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A lei padre Júlio Lancellotti e a cidade inclusiva

Já observou o Padre Júlio, a tarefa dos cidadãos é a provocação do Poder Público e do Poder Judiciário para fazer com que a lei seja efetivamente cumprida, o que constitui tarefa de todos.

29/12/2022

1. Aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional, com a derrubada do veto aposto ao projeto pelo Presidente da República (tal como ocorreu por diversas vezes nessa gestão), a lei padre Júlio Lancellotti é uma lei de ocasião tal como, por exemplo, a Lei Maria da Penha. São leis feitas a partir de fatos que mobilizam a opinião pública.

2. Em fevereiro de 2021, o padre Júlio Lancellotti pegou uma marreta e com ela, num ato simbólico, destruiu alguns blocos de paralelepípedo que a Prefeitura de São Paulo havia instalado na parte inferior de viaduto da Zona Leste, como forma de afugentar a população de rua dali. A Prefeitura logo mandou retirar todas os blocos, mas esta política discriminatória, de retirada dos espaços dos moradores de rua de espaços da cidade, é bem antiga e se manifesta de várias formas. São bancos antimendigos, lanças, telas e cercas, espelhos d'água, dentre outros dispositivos que têm como única finalidade punir e apartar a população de rua (aporofobia – horror aos pobres) - e eles ocorrem em todas as cidades, indistintamente.

Em nota publicada no Jornal da Advocacia (16/12/22), a Comissão de Direito Urbanístico da OAB/SP deu outros exemplos de “instalações urbanísticas hostis”: pinos metálicos pontiagudos e cilindros de concreto nas calçadas; bancos de praça sem encosto, com braços ondulados ou com braços divisores do espaço do assento; cercas eletrificadas; além de pedras ásperas e pontiagudas inseridas embaixo de pontes, marquises e viadutos, bem como em áreas limítrofes entre calçadas e prédios1. Os exemplos são inúmeros, na medida da criatividade humana. De outro lado, bloqueios ao trânsito de veículos – que desumanizam a cidade - estão, por suposto, completamente fora da abrangência da lei.

A ação de revolta do padre teve grande repercussão e logo depois o senador Fabiano Contarato (Rede-ES, na época) apresentou projeto de lei ao Senado que, modificando o Estatuto da Cidade, impede este tipo de prática urbanística antidemocráticas nas cidades brasileiras – tanto em relação aos pobres quanto a outras pessoas e grupos sociais “indesejados”.

Na justificativa do projeto, escreveu o senador: “A chamada ‘arquitetura hostil’ está cada vez mais presente nas cidades brasileiras e do mundo. Também denominada de “arquitetura defensiva” ou “desenho desconfortável” (‘unpleasant design’), essa técnica é caracterizada pela instalação de equipamentos urbanos e realização de obras que visam afastar pessoas indesejadas, principalmente as que estão em situação de rua”. Daí ter ele apresentado, no mesmo mês de fevereiro – e com a foto do padre -, o projeto de lei 488/21 que “altera a lei 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade, para vedar o emprego de técnicas de ‘arquitetura hostil’ em espaços livres de uso público”.

Continua o senador-autor: “Embora os paralelepípedos tenham sido retirados [pela Prefeitura], fato é que não se trata de caso isolado e de fenômeno recente. Há anos muitas cidades brasileiras têm não apenas tolerado, mas incentivado a arquitetura defensiva, principalmente em razão da especulação imobiliária de determinadas regiões. A ideia que está por trás dessa ‘lógica’ neoliberal é a de que a remoção do público indesejado em determinada localidade resulta na valorização de seu entorno e, consequentemente, no aumento do valor de mercado dos empreendimentos que ali se localizam, gerando mais lucro a seus investidores”.

Para lutar contra isso, o texto inicial do projeto por ele apresentado, que introduzia mais um inciso no art. 2º do Estatuto da Cidade (o inciso XX), tinha a seguinte redação: integra as diretrizes gerais da política urbana a “promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de técnicas de arquitetura hostil, destinadas a afastar pessoas em situação de rua e outros segmentos da população.” Ainda no Senado, por proposta do Senador Paulo Paim (PT-RS), a proposição passou a levar o nome do padre em razão do seu ato “forte e simbólico” cuja foto o próprio religioso publicou em sua rede social e viralizou.

