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Insolvência da FTX - Seria este o anúncio do fim do mercado de cripto como conhecemos?

Uma das maiores de seu setor, a Exchange FTX no final do ano de 2022 anunciou seu pedido de recuperação judicial e colocou investidores e credores em alerta acerca da necessidade urgente de se regulamentar o mercado de cripto não somente a nível nacional, mas sim global.

6/1/2023

A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa - KARL MARX

Essa famosa frase de Marxs foi uma das primeiras coisas que me veio à mente quando surgiu a notícia de que a FTX havia requerido sua recuperação judicial ou "filed for chapter 11”1 nos termos da língua inglesa. 

Muito tem se falado nos últimos dias na mídia sobre os reflexos que a quebra da FTX, uma das maiores exchanges do setor, terá sobre o mercado, agora que se mostrou essencialmente frágil e, mais alarmante, insolvente.

Este é um tema muito complexo e de forma nenhuma pretende-se esvaziá-lo neste texto, mas gostaria que partilhássemos uma reflexão. No direito, na vida, nos ciclos que a sociedade e as economias passam, o movimento de pêndulo é algo que sempre se revela como uma constante.

Se temos um movimento de extremo liberalismo econômico, a resposta do pêndulo será o conservadorismo e isso irá sempre se repetir das mais diversas formas. Por exemplo, no caso das criptomoedas, é sabido que sua ascensão e popularização ocorreu logo após a crise do subprime em 20082, tendo sido uma resposta do mercado à falta de confiança nas estruturas centralizadas de economia.

De forma que a ascensão de exchanges como a FTX, o crescimento de investimentos em Bitcoin e tokens de utilidade vieram como uma resposta a esta desconfiança na efetividade do sistema financeiro tradicional.

Inclusive, a premissa defendida era que a descentralização e a criação de um sistema onde  não há uma instituição (leia-se Bancos e Conselhos) que seja responsável por validar as transações era a forma mais segura de se operar, pois todos os  envolvidos validariam uns aos outros em uma espécie de cadeia infinita.

Pois bem, cortamos para 2022 e o pedido de recuperação judicial da FTX. Surpreenda-se (ou não) mas a primeira discussão e crítica que despontou frente ao “caos” gerado pela insolvência da empresa foi: Qual é a regulamentação? Por que não há regulamentação? Como ninguém viu isso? Como é possível que a empresa tenha realizado empréstimos sem nenhum lastro, que sequer a sua própria moeda (FTT)?3

Neste momento, imagino que assim como eu, você também automaticamente associou esta indignação com a FTX ao que foi externado contra a Lehman Brothers em 2008. Ora, exatamente as mesmas perguntas que foram realizadas quando a bolha do mercado imobiliário estourou, estão sendo agora repetidas contra a exchange.

Desta forma, a pergunta que paira é: Estaríamos agora diante do próximo movimento do pêndulo? Estaríamos presenciando um possível enrijecimento das instituições e talvez mais uma tentativa de se regulamentar não só o mercado de criptomoedas, mas também a insolvência transnacional?

Talvez a resposta para essa pergunta, apesar de tímida, já tenha começado a ser escrita... Em dezembro de 2020 tivemos no Brasil a promulgação da lei 14.112/20 que alterou a lei 11.101/05 (lei de Recuperação Judicial e Falência)4 e trouxe em seus artigos 167 e seguintes  incorporação de normatização para os casos de insolvência transnacional.

As novas inclusões se basearam primordialmente na lei modelo da UNCITRAL (art. 239-241)5, de forma que, assim como a lei modelo, os artigos em questão possuem um escopo muito mais procedimental e principiológico, do que efetivamente positivista.

Neste mesmo sentido, em dezembro deste ano foi aprovada a PL 4.401/216, também conhecida como o Marco Civil das Criptomoedas, a qual passará a regulamentar as corretoras que operam com ativos digitais. Ainda pendente de aprovação final pelo presidente da república, a versão apresentada pelo Senado Federal já colocou o mercado em alerta e dividiu opiniões dos players do mercado.

Isso porque, o  caráter não positivista da lei deixa espaço para especulação acerca de quem seria o órgão regulador, se a atuação do Banco Central e uma centralização e regulamentação das criptomoedas trará mais segurança e por consequência mais investidores, colocando o Brasil à frente de muitos outros países, ou ainda, se a regulamentação fará o oposto, repelindo investidores mais agressivos de se manterem aqui.

Como se vê, a falta de solidificação de um sistema está sendo o ponto fulcral da inquietude do mercado, desta forma, acredito sim que estamos assistindo um retorno do pêndulo, podendo se esperar que nos próximos anos, a regulamentação internacional e nacional de insolvência de ativos financeiros digitais e não digitais ocorra de forma acelerada tanto no Brasil quanto em outros países.

Como mencionado acima, diferentemente do que aconteceu há algumas décadas, onde o caminho optado pela política nacional foi a tentativa de positivar tudo em um formato codificação do sistema, acredito que desta vez o trajeto a ser seguido será o rule of law com a implementação de normas principiológicas como as trazidas pela lei 14.112/20 no âmbito da insolvência transnacional e da PL 4.401/21 no que tange ao tratamento das transações das criptomoedas.

Além disso, é importante destacar que este movimento muito possivelmente se desenvolva em uma velocidade jamais antes vista, em razão tanto da fragilidade escancarada pelo escândalo da FTX, como também a própria evolução digital da sociedade e a automação que muitos processos estão tendo seus custos transacionais reduzidos através da inteligência artificial.

Logo a conclusão que se chega neste momento é que temos muito mais perguntas do que respostas na mesa, mas uma coisa é certa, a história está se repetindo. A questão é, será uma tragédia, uma farsa (e aqui peço licença poética para adicionar mais uma opção) ou uma revolução de inovação que irá determinar o curso do futuro do mercado?

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1 LAWLER, Richard. FTX files for Chapter 11 bankruptcy as CEO Sam Bankman-Fried resigns. Disponível em: . Acesso em: 15 dez 2022.

2 The Subprime Mortgage Crisis of 2007-2008 – StMU Research Scholars. Disponível em: https://stmuscholars.org/the-subprime-mortgage-crisis-of-2007-2008/. Acesso em: 10 dez 2022.

3 BANKS, David A. Crypto was meant to solve financial corruption. The FTX scandal shows it’s got worse. Disponível em:

4 Lei 11.101/05. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11101.htm. Acesso em: 19 dez 2022.

5 UNCITRAL Model Law on Cross-Border Insolvency (1997) | United Nations Commission On International Trade Law. Disponível em: https://uncitral.un.org/en/texts/insolvency/modellaw/cross-border_insolvency. Acesso em: 05 dez 2022.

6 SENADO FEDERAL PROJETO DE LEI N° 4401, DE 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9054002&ts=1671455324011&disposition=inline. Acesso em: 12 dez 2022.

Heloisa Nogueira
Advogada formada pela PUC-Campinas, consultora empresarial em reestruturação, com especialização em Análise Econômica de direito Internacional pela Universidade de Augsburg - Alemanha, membro do grupo de estudos em Recuperação Judical da OAB/CAMPINAS.

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