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Reembolso Assistido: a legalidade do auxílio administrativo médico-hospitalar nas despesas do beneficiário

O direito do beneficiário de planos de saúde ao reembolso de suas despesas, nos termos contratuais, é assegurado pelas normas reguladoras do setor.

29/12/2022

Legislação Aplicável.

Há um axioma jurídico derivado do princípio da legalidade no sentido de que ao particular é permitido realizar tudo que a lei não proíbe, enquanto à Administração Pública é lícito realizar apenas o que a lei autoriza.

A partir desta lógica é que as ações praticadas pelos particulares devem, costumeiramente, serem interpretadas, e não seria diferente in casu.

Restringindo-nos a uma análise específica voltada à relação do beneficiário de plano de saúde com a sua respectiva operadora, a legislação primária aplicável é, justamente, a lei 9.656/98 que, em seu art. 1º, I, assim dispõe:

“Art. 1º Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:

I - Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor;” (sem destaques no original).

O art. 12, VI, ao estabelecer as coberturas mínimas incidentes sobre os contratos firmados entre as operadoras e seus beneficiários, prevê expressamente a necessidade de reembolso: “em todos os tipos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º desta lei, nos limites das obrigações contratuais, das despesas efetuadas pelo beneficiário com assistência à saúde, em casos de urgência ou emergência, quando não for possível a utilização dos serviços próprios, contratados, credenciados ou referenciados pelas operadoras, de acordo com a relação de preços de serviços médicos e hospitalares praticados pelo respectivo produto, pagáveis no prazo máximo de trinta dias após a entrega da documentação adequada;”

Em 1998, o Conselho Nacional de Saúde Suplementar publicou a Resolução CONSU nº 8, com a finalidade de dispor sobre mecanismos de regulação dos Planos e Seguros Privados de Assistência à Saúde, balizando, no que se refere à prática do reembolso, a relação entre as operadoras e os seus beneficiários, com destaque:

Art. 2° Para adoção de práticas referentes à regulação de demanda da utilização dos serviços de saúde, estão vedados:

[...]

III – limitar a assistência decorrente da adoção de valores máximos ou teto de remuneração, no caso de cobertura a patologias ou eventos assistenciais, excetuando-se as previstas nos contratos com cláusula na modalidade de reembolso;

[...]

VI - negar autorização para realização do procedimento exclusivamente em razão do profissional solicitante não pertencer à rede própria ou credenciada da operadora.

[...]

IX – Reembolsar ao consumidor as despesas médicas provenientes do sistema de livre escolha, com valor inferior ao praticado diretamente na rede credenciada ou referenciada.” (sem destaques no original).

Fato é que o sistema de reembolso das operadoras não possui regulamentação própria e direta da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Autarquia Federal legitimada à regulamentação do setor por força da lei 9.961/00, como reconhecido, inclusive, no âmbito do “Entendimento 8/2017” oriundo de sua própria Diretoria de Fiscalização ao assim mencionar: “Entretanto, o instituto do reembolso, embora largamente utilizado nas relações jurídicas firmadas entre as operadoras e seus beneficiários, não possui regulamentação própria, especifica, sendo tratado acessoriamente em diversos diplomas legais e/ou normativos disciplinadores do mercado de saúde suplementar.” (sem destaques no original).

Neste sentido, deve-se considerar, ainda, para fins normativos específicos à presente análise, a existência da RN ANS 268/11, que trata, em determinado momento, do reembolso de despesas, em sua Subseção II:

Subseção II

Do Reembolso

Art. 9º Na hipótese de descumprimento do disposto nos arts. 4º, 5º ou 6º, caso o beneficiário seja obrigado a pagar os custos do atendimento, a operadora deverá reembolsá-lo integralmente no prazo de até 30 (trinta) dias, contado da data da solicitação de reembolso, inclusive as despesas com transporte.

§ 1º Para todos os produtos que prevejam a opção de acesso a livre escolha de prestadores, o reembolso será efetuado nos limites do estabelecido contratualmente.

