Olá nobres colegas Migalheiros!
Desejando a todos que 2023 seja um ótimo ano, com muita saúde, paz, prosperidade e produtividade, venho novamente trazer mais alguns temas de Psicologia Jurídica para minha parcela de contribuição aos debates.
Este artigo pretende analisar os contextos de avaliação psicológica judicial em que se discute a ocorrência (ou não) de alienação parental, invocada por qualquer das partes (ou por ambas) em ações judiciais envolvendo guarda de filhos, guarda compartilhada, regulamentação de visitas, acusações (verídicas ou não) de abuso sexual infantil. Para tanto, a abordagem será uma revisão bibliográfica da literatura e dos construtos legais e procedimentais da Psicologia Jurídica na atuação em Varas de Família, bem como críticas aos contextos e desafios enfrentados pelos profissionais na situação paradoxal de precisar responder à demanda de declarar a ocorrência (ou não) de alienação parental e não dispor de instrumentos e recursos apropriados para a incumbência.
Em 26/08/2010 foi promulgada a lei 12.318/10 (BRASIL, 2010), que trata de atos de alienação parental, a partir do Projeto de lei (PL) do Congresso Nacional 4.053/08.
Houve essa necessidade de se elaborar tal dispositivo legal em decorrência do insucesso de aplicação da lei 11.698/08 (BRASIL, 2008), da Guarda Compartilhada, que determinada que “a guarda compartilhada será aplicada sempre que possível”, o que se tornou fonte de atitudes temerárias de quem não tinha interesse em compartilhar a guarda do(s) filho(s), interpretações distorcidas dos operadores do Direito, e decisões equivocadas dos magistrados. Aqueles pais/mães que reivindicavam a guarda compartilhada como um direito à convivência equilibrada da criança com ambos os genitores após a separação foram surpreendidos com sentenças negatórias (ex.: indeferir a guarda compartilhada, por acusação de abuso sexual, maus-tratos, abandono, negligência contra a criança) ou situações adversas (ex.: o guardião obstruir contato da criança com o outro genitor; ou mudar de residência e/ou escola da criança sem comunicar o outro genitor).
Como a lei da Guarda Compartilhada (GC) não estava sendo devidamente cumprida, houve uma preocupação dos profissionais de Psicologia em dar visibilidade à Alienação Parental (AP) mediante a atuação dos psicólogos clínicos e jurídicos (uma parcela importante de Peritos mas sobretudo os psicólogos autônomos que prestam serviços exclusivamente a uma das partes envolvidas em processos judiciais, denominados Assistentes Técnicos), para que a AP pudesse ser incluída na nova edição do DSM-5, mas lamentavelmente esse objetivo não foi atingido. De qualquer forma, o Congresso brasileiro se apressou em tipificar tais atos nocivos ao desenvolvimento dos filhos de pais envolvidos em litígios conflituosos, elencando atos exemplificativos de AP e prevendo sanções aos seus agentes, na lei federal 12.318/10 (SILVA, 2021).
A necessidade de tipificação legal dos atos de alienação parental é uma reivindicação antiga dos pais/mães que, após a separação conjugal (divórcio ou dissolução da união estável), enfrentavam dificuldades em conviver com seu(s) filho(s) menor(es), notavam alterações de comportamento em relação a eles (esquivas, não querer ficar muito tempo com aquele(a) pai/mãe, não comunicar a ele(a) de eventos importantes como passeios, consultas médicas, etc., não informar acontecimentos escolares, como o boletim ou festas, etc.), alterações no discurso e sentimentos (repetir a fala e/ou reações emocionais do(a) pai/mãe guardião(ã)) e em casos mais severos, a recusa do(s) filho(s) em estar com aquele(a) genitor(a), chegando a atos de hostilização e agressividade, ou medo e estresse da perspectiva de estar com aquele(a) genitor(a), por acreditar que ele(a) tenha abusado física ou sexualmente dele(s), a partir da indução do(a) guardião(ã) de que ocorreu alguma forma de violência. Conforme se verá adiante, essa prática leva a criança a estruturar uma ‘memória falsa’ de que ‘ocorreu o abuso’, e ela desenvolve reações físicas e psicológicas semelhantes às de uma criança que tenha sido efetivamente abusada, ludibriando os profissionais do sistema de proteção (delegados, juízes) e de assistência (assistentes sociais, psicólogos) (SILVA, 2021).