3. Embora ganhando diversas redações, o projeto teve um processo legislativo relativamente rápido e em 22 de novembro de 2022 foi aprovado também na Câmara com o seguinte texto, bastante diferente na segunda parte: “promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população.” Ademais, o art. 1º da lei passou a ser mais explícito quanto ao seu objeto: “Esta lei, denominada Lei Padre Júlio Lancelotti, veda o emprego de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público”.

Porém, supreendentemente, o Presidente da República vetou o projeto de lei com uma argumentação muito frágil. Disse ele em veto publicado no dia 13 de dezembro de 2022:

Entretanto, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público, tendo em vista que poderia interferir na função de planejamento e de governança locais da política urbana ao definir as características e as condições a serem observadas para a instalação física de equipamentos e de mobiliários urbanos. Além disso, o emprego da expressão 'técnicas construtivas hostis' poderia gerar insegurança jurídica, por se tratar de conceito ainda em construção, ou seja, terminologia que ainda está em processo de consolidação para inserção no ordenamento jurídico, de modo a se observar o disposto na alínea 'd' do inciso II do art. 11 da Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998."

Ambos os argumentos utilizados pelo Presidente não se sustentam porque a lei absolutamente não contraria o interesse público e nem a Constituição. São eles: interferência com o planejamento urbano, de competência municipal, e geração de insegurança jurídica.

Quanto ao primeiro, a garantia dos direitos fundamentais – dentre eles o direito à cidade – é o próprio objetivo do planejamento. Ora, se a lei visa garantir conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade, isto se coaduna plenamente com os objetivos da ordenação do solo, que é matéria de interesse local quanto à sua efetivação (art. 30/VIII da CF). Não há conflito algum entre planejamento e garantia de tais valores. Reiterando a ideia, o propósito de “afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população” de certos locais é o próprio reverso do planejamento, é o seu contrário. Assim, não há incompatibilidade alguma a causar qualquer tipo de atrito com a competência municipal.

De outra parte, a alegação de que a expressão “técnicas construtivas hostis” geraria insegurança jurídica também não é aceitável porque se trata de conceito de clareza meridiana, facilmente verificável em cada caso concreto. Quando se tenta afastar um determinado grupo social composto por “pessoas indesejadas” de certo logradouro público como praças, parques, ruas, largos, jardins, utilizando-se dispositivos como pinos metálicos, blocos de concreto, grades, telas, pontas de lança, etc, isto é claramente “arquitetura hostil” (“hostile architecture”) - que, na verdade, nem propriamente arquitetura é porque a arquitetura organiza espaços para o homem e não bloqueia, fecha - e o expulsa. Daí as aspas necessárias no uso da expressão contraditória em si mesma (contradictio in terminis).

E a “arquitetura hostil” (na redação inicial) ou, bem melhor na redação finalmente aprovada, todas as “técnicas construtivas hostis”, devem ser combatidas para a democratização das cidades2. Elas tornam os espaços inóspitos, vazios, cinzas, e, portanto, propositalmente não acolhedores para grupos sociais que os utilizariam se tais dispositivos não tivessem sido lançados ali. “Lugares sociais convenientes”, como diria Jane Jacobs, deixam de existir para garantia da vitalidade urbana a partir da ação condenável de agentes públicos ou privados sobre os espaços urbanos.

Ademais, a invocação do art. 11/II/”d” da lei complementar que disciplina a redação das leis parece que nada tem a ver com o caso uma vez que o dispositivo diz que, para obtenção de precisão, a elaboração das normas deve “escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais”. Não parece que aquela expressão, escrita em bom português, tenha variação de sentido nas diversas regiões brasileiras e não causando insegurança alguma nem do ponto de vista gramatical e nem do ponto de vista factual. Neste último caso, os litígios serão resolvidos, em cada caso, pelo Judiciário.

Assim, também surpreendentemente pela rapidez, houve a imediata derrubada do veto em 16 de dezembro de 2022, unindo parlamentares da esquerda e da direita em nome de um objetivo comum. A lei foi publicada em 21 de dezembro de 2022: é a lei 14.489, que estabelece nova diretriz geral da política urbana no rol do art. 2º da lei 10.257/01, que é o Estatuto da Cidade. A nova lei tem dois artigos apenas: o primeiro define seu objeto e o segundo contém propriamente a nova diretrizes da política urbana.

