No Brasil é possível observarmos notáveis avanços na doutrina, jurisprudência e também, de forma mais limitada, na legislação no que diz respeito à filiação socioafetiva.
Aos poucos, a família passou de um grupo estabelecido pelo nascimento, para ser um grupo onde as pessoas se integram a partir do afeto que existem entre eles. A concepção da filiação na sociedade do século passado consistia na opinião que os pais eram somente os genitores e, atualmente tal concepção foi modificada.
Essa modificação reflete no modo como a sociedade passou a enxergar a função dos pais e mães. Mudou-se o entendimento que os pais são somente os genitores, aqueles que contribuíram com seu material genético para que o filho pudesse ser concebido. Os pais, na verdade, são os responsáveis por transmitir afeto, amor, educação, além do psicológico e financeiro da criança.
O pensamento do que realmente significa a filiação, o que é ser pai de alguém, transcende a verdade biológica. É explicado no ato de compartilhar a vida, cuidar dos filhos e transformá-los em bons cidadãos. A filiação é exercida quando o filho se encontra enfermo e o pai não desgruda um instante até ver a melhora dele, é ter carinho e afeto durante a vida toda do filho. Esse é o significado de filiação que passou a ser aceito pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Essa nova forma de vislumbrar a família, só teve maior repercussão jurídica com a chegada da Constituição Federal de 1988. Foi a partir da promulgação da Carta Magna que o anseio da sociedade brasileira por normas que tratassem da filiação foi atendido e, posteriormente, veio o Estatuto da Criança e do adolescente e também o CC/02 trazendo a ratificação acerca do entendimento da filiação, em especial aquela que prima pela afetividade.
Esse é o mesmo entendimento que o autor Rolf Madaleno (2000, p. 8.) possui acerca do assunto:
Os filhos são realmente conquistados pelo coração, obra de uma relação de afeto construída a cada dia, em ambiente de sólida e transparente demonstração de amor a pessoa gerada indiferente origem genética, pois importa ter vindo ao mundo para ser acolhida como filho de adoção por afeição. Afeto para conferir tráfego de duas vias a realização e a felicidade da pessoa. Representa dividir conversas, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações; mostrar caminhos, receber e fornecer informação. Significa iluminar com a chama do afeto que sempre aqueceu o coração de pais e filhos socioafetivos, o espaço reservado por Deus na alma e nos desígnios de cada mortal, de acolher como filho aquele que foi gerado dentro do seu coração.
Assim, a filiação ultrapassa as barreiras da origem consanguínea e coloca o afeto como seu principal elemento.
A Constituição Federal de 1988 menciona o afeto como a base das relações familiares, possuindo assim verdadeiro valor jurídico. É no princípio jurídico da afetividade que a atual família firma suas raízes.
O autor Paulo Lôbo (2011, p. 71) analisa o princípio da afetividade na Constituição Federal de modo ímpar:
O princípio da afetividade está implícito na Constituição. Encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família brasileira, além dos já referidos:
- todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227,§ 6º);
- a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º);
- a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º);
- a convivência familiar (e não a origem biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).
Ademais, Paulo Lôbo (apud FUJITA, 2011, p. 106) afirma que “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, e não do sangue”.
A posse de estado de filho para ser constituída é necessária que exista uma relação de afeto e, além disso, que exista a reciprocidade na relação de pai e filho aos olhos da sociedade.
O tratamento dispensado na posse de estado de filho é delineado a partir do momento que o pai age como se fosse pai e o filho age como se fosse filho, é a partir disso que a relação é configurada.
O autor José Bernardo Ramos Boeira (1999, p. 60) demonstra sua posição sobre o tema nas seguintes palavras:
A posse de estado de filho é uma relação afetiva, íntima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai.
O ordenamento jurídico brasileiro não colocou de forma expressa como se dá a posse de estado de filho. Isso ocasiona um complicador quando nos deparamos no cotidiano com a situação de posse de estado de filho. Necessário é a sensibilidade do julgador para perceber de forma fidedigna tal relação.
Consoante é o posicionamento da autora Maria Berenice Dias (2010, p. 363) sobre a posse de estado de filho:
Infelizmente, o sistema jurídico não contempla, de modo expresso, a noção de posse de estado de filho, expressão forte e real do nascimento psicológico, a caracterizar a filiação afetiva. A noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação. A filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto. A posse de estado de filho é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação afetiva. A afeição tem valor jurídico. A maternidade e a paternidade biológica nada valem frente ao vínculo afetivo que se forma entre a criança e aquele que trata e cuida dela, lhe dá amor e participa de sua vida. Na medida em que se reconhece que a paternidade se constitui pelo fato, a posse do estado de filho pode entrar em conflito com a presunção pater est. E, no embate entre o fato e a lei, a presunção precisa ceder espaço ao afeto.