§ 2º Nos produtos onde haja previsão de acesso a livre escolha de prestadores, quando o procedimento solicitado pelo beneficiário não estiver disposto na cláusula de reembolso ou quando não houver previsão contratual de tabela de reembolso, deverá ser observada a regra disposta no caput deste artigo.

§ 3º Nos contratos com previsão de cláusula de co-participação, este valor poderá ser deduzido do reembolso pago ao beneficiário.

§ 4º Nas hipóteses em que existe responsabilidade da operadora em transportar o beneficiário, caso este seja obrigado a arcar com as despesas de transporte, a operadora deverá reembolsá-lo integralmente.

Por fim, não há como ignorarmos a interpretação concedida a um caso concreto pelo C. Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial 1.959.929 – SP, analisando uma situação específica quanto à prática dos denominados “reembolsos assistidos”, cujo teor também é importante que seja referenciado, com as respectivas críticas, à luz da normativa em vigor.

Do Auxílio ao Reembolso Contratual. Contrato de Cessão de Crédito. Legalidade procedimental.

Iniciando-se justamente pela decisão proferida pelo C. Superior Tribunal de Justiça, e com devido respeito ao v. Acórdão e Relatoria, a parametrização dos conceitos utilizada como substrato à decisão da Colenda Corte não atingem o cerne da questão, em essencial porquanto há uma sequência de premissas imprecisas legitimadoras à conclusão pela “ilegalidade” do procedimento quando, em verdade, o r. decisum aponta que não há uma regulamentação específica, conforme o excerto abaixo:

O que se esta' afirmando e' que, sem uma regulamentação especifica da ANS ou por meio de lei em sentido estrito, não ha' como se criar um procedimento de reembolso, diferente do estabelecido atualmente, desvirtuando a lógica do sistema e dando margem a situações de descontrole na verificação da adequação e valores das consultas, procedimentos e exames das prestadoras de serviços não credenciadas ao plano de saúde, o que poderia prejudicar todo o sistema atuarial do seguro e, em último caso, os próprios segurados.” (sem destaques no original).

De fato, a regulamentação específica acerca do reembolso de despesas de ordem médico-hospitalar, como demonstrado, é matéria prevista em algumas normas esparsas restando, sem normativa direta, o denominado “reembolso auxiliado”, o que, definitivamente, não impede a sua prática administrativa pela iniciativa privada.

O itinerário percorrido pelo v. Acórdão tem como, um de seus fundamentos, decisões proferidas relacionadas ao seguro DPVAT, cuja prática de auxílio ao reembolso prévio de despesas decorrentes de acidentes automobilísticos frente a clínicas não credenciadas ao SUS sob a forma de “cessão de crédito” é expressamente vedada pelo ordenamento jurídico, consoante previsão contida na lei 6.194/74, art. 3º, §2º, em alteração promovida pela lei 11.945/09:

“Art. 3º. omissis

[...]

§ 2º. Assegura-se à vítima o reembolso, no valor de até R$ 2.700,00 (dois mil e setecentos reais), previsto no inciso III do caput deste artigo, de despesas médico-hospitalares, desde que devidamente comprovadas, efetuadas pela rede credenciada junto ao Sistema Único de Saúde, quando em caráter privado, vedada a cessão de direitos.” (sem destaques no original).

Neste ponto em específico, duas são as observações necessárias a respeito do tema paradigmático utilizado pelo v. Acórdão: [i] há legislação expressa proibitiva; [ii] trata-se de um sistema público, e não privado, de ressarcimento de despesas, com credenciamento das clínicas junto ao SUS.

A partir destas duas premissas, há que se atrair de forma direta o axioma jurídico inicialmente proposto, na qual ao particular é permitido tudo que a lei não proíbe e, quanto ao público, somente aquilo que a lei estabelece.

In casu e com a devida vênia, é absolutamente inaplicável qualquer referência ao sistema de reembolso estabelecido pela legislação própria no que se relaciona ao chamado DPVAT, na medida em que vinculado a um “contrato” de seguro obrigatório, regido por regras de direito público.

