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A fusão de municípios como solução para as distorções do pacto federativo

Fundir os municípios é gratuito, é simples, mas ignora as reais razões da distorção do pacto federativo.

6/1/2023

A fusão de municípios sempre reaparece como uma solução jurídica, política e econômica para a penúria fiscal de muitas cidades brasileiras. Mas essa solução, ainda que atraente à primeira vista, está longe de ser uma solução definitiva.

Como todo problema amplamente difundido, a falta de recursos para as administrações municipais suscita soluções. Estratégias bem pensadas e discutidas com racionalidade, apoiadas em experiências bem-sucedidas e implementadas com coragem política são muito bem-vindas. Esse é claramente o caminho.

Oxalá exista uma solução mágica, isenta de sacrifícios cognitivos e custos financeiros. Normalmente não existe uma solução tão boa assim.

Uma das ideias recorrente para solucionar as distorções que o pacto federativo é a identificação de municípios inviáveis e sua fusão com o vizinho. Ocorre que a fusão de municípios como solução primeira, e às vezes tida como definitiva, merece uma análise mais apurada. E qualquer análise levará a conclusão de que se trata de uma solução simplória, gratuita e pouco confrontada com a realidade. É uma promessa rápida e milagrosa para o flagelo de muitas cidades, mas infelizmente há outras questões a serem levadas em consideração.

É evidente que há no país um desequilíbrio no pacto federativo. O Brasil, que adotou um complexo e desafiador modelo de três níveis federativos, apresenta uma evidente crise.

A Constituição Federal distribuiu competências, atribuições e receitas à União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Conforme diversas análises atentas, e mesmo as distraídas, ao município coube um desproporcional quinhão de atribuições que englobam a saúde e educação básicas, assistência social, desenvolvimento urbanístico, transporte público e de alguma forma, atua nos atos da vida cotidiana, chamados carinhosamente de questões de “interesse local”.

O cidadão tem sua vida moldada pela cidade em que vive. Não é por outra razão que historicamente o ente político mais relevante é a Cidade. A cidade é o ente mais visível. São de fato os núcleos autônomos mais evidentes. A cidade é, possivelmente, o menos ficcional dos entes e o mais fácil de ser identificado e delimitado, ainda que não por uma muralha, como eram cidades da idade média europeia. O cidadão não tem essa denominação à toa. A cidade é o universo conhecido e conectado em que as pessoas interagem, trabalham, percorrem e convivem. Essa identificação da pessoa com a cidade parece ser superior à identificação com os demais entes. É como dizem muitos municipalistas: a vida acontece nas cidades. Dito que revela a relevância do âmbito local na vida cotidiana e, consequentemente, a relevância do poder público local em prestar os serviços públicos mais relevantes.

O cidadão sabe onde está sua prefeita ou prefeito e na maioria das cidades consegue cobrar sua atuação. Pode cobrar seus vereadores. O mesmo não se dá, com a mesma facilidade, com os representantes dos níveis estadual e federal.

Ocorre, contudo, que para a gigantesca porção de responsabilidade atribuídas aos municípios não são conferidas receitas proporcionais.

Ao se deparar com dificuldade dos municípios, é comum se buscar a solução a partir da casuística. Observando os municípios prósperos, é tentador imaginar que neles haja a solução para todos os demais. Surge então um primeiro ponto de análise: municípios com muitas receitas próprias, de um lado, e municípios com poucas receitas. O passo seguinte seria apontar os municípios com poucas receitas como sendo o modelo a ser evitado. Por consequência, os municípios com múltiplas fontes de receita, seriam os paradigmas a serem imitados.

Para aqueles que defendem que municípios não deveriam depender de transferências, é preciso estar atento ao desenho constitucional. As receitas públicas não se dividem entre receitas tributárias, de um lado, e esmolas da União, de outro. A Constituição distribui as receitas de forma a atender às competências de cada ente. Essas receitas podem ser tributárias, como a instituição de impostos sobre serviços e propriedade urbana para os municípios, como podem ser a participação na arrecadação de tributos, como ocorre com o Imposto de Renda que, embora seja arrecadado pela atividade administrativa da União, seu produto não é de propriedade do Governo Federal, mas de todos os entes federados.

Desta forma, entender que os municípios que “dependem” de transferências da União seriam inviáveis, é uma análise equivocada; ao menos incompleta. Os tais repasses, na maioria dos casos, não são doações, nem ato de liberalidade, mas receitas próprias dos entes. Receitas constitucionalmente reservadas aos municípios. Foram com elas que a Constituição estabeleceu que sobreviveriam.

Algumas propostas de reforma tributária pretendem privar os municípios de tributos tradicionalmente próprios, como o ISS. Dessa forma, mesmo o mais saudável e próspero município brasileiro seria rapidamente considerado inviável pelo critério da dependência de transferências. Isso porque, a extinção do tributo municipal seria compensada com uma participação (via transferência) em outro tributo que passaria a um ente maior (estado ou união). Ao se suprir o imposto sobre serviços (ISS), clássico tributo municipal, o município teria uma participação no novo imposto gerado da sua fusão com o imposto sobre comercialização (ICMS). O município teria sua arrecadação direta reduzida na exata proporção que se aumentariam as transferências.

Ou seja, o município passaria a ser considerado inviável, não por qualquer mudança da qualidade da arrecadação, ou de sua eficiência administrativa, muito menos com base no dinamismo de sua economia, mas simplesmente porque haveria uma mudança formal nas regras tributárias da Constituição.

Portanto, não parecer deixar ninguém de luto se sepultarmos a ideia de que a dependência de repasses seria o critério para determinar a saúde financeira de um município.