A elaboração do anteprojeto de lei da alienação parental ocorreu em duas instâncias: uma página na internet para consulta, dúvidas e sugestões, e reuniões periódicas com os profissionais pesquisadores e as pessoas que estavam vivenciando de perto as situações descritas de forma semelhante nas pesquisas de Gardner e colaboradores. Desse árduo trabalho, resultou, dentre outras coisas, que: a descrição das situações vivenciadas pelos pais/mães elencou os incisos I a VII do rol exemplificativo de atos de alienação parental do artigo 1º do PL (que, quando aprovado como Lei, foi transformado em artigo 2º), e na inclusão, por sugestão desta autora, do que se tornou o artigo 5º da Lei: que o profissional ou equipe de avaliadores comprove conhecimento ou experiência no tema da alienação parental. Esta autora esperava que, com a aprovação do texto, a própria Lei, ou uma Norma Regulamentadora (NR) especificasse os critérios de comprovação de conhecimento ou experiência no tema da alienação parental, mas isso não ocorreu.
Dessa situação acima descrita surge um impasse até o momento insuperável: a alienação parental passa a ser admitida como um instituto jurídico, invocada pelos operadores do direito nas suas argumentações – nem sempre legítimas, conforme se verá oportunamente ao longo deste artigo -, porém não está sendo devidamente identificada e avaliada em decorrência de dificuldades e até resistências por parte dos profissionais técnicos, sobretudo de Psicologia. Em outras palavras, os operadores do Direito (advogados, promotores, juízes) exigem que os psicólogos confirmem a ocorrência de alienação parental, porém, os psicólogos se encontram sem recursos, subsídios e, em alguns casos, até amparo ou disposição para realizar tal tarefa. O resultado disso é a formação de lacunas na lei, interpretações distorcidas ou equivocadas, despreparo e inépcia dos profissionais na avaliação, insuficiência ou até inexistência de critérios de avaliação. Cenário perfeito para pessoas e entidades que, sem compreender os entraves da aplicação da lei, e com uma interpretação limitada e reducionista do contexto, exigem equivocadamente sua revogação.
O advento da lei 14.340, de maio de 2022 (BRASIL, 2022) trouxe avanços significativos no texto da lei anterior, porém continua deixando em aberto a lacuna quanto à qualificação do profissional ou equipe para avaliar os casos de alienação parental: identificação, contextualização, autenticidade, etc. E são exatamente esses obstáculos e desafios da Psicologia Jurídica em avaliar os casos de alienação parental, que são o objeto de discussão deste artigo, conforme se expõe a seguir.
A ausência de NR para regulamentar os critérios para se estabelecer o conhecimento ou experiência do profissional ou equipe para avaliar a ocorrência (ou não) de alienação parental conforme determina o art. 5º a lei 12.318/10, não foi devidamente suprida pela lei 14.340/22: as exigências de maiores tarefas avaliativas e de redação de laudos informativos à autoridade judicial podem não vir acompanhadas da devida qualificação dos profissionais para realizá-las, sobretudo em comarcas de menor capacidade administrativa. Mesmo nas comarcas mais favorecidas, houve um prejuízo dos atendimentos aos jurisdicionados durante o período da pandemia da COVID-19 (com suspensão das atividades presenciais conforme Provimentos dos Tribunais de Justiça estaduais desde março/22, impossibilidade de atendimentos online sobretudo em casos de violência doméstica e contra criança ou adolescente), e a retomada dos trabalhos presenciais ocorreu gradualmente, ainda tentando atender àqueles casos anteriores à suspensão presencial. O resultado não poderia ser mais trágico: demora nos agendamentos, perícias psicológicas sendo marcadas com lapso de mais de um ou dois anos (mas a criança não pode esperar esse tempo!), insuficiência de procedimentos, entrevistas superficiais e, mais grave, sem a devida análise da ocorrência (ou não) de alienação parental. E, como se não bastasse, psicólogos estão sendo cerceados em seu exercício profissional, quando os órgãos de classe emitem normatizações ilegais como a Nota Técnica 4/22/GTEC/CG, do Conselho Federal de Psicologia (BRASIL, 2022), ‘recomendando’ (na prática, exigindo) que os psicólogos não utilizem o termo ‘alienação parental’ em seus documentos. Trata-se de uma normatização ilegal, porque é uma norma infralegal que, a pretexto de ‘recomendar’, pretende exigir que os psicólogos desobedeçam leis federais, caracterizando-se crime de desobediência civil, uma vez que, pelo princípio da legalidade previsto na nossa Constituição Federal de 1988 e legislação ordinária, “ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II da CF/88). Ou seja, somente uma lei federal ordinária, ou a própria Constituição, pode exigir que os psicólogos deixem de cumprir uma lei federal ordinária.
