A lei 13.964/19 instituiu no ordenamento jurídico brasileiro a figura do juiz de garantias. Essa importante inovação trouxe luz a um antigo problema há muito criticado no atual sistema acusatório pátrio: a maculação da imparcialidade do juiz natural da causa, vez que este era responsável, desde sempre, por também atuar na fase mais inquisitorial do nosso sistema: o inquérito policial.
É claro, e evidente, que ao decretar prisões, determinar a realização de provas, ou decidir preliminarmente pela denúncia ou não do acusado, o juiz (como qualquer ser humano médio) já faça um pré-julgamento da causa. Mais certo ainda é que esse pré-julgamento o acompanha durante toda a fase de instrução (e posterior sentença), ferindo assim o princípio constitucional da presunção de inocência.
A nossa Carta Magna de 1988 fez a opção constitucional pelo sistema acusatório do processo penal, com as atribuições de cada uma das partes bem definidas e delimitadas. Nesse sistema, o Ministério Público investiga e acusa, o defensor (e/ou advogado) promove a defesa técnica e o juiz decide.
A opção constitucional por esse sistema fez-se necessária para garantir a imparcialidade do juiz no julgamento, afastando-o assim de tomar qualquer juízo de valor sobre a pessoa do acusado/réu.
Ao se pensar no processo penal como uma agressão estatal contra o direito de liberdade do indivíduo, torna-se clara a necessidade da existência dessa imparcialidade no julgamento. Qualquer pessoa pode, pelos mais motivos diversos, ver contra si instaurado um inquérito policial e, posteriormente, um processo penal. Nessa situação, é salutar defender que aquele que será responsável pelo nosso julgamento não tenha qualquer pré-julgamento quanto à nossa presunção de inocência, fazendo assim valer esse outro princípio constitucional.
Nesse debate sobre a importância de se buscar manter a imparcialidade do juiz, faz-se mister trazer à baila a diferenciação entre a imparcialidade objetiva e a subjetiva. A imparcialidade subjetiva diz respeito à convicção pessoal do juiz quanto à pessoa do acusado/réu, reverberando, para todos os efeitos legais, a inexistência de um pré-julgamento daquele que responde ao inquérito/processo. Nota-se que esta diz respeito estritamente ao julgamento de valor pessoal do magistrado.
Por seu turno, a imparcialidade subjetiva diz respeito à atuação fática do magistrado, de modo que ele deve garantir ao acusado/réu o asseguramento de todas as suas garantias constitucionais e legais no exercício da sua defesa. Ou seja, não basta ao juiz ser imparcial, ele também deve agir de forma imparcial.
Oportuno trazer ao debate sobre a imparcialidade do juiz, os ensinamentos de Aury Lopes Jr1.
A imparcialidade objetiva diz respeito a se tal juiz se encontra em uma situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer dúvida razoável acerca de sua imparcialidade. Em ambos os casos, a parcialidade cria a desconfiança e a incerteza na comunidade e nas suas instituições. Não basta estar subjetivamente protegido; é importante que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial (é a visibilidade ou estética de imparcialidade a seguir tratada).
Ao criar a figura do juiz de garantias, a lei 13.964/19 atribuiu a ele a responsabilidade pelas decisões tomadas na fase do inquérito policial, ou seja, antes da formalização de início do processo penal em si. Sobre esta fase, vale anotar que ela é caracterizada predominantemente pelo seu caráter inquisitorial, em que os direitos e garantias dos indivíduos mais costumam ser relativizados na sedenta busca pela aplicação da força policial aos acusados. É nesta fase que ocorrem prisões em flagrante, preventivas, interceptações telefônicas e de mensagens, levantamento indiscriminado de informações bancárias, fiscais e outras atividades na busca pela produção indiscriminada de provas contra o acusado.
