Migalhas de Peso

O velho doente de Goya: Um olhar transformador e de superação

Goya, com sua arte, promoveu a justiça e embelezou o Direito. Disse muito com pouca coisa. O velho doente, frágil, ao mesmo tão moralmente saudável e forte foi-me inspirador, senão revelador.

30/12/2022

Gosto muito de escrever sobre temas de Direito dos Seguros, Direito dos Transportes e Direito Processual Civil.

Gosto, é verdade, porém amo muito mais história e artes.

Penso que a segmentação aristotélica do conhecimento é necessária, porém não inimiga do seu trato amplo, integral, longe da compartimentação.

As artes, defendo, estão para o Direito como a sombra ao corpo e vice-versa.

Não poucos falam da estética do Direito e a causa-eficiente disso é sem dúvida a cultura, o gosto pelas artes.

Por isso, ouso trazer ao campo do Direito um texto que não é de ordem jurídica, porém – creio firmemente – imbricado no senso de Justiça, na sua constante e perpétua busca.

A beleza e a justiça são irmãs, senão siamesas, gêmeas. Beleza sem justiça é mera purpurina e não conduz à lugar algum, muito menos a verdade. Justiça sem beleza é tirania.

Por isso, mesmo sem escrever sobre o Direito, remeto-me a ele naquilo que tem demais importante: o exercício da justiça.

Quando alguém fala das misérias do espírito e das agonias do coração, fala da Justiça, fala do Direito, ainda que sua atenção seja uma obra de arte.

É exatamente o que faço agora ou, pelo menos, pretendo com toda ternura de coração.

Este ensaio, constrangedoramente modesto, não é inédito. Salvo engano, publiquei-o algum tempo atrás e o difundi, em que pese a rouquidão da minha voz, pelas redes sociais.

Revisitei-o, mudei um tantinho seu conteúdo e ajustei, sem ferir sua essência, algumas de suas partes.

Espero que seu conteúdo, embora simples e despretensioso, possa ser útil.

Não costumo gostar do que escrevo. Aqui, uma exceção. Gostei e gosto.

E gosto não porque é bom ou traduza qualidade literária. Longe disso! Ele trata de arte sem ser minimamente sua parte.

Gosto porque eu vivi intensamente cada palavra.

Não há hipérboles, licenças poéticas, lugares-comuns linguísticos, emoções inflacionadas ou artificiais.

Nada disso! Há a fiel tradução da experiência pessoal com aspiração universal.

A dor, gostemos ou não, é catequista mais eficiente do que o amor.

Não deveria ser, aliás. No plano ideal certamente não é. Mas o é no mundo real, exatamente no qual vivemos, com todas nossas desolações e consolações.

Gosto desse texto porque em certo momento de minha vida deixei de lado a mediocridade, minha infeliz, porém fiel companheira, superei as mais íntimas misérias e inalei (ainda que por pouco tempo) o ar da grandeza.

O velho doente de Goya renovou-me e elevou meu coração ao Alto, tão ao Alto que finalmente entendi e nele sulquei as palavras pias que dizem: “eis que Eu renovo todas as coisas”.

Sou muito grato – e antecipadamente – aos que generosamente se predispuseram a publicá-lo e ainda mais ao que, quase que misericordiosamente, o lerem.

Recebam meus agradecimentos imaginando-me com os joelhos cravados no chão e alegria ímpar.

Essa revisita foi e é feita num tempo muito propício, o do Natal.

Tempo em que a esperança ganha rosto e nome e que abraça a mudança cronológica do ano civil, que, sabe-se lá por qual insondável razão da psique, motiva a maior parte das gentes aos anseios de mudanças e transformações (evidentemente que positivas).

Considero o teor deste texto muito oportuno com o momento, que é o do tempo do Natal, próximo ao réveillon.

Lembrar dessa experiência é, antes e acima de tudo, festejar a esperança que se nota mais vivamente por ocasião do Natal e celebrar a virada do ano, naquilo que verdadeiramente ou não, ela tem de melhor: a perspectiva de mudança, a gana de superação de adversidades.

Espero que o conteúdo realmente possa de algum modo ajudar cada amigo leitor, honrar o nome do veículo que o publicar (como publicado o fez) e saudar o ano que em breve se iniciará e que, espero em Deus, seja muito bom para todos.