Na prática, as modificações sociais desde 2010, ano da promulgação da lei 12.318/10, vão moldando novos comportamentos nas famílias em litígio, objeto de atenção dos pesquisadores jurídicos, e que devem (ou deveriam) ser também dos pesquisadores da Ciência Psicológica. Surgiram variações da conduta da alienação parental que poderiam ampliar o rol exemplificativo dos incisos do art. 2º (por exemplo, com a necessidade de se criar a denominação alienação parental beyond borders, quando o(a) alienador(a) retira ilegalmente a criança ou adolescente do país de origem e a leva para outro, e se recusa a cumprir as determinações da Convenção de Haia de repatriação, no caso dos países signatários (SILVA, 2022); ou quando a alienação se estende para além das figuras parentais e atinge demais familiares (ex.: avós), tanto no polo ativo quanto passivo, no que WAQUIM e SALZER (2021) denominam “alienação familiar”; ou quando o(a) genitor(a) não guardião(â) é quem promove a alienação parental em desfavor do(a) guardião(â) por não conseguir visualizar0se individualmente e quer ter o controle total dos filhos (conduta denominada por Ferreira (2019) de “alienação parental às avessas”, podendo chegar ao que MADALENO (citado por RICARTE, 2021) denomina “auto-alienação parental ou alienação parental autoinflingida” ou ainda, outra modalidade de alienação parental é a chamada alienação parental judicial, que ocorre quando a autoridade judicial é enfraquecida ou esvaziada, e o juiz deixa de tomar as providências cabíveis e determinar as sanções (previstas no art. 6º da lei 12.318/10) contra o alienador (geralmente, a mãe guardiã) que obstrui as visitas do(a) outro(a) genitor(a) determinadas por ele mesmo, Juiz, nas sentenças! Ou quando não reverte a guarda, ou não determina a Guarda Compartilhada, nos casos em que o(a) alienador(a) acusa o outro de abuso sexual, mesmo comprovando-se a inautenticidade das acusações. Em ambos os casos, o juiz passa a falsa impressão de que “a criança está com a mãe, então está tudo bem”, o que nem sempre corresponde à verdade, porque um(a) genitor(a) que descumpre ordens judiciais, ou que emite falsas acusações contra o(a) outro(a) está sendo um mau exemplo para o(s) filho(s), ao ensinar-lhes que podem desobedecer autoridade impunemente (e depois, se queixam quando o filho desobedece a professora ou é violento com a diretora da escola... – ou podem partir para o extremo oposto, de acobertá-los e “dar-lhes razão”...) ou que podem fazer acusações levianas contra terceiros, apenas porque lhe desagradam, sem consciência das implicações! E a autoridade judicial que não toma as providências cabíveis para punir o alienador (pelos atos de alienação parental em si e pelo crime de desobediência civil) torna-se também corresponsável pela alienação parental.
Mas, voltamos à origem do problema: a inexistência ou insuficiência de qualificação e recursos dos psicólogos jurídicos para avaliar as ocorrências (ou não) de alienação parental
Temos objetivos estabelecidos, procedimentos regulamentados e válidos, finalidades definidas. Tudo pronto para que os psicólogos jurídicos possam identificar os casos de alienação parental e suas variações, bem como dar visibilidade às políticas públicas de proteção integral das crianças e adolescentes e suas famílias. Mas, como operacionalizar todas essas tarefas, quando não existe respaldo da Psicologia para qualificação dos profissionais, desenvolvimento de instrumentos mais incisivos e específicos e, sobretudo, não sofrer ameaças de cerceamento de atuação profissional com procedimentos administrativos ilegais e ilegítimos de órgãos de classe que pretendem ‘criminalizar’ tais práticas, com base em argumentos anacrônicos e infundados?