No campo privado, envolvendo as operadoras de planos de saúde e seus respectivos beneficiários, em que pese estarmos frente a um sistema regulado por normas administrativas, não há qualquer dúvida quanto a incidência das regras de direito privado, civilistas e consumeristas, além da importante previsão constitucional e legal acerca da liberdade econômica.

O negócio jurídico estabelecido entre clínicas e hospitais e os seus respectivos clientes ocorre dentro de um ambiente privado, sem que haja qualquer forma de interferência das regras de direito público, à exceção da regulamentação administrativa levada a efeito pela ANS, cujo escopo fundamental deve ser a proteção do beneficiário na relação com a operadora, jamais o inverso.

Nesta senda, as normas a respeito do tema garantem o reembolso das despesas de ordem médico-hospitalar, sob três sistemas bastante claros: [i] urgência e emergência; [ii] ausência de rede credenciada; [iii] contratos de livre escolha.

Os dois primeiros itens possuem previsão específica no âmbito da lei 9.656/98, art. 1º, I, enquanto o terceiro é uma regra administrativa (a exemplo do previsto na Resolução CONSU nº 8), cuja base é contratual entre operadora e beneficiário, com o estabelecimento de limites nos termos firmados entre as partes ou com cobertura de reembolso integral quando a lei assim determinar (itens [i] e [ii]).

É absolutamente inegável a possibilidade de reembolso, nos termos da legislação em vigor e qualquer embaraço indevido ao pleno exercício de tal direito pode gerar sanções administrativas às operadoras de planos de saúde.

O silogismo jurídico, portanto, indica que o legislador, quando pretendeu proibir a cessão de crédito decorrente de uma modalidade de reembolso de despesa de ordem securitária assim o fez expressamente (DPVAT). E quanto às operadoras de planos de saúde, há norma proibitiva?

Evidentemente que não, sendo que o v. Acórdão alhures mencionado incorreu em algumas inconsistências, com a devida vênia.

O termo “reembolso assistido” ou, ainda, “auxílio administrativo ao reembolso”, que se tornou mercadologicamente popular, ultimou por estigmatizar a relação entre clínicas, hospitais e respectivos clientes, na medida em que é absolutamente contraintuitivo “reembolsar o que ainda não foi desembolsado”, como pontuado no v. Acórdão mencionado oportunamente; todavia, trata-se de uma simples cessão de direitos e créditos, como será abordado adiante, e não, propriamente, um “reembolso assistido”.

Neste momento, cabe destacarmos que a Carta Republicana de 1988, em seu art. 170, prestigia a Livre Iniciativa e a Liberdade Econômica como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, regulamentado pela lei 13.874/19, com destaque para o art. 3º, V, in verbis:

“Art. 3º. São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal:

[...]

V - gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário;” (sem destaques no original).

Uma das regras proibitivas acerca da liberdade econômica, integralmente aplicada à hipótese mercadológica ora em debate, encontra guarida justamente no art. 4º, I da norma regulamentadora ora mencionada:

Art. 4º É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente:

I - criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; (sem destaques no original).

Há que se ponderar, inclusive, que a ausência de regulamentação administrativa neste sentido é uma forma de se manter o equilíbrio das relações comerciais e econômicas estabelecidas pelo legislador, sem que haja interferência abusiva da Administração Pública nas atividades privadas, in casu, sob responsabilidade da própria Agência Nacional de Saúde Suplementar enquanto Autarquia Federal.

Na esteira de tal debate e dentro de uma análise de legalidade, o que se propõe o modelo de negócio estabelecido a partir de clínicas e hospitais que não fazem parte das redes credenciadas das operadoras de planos de saúde é, apenas e tão somente, poder prestar seus serviços a clientes que são beneficiários de tais empresas, com cláusulas contratuais de cobertura de despesas sob o formato de livre escolha, de forma absolutamente legítima.

A atuação comercial sob tal formato, não nos parece ser, em momento algum, ilícita, na medida em que não há, justamente, norma alguma que preveja tal conduta de forma proibitiva ou restritiva; ao contrário, como demonstrado, há um Estado Democrático de Direito que prestigia, através da Carta Magna, a livre iniciativa e a liberdade econômica, sendo absolutamente permitida a criação de novos negócios e modelos de atuação comercial, gerando empregos e movimentando a economia.