4. A questão central do novo preceito do Estatuto da Cidade não é o de definir “técnicas construtivas hostis”, como disse o presidente no veto, mas é determinar o âmbito material de pertinência da lei. Em quais espaços urbanos ela se aplica? Tal questão deve gerar múltiplas decisões judiciais, inclusive contraditórias a partir de fatos idênticos como é da natureza do processo judicial.

Há que se fazer aqui a distinção entre espaços privados, coletivos e públicos, que não têm o mesmo regime jurídico. O art. 1º da lei cogita de “espaços livres de uso público”, expressão que vem do art. 4º/I da lei 6.766/79, mas tem aqui outro sentido, mais ampliado3. Para a nova lei, inclui-se na espécie não só espaços públicos, como uma praça ou uma rua, bens de uso comum do povo por definição. Inclui-se também espaços privados que tenham uso coletivo como, por exemplo, um shopping center ou uma agência bancária ou uma concessionária de serviços públicos. Embora juridicamente privados, esses espaços servem à coletividade, de modo genérico e impessoal. Portanto, uma agência bancária que coloque, no chanfro do lote que ocupa, grades para impedir certo segmento da população de permanecer ali estará certamente enquadrada na lei.

Exemplo disso se pode ver em vários casos: certo banco afastou a população idosa que se reunia diariamente ali mediante a instalação de grades em todos os patamares de sua entrada. Resultado: ninguém mais fica por ali ou, quando fica, fica de pé, na calçada.

Além disso, a mesma norma, já no art. 2º, proíbe a “arquitetura hostil” na interface do espaço público com o espaço privado. Como diria o antigo dicionário de António de Morais Silva (1813), é o “chão que tem diante das casas”. Estes exemplos serão os mais comuns, visando, alegadamente, a segurança do patrimônio e assim costumam ser colocados no alinhamento dos lotes. Basta passar por um centro comercial no período em que as lojas estão fechadas e ver as técnicas de “guerra urbana” utilizadas4 - também chamada de “arquitetura defensiva” (referida na justificativa do projeto). Também se inclui no conceito a proibição de plantar-se arbustos espinhosos na interface frontal do lote (o que seria um inacreditável “paisagismo hostil”), que podem causar lesão aos transeuntes.

A tal ponto que, no Rio de Janeiro, em 2017, o Edifício Roxy, que abriga o tradicional cinema de mesmo nome, em Copacabana, colocou uma espécie de chuveiro sob a marquise para, molhando-a, impedir a concentração de população de rua no local5. Além de cruel e desumano, este será, sem dúvida, um equipamento com nítida finalidade hostil, que se torna proibido pela norma. O fato, na época, causou perplexidade diante da inexistência de regra proibitiva: agora há. Num outro caso, também um banco instalou gradis sobre o patamar da abertura de luz da edificação exatamente porque a população costumava permanecer ali.

Por fim, também no art. 2º, a lei estabelece que o mobiliário urbano não poderá promover o desconforto e, aqui, tem-se o exemplo de abrigos para ônibus muito baixos ou muito altos (como se viu em Sorocaba) ou dos bancos sem encosto ou com o encosto muito inclinado, que, violando os princípios da ergonomia, impedem a permanência do cidadão por um período maior de tempo, ou a tornam penosa, por não disporem de apoio adequado para a região lombar. A NBR 9050 define mobiliário urbano da seguinte forma: “conjunto de objetos existentes nas vias e nos espaços públicos, superpostos ou adicionados aos elementos de urbanização ou de edificação, de forma que sua modificação ou seu traslado não provoque alterações substanciais nesses elementos, como semáforos, postes de sinalização e similares, terminais e pontos de acesso coletivo às telecomunicações, fontes de água, lixeiras, toldos, marquises, bancos, quiosques e quaisquer outros de natureza análoga”. Bancos de uma praça pública sem encosto e sem braços são casos típicos e de frequente ocorrência nas cidades brasileiras: eles não são feitos para um verdadeiro logradouro (= onde se tem prazer em ficar).

