos benefícios como a redução de barreiras demográficas, por outro, nos expôs a perigos até então inexistentes: a prática de crimes no ambiente virtual. Dentro desse contexto, uma das modalidades de crime que “migraram” do mundo “real” para o “virtual” fora o bullying. Este é definido, segundo FANTE (2013) como

O desejo consciente e deliberado de maltratar uma pessoa e colocá-la sob tensão; (...) utilizado pela literatura psicológica anglo-saxônica nos estudos sobre o problema da violência escolar. O termo foi adotado pela maioria dos países para determinar o assédio moral dentro do meio acadêmico. O Brasil foi um dos países que aceitou essa denominação, sendo que bully pode ser traduzido como “valentão”, “tirano”, ou como verbo, “brutalizar”, “tiranizar”, “amedrontar”.

No mundo da internet 5G, com velocidades de navegação cada vez mais rápidas, e com os avanços das tecnologias de compartilhamento de mensagens, fotos e vídeos (vide redes sociais), o cyberbullying é a evolução natural – e ainda mais danosa do daquele. A internet tem um poder potencializador deste tipo de ação criminosa pelo simples fato de ser bastante capilar, ou seja, conseguir proliferar sobremaneira a exposição do conteúdo para terceiros. É o que anota Ana Beatriz Silva1 (2010, p. 137), in verbis

Quando se trata de bullying virtual – via internet especificamente – essa realidade apresenta uma peculiaridade. Quando se posta uma imagem ou mensagem na rede, e ela é visualizada por terceiros, o fator repetição se dá de forma imediata, a criança fica exposta e vulnerável, tornando-se vítima de chacotas e humilhações, uma vez que outras crianças (e muitas pessoas) veem a mesma imagem. É como se a vítima, em frações de segundos, tivesse sofrido um número incalculável de agressões, daí a repetição, em espaço público.

Um dos grandes problemas do cyberbullying é a maior dificuldade de identificação e processamento dos agressores. Se por um lado o bullying geralmente ocorria no ambiente escolar, por uma pessoa ou grupo de pessoas definidas, na modalidade digital deste crime a situação muda completamente de figura. Além de permitir, em certo grau, o anonimato dos ofensores, a proliferação das ofensas pela rede acaba muitas vezes por perpetuar o comportamento por um número impossível de ser mensurado de usuários.

Enquanto de um lado temos uma evolução quase que diária das novas tecnologias, e consequentemente dos ambientes onde há a prática de crimes como o cyberbullying, por outro o Direito Penal não acompanha essas possibilidades. Apesar de existirem Projetos de Lei para tratar do tema tramitando no Congresso Nacional desde 2011 (vide PL 1.573/11), até o presente momento não existe nenhuma legislação em vigência para tratar especificamente sobre o tratamento penal e processual penal deste tipo de conduta. Sobre esse dado, vale frisar que existem atualmente os seguintes Projetos de Lei que buscam regular a matéria:

Projeto de lei 1.573/11 – Acrescenta o art. 140-A ao decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 117-A à lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que "dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências", a fim de tipificar o crime de "bullying".

Projeto de lei 3.686/15 – Tipifica o crime de intimidação sistemática (Bullying), prevendo causa de aumento se a conduta for realizada por meio da internet (Cyberbullying).

Projeto de lei 6.521/19 – Tipifica o crime de intimidação sistemática virtual (cyberbullying) e o assédio sistemático virtual (cyberstalking).

Projeto de lei 3.402/21 – Acrescenta o art. 140-A ao decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de cyberbullying.

O único Projeto de Lei sobre este tema a avançar no Congresso Nacional até atualmente foi o PL 5.369/09, que instituiu o Programa de Combate ao Bullying, tendo sido convertido na lei 13.185/15 pela então presidente Dilma Roussef. A Lei em questão traz a seguinte definição sistemática para o cyberbullying em seu parágrafo único do art. 2º2, in verbis:

Art. 2º Caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying) quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda:

I - ataques físicos;

II - insultos pessoais;

III - comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;

IV - ameaças por quaisquer meios;

V - grafites depreciativos;

VI - expressões preconceituosas;

VII - isolamento social consciente e premeditado;

VIII - pilhérias.