Para o consumidor, frente à clínica ou o hospital, há uma simples cessão de crédito, na medida em que ele possui um contrato com a sua operadora de plano de saúde que lhe permite a livre escolha do prestador de serviços, absolutamente lícito na forma do art. 286 do Código Civil:

“Art. 286. O credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação, a lei, ou a convenção com o devedor; a cláusula proibitiva da cessão não poderá ser oposta ao cessionário de boa-fé, se não constar do instrumento da obrigação”. (sem destaques no original).

A realização da prestação de serviços de ordem médico-hospitalar gera um crédito em favor do beneficiário perante a operadora de plano de saúde, que será efetivado por intermédio de um sistema administrativo de reembolso, mas que não afasta o respectivo fato gerador da dívida, qual seja, a concretização do serviço.

Contratualmente, o beneficiário torna-se, no momento da prestação de serviço, credor de sua operadora por força do contrato firmado, cedendo-o à clínica ou hospital, por intermédio de cessão privada, na forma do código civil.

Qualquer interpretação divergente é negar a existência do instituto civilista previsto ao menos, desde o Código de 1916 (art. 1065 e seguintes), com destaque ao fato de que, no âmbito do DPVAT enquanto situação paradigma utilizada pelo C. Superior Tribunal de Justiça, esta é uma prática legalmente proibida, mas não frente a operadoras de planos de saúde.

Noutra via, como credores cessionários contratuais, as clínicas e hospitais estabeleceram uma sistemática de auxílio administrativo para que o cliente, cedente, possa permitir o acesso ao respectivo crédito frente à sua operadora de plano de saúde, em total consonância com os artigos 653 e 657, ambos do Código Civil:

“Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.

Art. 657. A outorga do mandato está sujeita à forma exigida por lei para o ato a ser praticado. Não se admite mandato verbal quando o ato deva ser celebrado por escrito.”

(sem destaques no original).

Veja-se que não há qualquer imposição ou restrição específica para que seja instrumentalizada a representação do cliente de forma administrativa, inclusive para a abertura de NIP (Notificação de Intermediação Preliminar) junto à ANS quando da respectiva negativa de pagamento administrativo do serviço médico prestado.

Trata-se de uma estrutura de negócio absolutamente lícita por natureza, cabendo às respectivas autoridades, tanto no âmbito consumerista quanto criminal, coibir os abusos e práticas que conduzam a eventual lesão de direitos de terceiros, inclusive sob o aspecto da propaganda, conforme previsto no art. 67 do Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, não se pode coibir a prática comercial estabelecida com base nas normas em vigor, sob pena de violação da proteção constitucional à Liberdade Econômica, além de restringir o acesso do consumidor, enquanto beneficiário e contratante de um plano de saúde com tais possibilidades, àquilo que seu contrato e a própria legislação em vigor lhe conferem.

A melhor hermenêutica aplicável à situação ora tratada indica que as normas devem ser interpretadas, em primeiro lugar, de forma favorável ao consumidor e, subsequentemente, ao livre mercado, com obediência às regras de natureza contratual, preservando-se a autonomia privada.

Os eventuais abusos individuais e pontuais sempre deverão sofrer as reprimendas estatais cabíveis e devidas; contudo, estigmatizar toda uma sistemática de trabalho e mercado que atua com seriedade apenas com base em ilações interpretativas restritivas decorrentes, justamente, de tais poucas hipóteses abusivas, não parece ser a melhor solução.

Ideias novas são sempre perigosas, já dizia Oscar Wilde, pois movimentam um sistema estruturado para que não haja a perda do controle e o ingresso da inovação. Contudo, punir não é sempre a solução e o movimento do mercado, as linhas de tensão e os debates servem, justamente, para que os sistemas sejam aperfeiçoados, mas não extintos.

Osvaldo Simonelli
Advogado e Professor. Especialista em Direito Médico Mestre em Ciências da Saúde. Pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito Público. Idealizador do Programa de Formação em Direito Médico.

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