Rembrandt, pintor holandês, não imaginaria que, em 2016, quase quatrocentos anos depois da sua morte, um quadro novo, nomeado The Next Rembrandt, seria gerado por um sistema de inteligência artificial que aprendeu o estilo do artista após ser treinado com dados das suas pinturas.
Uma rápida pesquisa na internet exibirá a pintura The Next Rembrandt. Se ela for comparada com as pinturas originais do Rembrandt, não se notará muita diferença nas formas, no tipo de luminosidade, na escolha da pessoa desenhada – é uma pessoa branca, usando adereço na cabeça, com características bastante europeias. Muitos não diriam – e alguns especialistas em arte realmente não disseram - que ela foi pintada por um sistema de inteligência artificial.
Casos como estes desafiam o sistema jurídico de propriedade intelectual. Dentro deste sistema, temos a propriedade industrial, que cuida da proteção de invenções (medicamentos, máquinas...) por meio da concessão de patentes, e o direito autoral, que cuida de obras intelectuais (livros, músicas, pinturas...). Ambos tradicionalmente protegem criações humanas e conferem direito de exclusividade de exploração econômica.
De onde veio a ideia de criar o sistema de inteligência artificial que deu origem à obra The Next Rembrandt? Um grupo de especialistas em arte junto com cientistas da computação decidiram digitalizar todas as obras do pintor Rembrandt, fazendo um banco de dados composto pelas obras digitalizadas. O próximo passo era saber qual era o padrão de pintura, o tipo de pintura mais comum no conjunto. O sistema de inteligência artificial, por meio de algoritmos de reconhecimento facial, passou a ser treinado para identificar os padrões geométricos das pinturas originais, com o objetivo de replicar as pinceladas de Rembrandt. Por exemplo, qual era a distância entre os olhos que ele mais utilizava? Qual era o tamanho da boca?
O sistema de inteligência artificial passou, então, a reproduzir o padrão que ele aprendeu no treinamento feito com base nas pinturas originais, gerando como resultado a pintura digital The Next Rembrandt, que depois foi impressa.
Na cultura jurídica nacional e internacional, a proteção autoral é dada para o ser humano, já que nosso sistema é antropocentrista, protege o que o humano cria. Será que podemos dizer que os autores desta pintura são, na verdade, aquele conjunto de cientistas e artistas que criaram e treinaram o sistema de inteligência artificial? Ou será que o sistema de inteligência artificial é que deve ser considerado autor? Se sim, quem seria detentor dos direitos autorais, a máquina? Ou os direitos autorais não caberiam a ninguém e a obra estaria em domínio público, podendo ser reproduzida livremente? Temos aqui diversos questionamentos ainda sem resposta certa.
Sistemas de inteligência artificial, como este que gerou o The Next Rembrandt, são máquinas que buscam reproduzir o comportamento humano. O subcampo da inteligência artificial mais usado nos sistemas é o machine learning, que é uma técnica por meio da qual se ensina um programa de computador a identificar padrões em dados digitalizados e a aplicar o conhecimento obtido em novos dados, fazendo previsões, recomendações ou decisões. Se for uma pintura, extrai-se o padrão daquela pintura para que ela possa ser replicada; se for uma rede social, extrai-se o padrão de comportamento do usuário para que ele possa ser exposto a posts que lhe interessem.
No ambiente da propriedade intelectual e das criações humanas, vemos hoje a constante participação da inteligência artificial servindo como uma simples ferramenta que auxilia o autor humano. Por exemplo, no caso das vacinas para a Covid-19, o auxílio da inteligência artificial aos cientistas facilitou sua rápida produção. Nos medicamentos, sistemas de inteligência artificial podem substituir os testes em animais, agilizando a seleção de compostos e a eficiência dos testes.
Nestes casos, ninguém diz que a vacina ou o medicamento teriam sido criados de forma autônoma pelo sistema de inteligência artificial, já que ele serviu como uma simples ferramenta para o inventor humano e a autoria continua sendo do grupo de cientistas.
O problema complica quando os sistemas de inteligência artificial são muito sofisticados e não apenas servem como ferramenta para auxiliar o autor humano, mas geram resultados inovadores que exigem uma mínima intervenção humana e resultado é imprevisto para os próprios programadores.
Vamos a mais um exemplo. Uma universidade da Alemanha criou um robô chamado e-David. O que esse robô faz? Ele foi treinado com uma série de fotos para aprender a fazer desenhos a partir do padrão de linhas e cores extraído das fotos. Além disso, ele foi equipado com um software que tirava fotos aleatórias ao longo do campus da faculdade. Assim, ele ficava com um conjunto de dados formado tanto por fotos que ele tirava sem autorização humana, quanto por fotos que os programadores selecionavam. Com base nesse conjunto de dados, ele criava fotografias novas, gerando um formato de cores, de linhas e traços que eram imprevisíveis para os programadores. Estão na internet, para quem quiser ver.
Será que esse resultado inovador poderia ser considerado criado pelos humanos, ainda que fosse imprevisível para eles? Ou o autor deveria ser o robô e-David? Também não há respostas certas ainda.
Chegamos ao caso recente mais comentado dentro da propriedade industrial: o robô Dabus. Dabus é um sistema de inteligência artificial criado por Stephen Thaler, proprietário da máquina. Segundo ele, a máquina criou, de forma autônoma, sem intervenção humana, duas invenções que devem ser protegidas por patente. São invenções muito simples, um recipiente de alimentos e uma luz de emergência, mas que poderiam ser patenteadas se fossem criadas por um inventor humano. Thaler pretende que Dabus seja o autor dessas criações, e ele, o Thaler, seja apenas o titular da patente, a quem caberia exercer os direitos patrimoniais, como receber eventuais royalties.