Peço antecipadamente perdão pela extensão do preâmbulo e do próprio ensaio, porém justifico-a pela emoção que senti na oportunidade em que experimentei os fatos narrados e que ora reavivo com sincera intensidade.

Feliz 2023! Obrigado.

Vamos lá:

Dois anos atrás, impressionei-me com desenho do famoso pintor espanhol, GOYA.

Escrevi algo a respeito e resolvi me dedicar ao estudo de sua biografia e arte.

Fiz bem.

Estou encantado com a riqueza do seu trabalho. Recentemente, chegou às minhas mãos um excelente livro sobre seus desenhos, técnica e sentimentos.

Isso me fez lembrar do que vivi e escrevi antes e decidi compartilhar com os amigos leitores, aproveitando o tempo difícil que vivemos: o das incertezas sobre as incertezas, o da imprecisão além das imprecisões.

Antes, a capa do livro curiosamente com o desenho que tanto me emocionou:

(Imagem: Divulgação)

Quando vi que a capa do livro sobre os desenhos do famoso artista espanhol expunha (e expõe à posteridade) aquele que muito me impressionou, fui tomado de grande assombro, logo convertido em inexprimível alegria.

Emocionado, busquei o registro escrito da abençoada e forte ocasião, a do primeiro encontro, por assim dizer, e o reli com detida atenção, para não dizer comoção.

E é esse registro que agora reproduzo e tomo por coração deste ensaio, sua própria essência vital. 

Abro aspas

Na última segunda-feira, por volta das 20h, horário de Madri, ao sair da Igreja de São Jerônimo Real, perto do famoso Museu do Prado, vi um painel muito interessante, cuja fotografia exibo.

Painel que expunha a imagem de um rascunho de Goya, grande pintor espanhol.

Após a Missa, havia admirado as lindas obras que edulcoram a igreja e ensinam a fé.

Ao deixar a igreja e passar ao lado do famoso museu, vejo o desenho rascunhado por Goya.

Que imagem!

Um homem desconhecido, comum, velho, presumidamente pobre, despido de quase tudo, inclusive saúde.

Homem apoiado em duas muletas rudes e que tenta, às duras penas, se locomover, arrastando seu corpo desconjuntado de um lugar a outro, sejam lá quais.

Estando o homem rascunhado estático no desenho, é possível ver o movimento lento, sofrido, mergulhado na dor, um arrastar pesaroso de si mesmo.

Nas pernas do velho rascunhado, débeis, no seu torso curvado, o peso visível do sofrimento.

A dor em imagem.

Eu sei o que é isso. Sim, eu sei, ainda que na periferia da debilidade física, eu pisei nos seus círculos indesejáveis. 

Sei o que é querer se movimentar mais rápido e não conseguir. Sei o que é tropeçar e depender da bengala para não cair, batendo-a no chão com a força que se crava a estaca no peito de um vampiro. Eu também sei o que é cair na frente de todos, quando a bengala já não é bastante para socorrer a fraqueza. 

Eu sei o que aquele homem sentia e imagino vivamente sua miséria.

Estava quase enveredando pelo caminho, sempre perigoso, da autopiedade - ainda que desproporcionalmente - quando deixei de ver o corpo e olhei o rosto do velho homem.

Tudo mudou em constrangedores e quase eternos segundos. É como se a luz da alegria partisse ao meio as trevas da tristeza.

Talvez a fotografia não exiba de modo justo a elegância do desenho, mas dou testemunho fiel: o rosto do homem não era de sofrimento, mas de resignação, esperança e, ouso dizer, docilidade e conforto.

 Dizem que os olhos são espelhos do coração. Em realmente os sendo, os do velho não eram os de quem sofre, mas de quem transcendeu a própria miséria.

Olhar pacífico e enternecedor, olhar de quem transmite segurança na dúvida, coragem na adversidade, força na debilidade e mais um rosário de paradoxos benfazejos.

Não um olhar qualquer, mas o de quem tudo vê.

O de quem enxerga o mundo muito além das aparências e não tem inclinação para as lamentações.

Um olhar sem amargura, mas cheio de santificada tranquilidade.

No dia seguinte ao da solenidade da Apresentação do Senhor ao Templo, vi no olhar do velho de Goya a face do próprio Simeão, mestre da sabedoria, personificação da esperança. 