Conforme afirmação anterior, o construto da alienação parental não é doutrinário, e sim legal: o Judiciário delega aos psicólogos a incumbência de identificar sua ocorrência, para poder executar as providências cabíveis. Os psicólogos jurídicos permanecem cerceados em sua atuação, sem parâmetros, sem qualificação, sem instrumentos específicos – o que prejudica a visibilidade para os casos de alienação parental, sobretudo de natureza grave. E esse argumento dá margem às interpretações equivocadas de exigência de revogação das leis da alienação parental, assim como das próprias leis da guarda compartilhada, eliminando direitos e garantias fundamentais da criança e adolescente à proteção integral constitucional.
Como equacionar esse paradoxo?
- Em primeiro lugar, exigir uma Norma Regulamentadora (NR) que efetivamente defina os critérios de comprovação de experiência ou conhecimento acadêmico acerca do tema da alienação parental.
- Em segundo lugar, a revogação de todas os procedimentos administrativos que cerceiam a atuação dos psicólogos na avaliação da alienação parental, por serem manobras equivocadas e ilegais de obrigar os psicólogos a descumprir leis federais – o que, por si só, já caracteriza o crime de desobediência civil (art. 330 do Código Penal Brasileiro). De nada adianta termos instrumentos confiáveis e apropriados, quando os órgãos de classe utilizam mecanismos administrativos ilegais e ilegítimos para cercear a atuação profissional, pretendendo ‘criminalizar’ os psicólogos por declararem a gravidade do fenômeno da alienação parental que prejudica o desenvolvimento afetivo e vincular das crianças e adolescentes e que ameaça os direitos à sua proteção integral.
- Em terceiro lugar, o estabelecimento de políticas públicas de psicoeducação e orientação às famílias, mediação familiar, preventivas a evitar a cronificação dos litígios: conscientização acerca da guarda compartilhada, da ampla convivência da criança com ambos os genitores se cabíveis, respeito às diferenças parentais. Essas tarefas também podem ser exercidas pelo psicólogo jurídico, para além da avaliação pericial restrita à demanda judicial.
Considerações finais
O psicólogo jurídico deve zelar pelas prerrogativas profissionais, impedindo que pessoas e instituições prejudiquem de forma irrecuperável a atividade profissional. O fortalecimento da Psicologia Jurídica só ocorrerá com a união dos profissionais desta área (e os afins, que quiserem colaborar, e que sempre serão bem-vindos).
As mudanças estão aí, conclamando todos nós pais, filhos, profissionais, juristas, legisladores, instituições públicas e privadas a modificamos nossa postura, nossa mentalidade e nossas atitudes. Da mesma forma como a sociedade passou da arcaica estrutura patriarcal a um contexto mais participativo e igualitário, as políticas públicas, os projetos privados e as iniciativas (remuneradas ou não) terão que corresponder a essas novas demandas sociais. São importantes desafios, mas o resultado será a formação de novas gerações de crianças/adolescentes saudáveis, amadurecidos, compreensivos, tolerantes, íntegros, com vínculos afetivos e sociais fortalecidos! A proteção às leis da alienação parental e da guarda compartilhada, que garantem a integridade física e emocional de crianças e adolescentes também está nas mãos dos psicólogos jurídicos, como uma responsabilidade inexorável.
Pode-se desejar um lucro maior do que este?
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BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: .
BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 14.340, de 18 de maio de 2022. Altera a Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, para modificar procedimentos relativos à alienação parental, e a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer procedimentos adicionais para a suspensão do poder familiar. Disponível em: .
BRASIL. Conselho Federal de Psicologia. Nota Técnica nº 4/2022/GTEC/CG. Nota técnica sobre os impactos da lei nº 12.318/2010 na atuação das psicólogas e dos psicólogos. Brasília, 01 set. 2022. Disponível em:
. Acesso em 02 set. 2022.
BRAZIL, G. Pais tóxicos e necessidade de afastamento judicial para proteção dos filhos: primeiras notas sobre efeitos terapêuticos do não convívio. In: WAQUIM, B.B.; SALZER, F.; COPETTI, L. (orgs.). Alienação Parental. Aspectos multidisciplinares. Curitiba: Juruá, p. 13-32, 2021. cap.
BOUSI, C.C.F. Alienação parental. Uma interface do Direito e da Psicologia. Curitiba: Juruá, 2012.
COPETTI, L.; BARBEIRO, P.C. A autoalienação sob a perspectiva da doutrina da proteção integral e do dever-ser parental. In: WAQUIM, B.B.; SALZER, F.; COPETTI, L. (orgs.). Alienação Parental. Aspectos multidisciplinares. Curitiba: Juruá, p. 45-60, 2021. cap.
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