Foi assim que, para chamar a atenção internacional, os dois requerimentos de patentes que indicavam Dabus como autor da invenção foram depositados em órgãos de patentes de diversos países: United States Patent and Trademark Office, United Kingdom Patent Office, Australia Patent Office, Japan Patent Office, e mesmo no Brasil, no INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
O que os órgãos de patentes do Reino Unido e dos Estados Unidos disseram em 2020? Não pode patentar, porque Dabus é uma máquina e somente um humano pode ser considerado um inventor; a propriedade industrial é antropocêntrica, protege criações humanas. A duas invenções ficaram em domínio público.
Inconformado, Stephen Thaler leva o caso para o Judiciário. A High Court of Justice of England and Wales, a segunda instância da Corte de Justiça do Reino Unido, concorda com o entendimento administrativo, dizendo que, “considerando nossa lei de patentes, somente uma pessoa, e isso significa uma pessoa natural, pode ser considerada inventora. Ainda que se dê um nome – Dabus - para uma máquina, isso não dá a ela uma personalidade, de modo que ela não pode ser considerada inventora”.
Em 2021, essa mesma situação chega à Austrália. O órgão de patentes da Austrália, em sede administrativa, nega a concessão dos pedidos de patentes, pelos mesmos motivos. Mas a Corte Federal da Austrália, surpreendentemente – e é a única até o momento –, defere a proteção, revendo a decisão negatória administrativa e dizendo que (i) “sistemas de inteligência artificial podem ser inventores”; (ii) “esta é a interpretação mais consistente com a realidade da tecnologia atual e com a promoção da inovação” e (iii) “o conceito de inventor deve ser interpretado de forma flexível e evolutiva”.
O que a Corte Federal da Austrália fez neste caso, embora a decisão esteja sujeita a recurso? Determinou a concessão da patente para as duas criações, dando ao robô Dabus a condição de inventor e, ao dono da máquina, Stephen Thaler, a condição de titular dessas patentes, a quem caberão os efeitos financeiros. Este é um precedente que vem sendo muito discutido no mundo todo, porque pode mudar a forma de interpretar a propriedade intelectual, que atualmente é antropocêntrica. Se o caso chegar ao Judiciário brasileiro, provavelmente caberá ao Superior Tribunal de Justiça a palavra final sobre esta interpretação.
Para finalizar, deixarei duas reflexões.
Primeiro, quando falamos em autoria não humana de invenções e de obras intelectuais, ou seja, autoria por uma máquina, como a que a Corte Federal da Austrália reconheceu, estamos falando em algo que não está previsto na legislação. A legislação internacional – a exemplo dos Estados Unidos e da Europa – diz que o inventor tem de ser uma pessoa física. Da mesma forma, a Lei de Propriedade Industrial brasileira, Lei n. 9.279/96, diz que o inventor tem de ser uma pessoa nomeada e qualificada (art. 6º, § 4º), portanto, uma pessoa física. A Lei de Direitos Autorais brasileira, Lei n. 9.610/98, também diz que o autor tem de ser uma pessoa física (art. 11).
É assim porque a criatividade é, tradicionalmente, um atributo do ser humano, justificando-se a proteção jurídica à “criação do engenho humano”, “da inteligência humana”, nas palavras de Gama Cerqueira e Waldemar Ferreira. O sistema de propriedade intelectual tem um elevado grau de antropocentrismo. Será que estamos realmente no ponto de virada para passar a reconhecer a autoria não humana para criações?
Segunda reflexão. Se passarmos a entender que um sistema de inteligência artificial pode, sim, ser considerado autor, porque ele criou uma obra ou invenção e o que importa é o resultado inovador e não quem fez, as legislações terão de ser adaptadas. A questão, então, passa a ser: será que há razão para reconhecer às máquinas a qualidade de autoras?
Nesse ponto, temos que lembrar a razão de existir da propriedade intelectual. Por que protegemos criações do espírito? Por que protegemos invenções? Por que damos direitos de exclusividade de exploração econômica para as pessoas que criam, que inovam? Entre as diversas teorias que existem, selecionei uma delas, a teoria econômica, que se aplica sobretudo em relação a patentes. Segundo essa teoria, as patentes são uma forma de incentivo financeiro para as pessoas continuarem investindo em pesquisa e desenvolvimento, já que terão um direito de exclusividade de exploração por vinte anos, podendo recuperar parte do investimento feito.
Porém, quando falamos de sistemas de inteligência artificial, será que essa lógica do incentivo funciona da mesma forma? Em que medida as empresas que desenvolvem sistemas de inteligência artificial que podem gerar criações necessitam de incentivos? É claro que existem empresas desta área de diversos tamanhos, mas muitas delas são big techs. Estas empresas, assim como as empresas menores, podem encontrar outras formas eficientes de recuperar seus investimentos. O próprio Stephen Thaler, por exemplo, tem uma proeminência nesse ambiente.
Diante destas reflexões, as opções que se apresentam hoje são, em especial, (i) a reestruturação das legislações de propriedade intelectual para que criações da inteligência artificial com mínima participação humana sejam protegidas ou (ii) a ausência de proteção para as criações, que ficariam em domínio público. Em quaisquer hipóteses, é fundamental que haja diálogos em âmbito internacional, como na Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, a fim de se chegar a uma compreensão e tratamento uniforme do tema. Os desafios são grandes, mas as oportunidades oferecidas pela inteligência artificial são ainda maiores.
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Palestra traduzida do inglês, proferida em novembro de 2022, em Genebra, na Suíça, no Fórum de Juízes da World Intellectual Property Organization (WIPO/OMPI).