Por outro lado, não deixa de ser verdade que há municípios em grandes dificuldades financeiras. O que fazer com eles?

Como repetidamente proposto, a primeira ideia é de fundir esse município com o seu vizinho. Trata-se de ideia tão ingênua quanto tentadora. A premissa é de que o município deve ser pobre porque é pequeno. Se ele se fundir com o município do lado, será um município maior e, portanto, mais próspero. Ocorre que esse mecanismo é falho.

Ao se fundir os municípios, não iremos somar apenas suas receias. Também haverá a soma de munícipes, ou seja, das populações, e, portanto, a quantidade de cidadãos destinatários das políticas públicas aumentará na mesma proporção que a arrecadação. É possível que haja alguma economia pontual. Um prédio público pode dar conta de duas secretarias fundidas, por exemplo. Mas não é possível extrapolar essa economia para muitas áreas. A solução pela fusão de municípios depende da avaliação de um conjunto de fatores numéricos. Ao lado da política e do direito, há questões econômicas, geoestatísticas, urbanísticas. Em outras palavras, o sucesso da fusão municipal não é garantido, depende de cálculos feitos caso a caso. Esses cálculos dificilmente são vistos, nem mesmo pelos defensores da fusão de municípios. Como diz Vaclav Smil, é surpreendente como tantas pessoas sem qualquer treinamento matemático se proponham a resolver problemas que exigem quantificações.

Sem um estudo aprofundado não é possível saber aprioristicamente o resultado prático de uma ampla campanha de fusões de municípios. É certo, contudo, que os argumentos dos que defendem essa manobra estão equivocados. A fusão de municípios é, com toda sorte, um evento de resultado irrisório. Ao menos para os municípios que não sejam extremamente pequenos e não sejam isolados. Sendo bastante possível tenha resultados negativos. E, tendo em mente o mundo de situações que podem resultar de modelos complexos, pode até ter resultado positivo. Afinal, até um coelho cego pode achar uma cenoura. Mas não devemos apostar todas as fichas nisso.

A ideia da fusão sofre de simplismos que não resistem a uma primeira análise racional. É como se a solução para a pobreza de uma família fosse juntá-la com a família vizinha. A bem do exemplo, vamos por um momento ignorar toda a dificuldade cultural de fazer conviver núcleos familiares distintos. Mas, mesmo superando as barreiras sociais, a solução não é matematicamente defensável. Normalmente as classes sociais se distribuem com padrões geográficos. Uma família muito pobre tem muito mais chances de ter um vizinho com a mesma situação econômica do que morar ao lado de um magnata do petróleo, um banqueiro ou um grande empresário.

O mesmo ocorre nos municípios. Os municípios estão distribuídos com uma escandalosa uniformidade geoeconômica. Municípios pobres costumam ter vizinhos igualmente pobres. Fundi-los, na esperança de mitigar a assimetria do pacto federativo, seria uma empreitada trabalhosa com resultados pífios.

Dentro de uma análise de custos é até possível que a fusão resolva alguns problemas pontuais. Aliás, em alguns casos, a divisão pode surtir o mesmo efeito com ganhos logísticos em municípios com povoações relevantes, mas geograficamente muito distantes. Ocorre que os principais problemas não serão enfrentados. Dentre essas questões temos a estrutural e história precarização das cidades.

O papel do município no regime federativo foi estudado por Victor Nunes Leal há oito décadas em textos que podem ser lidos hoje com desconfortável atualidade.

Os municípios são mantidos em um estágio civilizatório mais atrasado que os demais entes, não por um erro de cálculo do constituinte, mas por um sistema político que atende a diversos interesses conhecidos e declarados que perpassam pelo sistema eleitoral e, não raramente, se evidencia com prefeitos com o pires na mão.

Essa noção, de arquitetada precarização dos municípios, nos leva a buscar soluções voltadas ao fortalecimento da autonomia municipal e não soluções simplistas e gratuitas. Fundir os municípios é gratuito, é simples, mas ignora as reais razões da distorção do pacto federativo.

Outro ponto que precisa ser melhor compreendido é que a precarização dos municípios não é problema exclusivo dos municípios, mas de todos. Cada um de nós vive em um município e dependemos de seus serviços públicos. O tempo que passamos no trânsito, a organização urbanística que tem influência fundamental na qualidade de vida, a saúde básica a educação, tudo isso vem do município. Muito provavelmente a leitora foi vacinada na pandemia por uma enfermeira municipal.

O equilíbrio federativo exige mais do que ideias mágicas e gratuitas. Não que haja uma complexidade tão grande que torne o problema insolúvel. Possivelmente a solução é até mais simples que proceder a uma revisão na estrutura de mais de 5.500 unidades federativas. Mas para isso, os problemas reais devem ser enfrentados e esses vão desde o sistema de representatividade até as distribuições constitucionais de receitas.

Em paralelo à fusão pode estar correndo propostas legislativas que agravariam a crise municipal, notadamente a tentativa de reduzir-lhe a competência tributária.

Sempre que alguém vier propor uma ideia de fundir municípios, simplificar a tributação, ou aumentar a eficiência dos serviços públicos antes de aumentar as receitas devemos observar que estamos diante de ideias simplistas e gratuitas. As principais alterações políticas não são simplórias e raramente gratuitas.

Há um preço a se pagar pelo ganho institucional. O preço é alto, mas os benefícios o superam com folga.

Bernardo Bastos
Advogado, engenheiro civil, mestre em engenharia pela PUC-Rio, ex-procurador do município de São Paulo (SP), procurador do município de Rio Largo (AL), diretor de comunicação da ANPM (Associação Nacional dos Procuradores Municipais).

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