O velho homem de muletas muito me falou sobre saúde, força e fé. Falou também de resignação e de como nenhum sofrimento pode tirar a paz interior.

A carne pode ser rasgada, os ossos esmagados, a dor excruciante, mas a ternura do coração há de imperar se houver no sulco indelével da fé, amiga da verdade, carvão em brasa da fogueira inapagável do amor.

Em seu homem doente, Goya, talvez involuntariamente, exibiu poderosa catequese. 

Nisso também reside o encanto da verdadeira arte, a que comunica o Belo e grita a Verdade. 

Exagero? De modo algum. Beleza e Verdade são atributos de Deus. 

A arte que não traduz Beleza e Verdade não pode como tal ser considerada.

A arte passa a ser mera crônica infeliz de visão míope da sua própria essência.

Termino com o suspiro que dei ao abaixar meu olhar para o chão, desviando-o do velho doente de Goya para seguir meu caminho.

Caminhei acompanhado da inquietação. O homem que me fez lembrar de Simeão também me recordou Davi, aquele que converteu o pranto em dança.

Não segui mais o caminho que pretendia. 

Não, mudei a direção dos passos.

Subi de novo as escadas, tomado de novo ânimo. 

Fui até audacioso, pois ignorei minha momentânea debilidade e deixei de por os dois pés em cada degrau e alternei a passada, subindo a escada como subia antes da cirurgia.

Voltei para a Igreja. Era necessário.

Lembrei que eu havia pedido para acelerar minha recuperação, mas esquecido de agradecer o sucesso da cirurgia.

Um tropeção na mesma escadaria pouco antes da Missa me fez mais inclinado a reclamar e pedir do que aceitar e agradecer.

Obrigado, Goya. Seu grafite e sua mão, seu talento, fizeram-me lembrar quem eu sou e no que acredito.

Escrevo para deixar o registro marmorizado na tábua do meu coração, muito mais doente e claudicante do que minha perna esquerda.

Em algum lugar sobrevoando o Oceano Atlântico, no início da madrugada de 5 de fevereiro do ano de 2020 +

Fecho aspas

O que antes escrevi agora biso com ainda mais convicção. Se há algo que é mais poderoso que a emoção pura, genuína, incandescente, é a emoção guiada pela razão, ordenada pela experiência, instruída verazmente pelo conhecimento.

Por isso é que repito, aqui, agora, neste tempo tão favorável, a emoção antes experimentada, que foi decantada, apurada, elevada, sem ser de modo algum, ainda que minimamente, deformada.

Goya, com sua arte, promoveu a justiça e embelezou o Direito. Disse muito com pouca coisa. O velho doente, frágil, ao mesmo tão moralmente saudável e forte foi-me inspirador, senão revelador.

O grande artista assumiu a condição de jurisconsulto e fez mais pelo Direito e pela Justiça do que eu jamais um dia ousarei fazer.

Neste exato instante em que estou em outra cidade, acompanhando a difícil condição de saúde de tia querida de minha mulher, internada, intubada, debilitada severamente pelo vírus pandêmico da Covid-19, entre a vida e a morte, muito oportuno lembrar-me do desenho de Goya, dos seus traços catequéticos, de tudo o que ele pouco tempo atrás me fez sentir e interiormente transformar.

Nesse velho doente desenhado encontro um sinal não litúrgico da minha fé, busco forças que em mim mesmo não tenho e reafirmo as virtudes fundamentais da esperança e do amor. Sim, pelo signo da dor, entendo um pouco mais o amor.

E entendendo-o consigo superar o que possível, ainda que a demandar esforços heroicos, e a aceitar o que realmente impossível de ser superado, fazendo-o não pelo acomodamento e, sim, em nome da justa e estética resignação.

Rogo ao Céu que estas palavras requentadas, escritas por causa de um desenho, da figura poderosa de um velho doente, ajudem alguém de alguma forma. Isso me fará feliz e me dará a porção de importância que jamais aspirei ter e que não me é cabível por mérito ou misericórdia.

Piracicaba, no dia da memória dos santos Inocentes de 2022 a.D.

Paulo Henrique Cremoneze
Advogado com atuação em Direito do Seguro e Direito dos Transportes. Sócio do escritório Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados. Mestre em Direito Internacional Privado. Especialista em Direito do Seguro.

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