Ademais, para que a posse do estado de filho seja reconhecida, a doutrina utiliza três aspectos: Tractatus que diz respeito ao tratamento que o filho recebe dos pais e a forma como o filho trata os pais. Dessa forma, o tratamento se encontra coadunado a relação de afeto entre essas pessoas; Nomen ocorre quando a pessoa utiliza o nome de família dos pais e Fama que diz respeito à forma como o filho é reconhecido perante a sociedade e a família (LÔBO, 2012).
A autora Maria Helena Diniz (2010) coloca em suas palavras a importância da identificação da posse de estado de filho. É uma situação de fato entre o filho e o possível pai, que pode ensejar em parentesco. Todavia, o uso do nome da família não é suficiente para que se estabeleça uma relação de parentesco entre pai e filho, sendo necessários outros meios de prova. É importante validar o tratamento de pai e filho perante a sociedade.
A visão do autor Roberto Senise Lisboa (2012), é que a posse do estado de filho necessita ter o reconhecimento judicial, com o intuito de ser concretizado no registro civil do filho. Não importando se o reconhecimento é voluntário ou forçado. Todavia, não deve preponderar sobre a certidão de nascimento. Com isso, percebemos que o autor entende ser necessária a confirmação do julgador de que em determinado caso exista de fato a posse de estado de filho e não só uma mera aparência.
Silvio Rodrigues (2008, p. 292), declara que a posse de estado de filho é composta pelo “[...] desfrute público, por parte, de alguém, daquela situação peculiar ao filho, tal o uso do nome familiar, o fato de ser tratado como filho pelos pretensos pais, aliado à persuasão geral de ser a pessoa, efetivamente filho”.
A posse de estado de filho tem como seu principal fundamento a forma como a sociedade enxerga a relação afetiva das pessoas. Ser pai ou filho de alguém não é algo que acontece de forma inesperada, para isso é necessário que ocorra demonstração paterno-filial e é preciso que elas sejam rotineiras, duradouras e sem amplos lapsos temporais do relacionamento.
É importante a existência de uma relação afetiva semelhante a uma família, que aparenta ser a interação de pai e filho. Por isso, é pertinente que os casos de posse de estado de filho sejam analisados com bastante atenção e cautela para que todos os liames sejam considerados. Julgar isso não é algo simplório porque as relações humanas são deveras complexas, cada caso possui suas peculiaridades.
É nesse ponto que o julgador precisa aprofundar o estudo sobre o tema. Dessa forma, é relevante possuir parâmetros legais mínimos preestabelecidos pela legislação, para que não tenham casos semelhantes com julgamentos contrários.
Com o intuito de garantir a posse do estado de filho o autor Jorge Shiguemitsu Fujita (2011, p. 145-146) fez uma sugestão de projeto de lei:
Art. 1º O caput do art. 1.601 do Código Civil passa a ter a seguinte redação: “Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, a menos que exista a posse de estado de filho. Essa ação é imprescritível.”
Art. 2º O art. 1.603 recebe o seguinte parágrafo único: Art. 1.603 [...]
“Parágrafo único. A filiação poderá ser também provada pela posse de estado de filho.”
Art. 3º O art. 1.604 passa a ter a seguinte redação:
“Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário o que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro, ou falsidade de registro, ou filiação socioafetiva decorrente da posse de estado de filho.”
Art. 4º O art. 1.605 passa a ter nova redação em seu caput, ficando revogado os seus incisos I e II. Fica incluído um parágrafo único:
“Art. 1.605. Na falta, defeito, erro, ou falsidade, do termo de nascimento, ou, então para declarar a filiação socioafetiva originária da posse de estado de filho, a prova poderá consistir em qualquer modo admissível em direito.
Parágrafo único: A posse de estado de filho deverá ser contínua, pacífica, pública e não duvidosa e se basear em uma reunião suficiente dos seguintes fatos: a) o que indivíduo seja tratado como filho por aqueles a quem considera seus pais; b) que estes estejam provendo sua criação, educação e sustento; c) que ele seja reconhecido como filho na sociedade e pela família; d) que ele apresente o nome daqueles de quem alega ser filho. Art. 5º Revogam-se as disposições em contrário.”
A família vem se modificando ao longo da história e na atualidade a construção de uma família independe do vínculo biológico. O afeto passou a ser algo marcante na sociedade contemporânea, a partir do momento que a filiação não é mais estabelecida somente pelos laços sanguíneos e, é o afeto que passou a unir os pais aos filhos.
Portanto, o afeto desencadeou uma nova forma de estabelecimento da filiação, que é a filiação socioafetiva. A filiação socioafetiva não é estabelecida somente entre o pai e filho, como também entre os outros parentes que compõem uma família, fazendo com que essa modificação na atual conjectura familiar, sofra incidência de forma ímpar na sociedade brasileira.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 08 agosto 2022.
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 5. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
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LOBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: direito de família e sucessões. volume 5. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MADALENO, Rolf. Novas perspectivas no direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
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