Parágrafo único. Há intimidação sistemática na rede mundial de computadores (cyberbullying), quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.

Apesar de trazer uma definição legal para o cyberbullying, a lei em comento não traz qualquer tipo de responsabilização criminal dos ofensores, não tratando tampouco de possíveis formas de identificação e processamento destes. Percebe-se, nitidamente, o vácuo legal existente no sistema jurídico brasileiro no que diz respeito ao tratamento legal e penal do tema. Infelizmente, isso alimenta, mais ainda o crescimento destas práticas certamente delituosas no ambiente virtual. Sobre essa ausência de legislação penal e sobre o tema, vale destacar o posicionamento de Patrícia Pinheiro3 (2013)

O maior estímulo aos crimes virtuais é dado pela crença de que o meio digital é um ambienta marginal, um submundo em que a ilegalidade impera. Essa postura existe porque a sociedade não sente que o meio é suficientemente vigiado e que seus crimes são adequadamente punidos. O conjunto norma-sanção é tão necessário no mundo digital quanto no real. Se houver essa falta de crédito na capacidade punitiva da sociedade digital, os crimes aumentarão e os negócios virtuais serão desestimulados.

Apesar de não haver legislação específica a tratar do tema, algumas das condutas inerentes ao cyberbullying podem ser enquadradas em determinados tipos penais. É o que ocorre, por exemplo, quando podemos verificar a ocorrência de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria). Em alguns casos é possível vislumbrar também outros crimes como o de ameaça, racismo e o de LGBTfobia (que foram equiparados aos raciais pelo STF em 2019).

Há, no entanto, uma única vertente do cyberbullying que possui tratamento penal devidamente tipificado em nosso ordenamento jurídico. O sexting trata-se da disseminação não autorizada de conteúdo erótico com terceiros, ou, como é popularmente conhecida, a “exposição íntima (exposed)”. Os avanços nesse tema vieram com a alteração do inciso II do art. 7º da Lei Maria da Penha (lei 11.340/06) e com a inclusão do art. 218-C no Código Penal4, in verbis

Art. 218-C. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. (sem grifos no original).

Como visto, a inexistência do tipo penal para tratar dos casos de cyberbullying dificultam a penalização dos agentes envolvidos nessa prática infame. Muito embora existam atualmente diversas possibilidades de enquadramento das condutas praticadas, estas são genéricas por demais, e em muitas casos não são adequadamente proporcionais à gravidade do delito. Podemos ver uma mobilização, ainda que tímida, do Congresso Nacional em tentar legislar sobre o tema. No entanto, mesmo com o passar de todos esses anos, não há nada de concreto sobre o assunto.

Definitivamente os avanços sociais promovidos pela digitalização do mundo são notórios e dignos de aplausos. As possibilidades geradas pela conexão rápida de pessoas de todo o mundo são infinitas. Mas, de igual forma, as práticas criminosas também são muitas, merecendo especial atenção do nosso Poder Legislativo. É cediço que já passou da hora deste tema, tão importante e caro à nossa sociedade, seja tratado com o devido respeito e rigorosidade que exige.

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1 SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Bullying: mentes perigosas nas escolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

2 Lei 13.185/15

3 PINHEIRO, Patrícia Peck. #DIREITODIGITAL. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

4 Código Penal

Paloma Gurgel de Oliveira Cerqueira Bandeira
Advogada criminalista. Atuante na defesa de custodiados em presídios federais. Doutora pela Universidade Nacional de Mar Del Plata. Pós-doutora pelas Universidades de Salamanca (Espanha) e Messina (Itália).

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