Pelos atos anteriormente enumerados é possível se vislumbrar as inúmeras possibilidades passíveis de macular a imparcialidade do juiz que teria, ao final do processo, o dever de sentencia-lo. Ao determinar uma interceptação telefônica, por exemplo, o juiz já fez uma análise inicial sobre: a plausibilidade de culpa do acusado, a tipicidade da conduta (uma vez que não poderia determinar a medida para fatos atípicos), e a necessidade da confirmação das suspeitas existentes. Tal fato, por si só, evidencia o problema que existia em nosso ordenamento ante a inexistência do juiz de garantias.
Justamente para resolver esse problema veio a implantação do juiz de garantias pela lei 13.964/19, também conhecida como pacote “anticrime”. A referida Lei veio acrescentar ao Código de Processo Penal os arts. 3-A ao 3-F.
O art. 3-A veio expressamente reforçar a opção pelo sistema acusatório no ordenamento jurídico brasileiro, vedando ao juiz a iniciativa na produção probatória. Esse comando legal ratifica a imparcialidade objetiva do juiz que, no sistema acusatório, deve manter-se inerte esperando a provocação das partes para então tomar uma decisão.
Por seu turno, o art. 3-B do Código de Processo Penal veio efetivamente introduzir em nosso ordenamento o juiz de garantias, tornando-o responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e salvaguarda dos direitos individuais. Dentre as inúmeras atribuições deste juiz, vale a pena destacar os seguintes:
I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;
II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;
III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;
IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;
V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;
VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;
VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;
VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;
XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;
XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;
Como se vê, a criação da figura do juiz de garantias veio reforçar o sistema acusatório no ordenamento jurídico brasileiro. Ao se assegurar a equidistância do juiz das partes do processo, acusação e defesa, veio-se a agraciar o princípio da paridade das armas, bem como a presunção de inocência e imparcialidade do juiz.
Oportuno mencionar que atualmente a instituição do juiz de garantias encontra-se sobrestada em todo o nosso país. O Ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli suspendeu a vacatio legis do novel instituto por 180 (cento e oitenta) dias com a alegação de dar prazo o suficiente para que os Tribunais de Justiça de todos os Estados da federação pudessem se adequar “à nova realidade”.
Posteriormente, o Ministro Luiz Fux, numa decisão monocrática em sede de Ações Diretas de Inconstitucionalida (ADIns 6298, 6299, 6300 e 6305), suspendeu (por tempo indeterminado) a eficácia dos arts. 3-A a 3-F do Código de Processo Penal (justamente os que tratam do juiz de garantias).
Sobre a decisão concedida pelo Ministro Luiz Fux, é válido trazer à tona os ensinamentos de Aury Lopes Jr. (2020)2
Sua liminar não suspendeu apenas artigos, suspendeu a evolução, a democratização do processo penal. Lamento profundamente a decisão do Ministro, que espero seja urgentemente revista pelo plenário do STF, para que finalmente o processo penal se liberte da matriz fascista e inquisitória do Código de Rocco.
Como visto alhures, e em consonância com a opinião do ilustre doutrinador, o juiz de garantias trouxe um ar de renovação e avanço ao sistema acusatório. Apesar de assim ser anteriormente classificado, era inegável o caráter inquisitório do nosso procedimento penal, com a confusão do juiz nos papéis de acusador e julgador.
A novel legislação veio dar cabo a essa situação irregular em nosso ordenamento, trazendo mais garantias ao acusado, principalmente de que este seria julgado por um juiz isento (imparcial).
No entanto, como não poderia deixar de ser, movimentos retrógrados trouxeram novamente para debate uma conquista já legislada. Infelizmente, é de se reconhecer a existência de um movimento punitivista contendo uma parte significativa de operadores do Direito. Estes acreditam na repressão estatal indiscriminada como a forma mais efetiva de controle de criminalidade.
Sabemos que não é assim, ou pelo menos não deveria ser assim, atropelando direitos e garantias individuais, que o Estado deve fazer valer a tutela estatal. Exatamente por essa razão, é necessário que o julgamento improcedente das ADIns que questionam a instituição do juiz de garantias seja realizado o quanto antes.
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1 (Lopes Jr., Aury 2020, p.93)
2 (Lopes Jr., Aury 2020, p.40)