Protegendo interesses urbanísticos difusos, de vários grupos sociais, é importante, portanto, destacar que, materialmente, a nova lei não incide apenas sobre espaços do Poder Público mas, igualmente, (a) sobre espaços privados que são de uso público ou, numa designação talvez melhor, espaços coletivos: aqueles que estão abertos a qualquer pessoa (como é o caso de uma galeria comercial); (b) sobre espaços privados na interface com o público, ainda que não sejam de uso público como é o caso da frente de lojas e outros estabelecimentos, mesmo sem abertura para o público; e (c) sobre o mobiliário urbano, que tem conceito preciso.

Os contornos específicos de cada caso concreto serão definidos pela jurisprudência a partir da vedação geral agora instituída pela lei 14.489/22. Terá de haver uma construção jurisprudencial a respeito. Mas as decisões judiciais terão de primeiro qualificar juridicamente o espaço para depois verificar se o dispositivo instalado nele tem propósito de causar desconforto e distanciamento de quaisquer grupos sociais que o utilizavam ou utilizariam.

5. É preciso pensar a cidade para todos, inclusive os jovens, os idosos, os moradores de rua, e outros segmentos da população - e a lei padre Júlio Lancellotti é, sem dúvida, um avanço para tal finalidade. A indicação desses grupos específicos na regra é, evidentemente, exemplificativa.

Daí porque serão “técnicas construtivas hostis” todos os métodos de afastamento de pessoas ou grupo de pessoas de certos espaços que são públicos ou são de uso coletivo e, portanto, livres para outros segmentos. Se a cidade deve ser inclusiva tais métodos tornam-se ilegais porque contrariam o próprio sentido de cidade democrática, que se esvai com a utilização deles. Em cada caso concreto (uma vez que há inúmeras possibilidades de utilização dessas técnicas), deve-se verificar qual foi o propósito principal da instalação do dispositivo, do material ou do equipamento para fazer-se a subsunção à norma proibitiva.

A cidade, espaço coletivo por excelência, não pode ser composta por “enclaves fortificados”: os espaços se interligam, se comunicam, se conectam para um ordenamento urbano “adequado” (art. 30/VIII da CF) às exigências do Estado democrático. Agora, como, aliás já observou o Padre Júlio, a tarefa dos cidadãos é a provocação do Poder Público e do Poder Judiciário para fazer com que a lei seja efetivamente cumprida, o que constitui tarefa de todos.

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V. https://jornaldaadvocacia.oabsp.org.br/noticias/oab-sp-se-posiciona-contra-veto-presidencial-ao-pl-padre-julio-lancellotti/

2 Outros exemplos de gestão antissocial de cidades: “Cadeiras de ferro nas quais não se consegue repousar, tampouco que se podem mover de lugar; artefatos pontiagudos que impedem o pernoite sob o acolhimento improvisado de um viaduto; gotas d’água intermitentes, propositalmente jorradas de vasos em reuso nas marquises que servem de abrigo; extração de tomadas de estações de metrô e rodoviárias para evitar que pessoas recarreguem suas tornozeleiras eletrônicas; e difusão de música atonal em estações de metrô para evitar longa permanência da população de rua são exemplos de gestão urbana hostil” (Arícia Fernandes, Inês Virgínia Soares e Luciana Ortiz, “Entre a gentileza e a hostilidade – Lei Padre Júlio Lancellotti combate higienismo atroz na política urbana”, Folha de S. Paulo, 20.12.2022, p. A3). Pode-se pensar ainda nas várias formas barreiras sem critério para utilização de certos espaços por jovens skatistas, muito comuns e nem sempre justificáveis...

3 Tratando dos requisitos urbanísticos dos loteamentos, o art. 4º/I da Lei nº 6766/79 trata das áreas que devem ser doadas ao Poder Público local: portanto serão áreas públicas, na verdade. Na lei padre Júlio, o sentido foi ampliado, como indicado no texto. São dois sentidos que a expressão comporta.

4 Os ofendículos não estão atingidas pela nova lei. Com efeito, há dois princípios aqui que se chocam: a ordenação urbana democrática e a segurança patrimonial privada. Se os ofendículos forem instaladas em cima de muro de divisa dos lotes, por exemplo, de acordo com as regras técnicas, não estarão proibidos pela nova lei. É o caso das concertinas, das cercas eletrificadas, etc.

5 V. https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/predio-instala-chuveiros-em-marquise-e-causa-polemica-em-copacabana-zona-sul-do-rio.ghtml

José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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