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Indústria de genéricos usa prática ilegal no Brasil para alterar bulas e infringir patentes

Ainda que o skinny label passe a ser amparado pela legislação e regulação sanitárias – o que claramente não é –, não deve ser considerado suficiente para concluir que não há infração de patentes de uso médico. Faz-se necessária uma análise casuística, levando-se especialmente em consideração o comportamento das empresas detentoras dos registros dos genéricos e similares nas estratégias de comercialização dos seus produtos.

20/12/2022

Uma estratégia comumente adotada no exterior para o lançamento de medicamentos genéricos de modo a evitar a infração de patentes de segundo uso médico é excluir das bulas dos produtos as indicações terapêuticas que sejam objeto da proteção patentária. Essa prática, conhecida como “skinny labeling” ou “carving out”, começa a ser importada para o Brasil, em desacordo com a lei 6.360/1976 e a Anvisa.

Isso pois as definições legais de medicamentos genéricos e similares determinam que estes devem ter a mesma (ou as mesmas) indicação(ões) terapêutica(s) do seu medicamento de referência, “podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos” (artigo 3º, XX e XXI, da lei 6.3601). Parece claro que não há espaço para diferenças entre as indicações terapêuticas de genéricos e similares e de seus respectivos medicamentos de referência.

A regulação da Anvisa que estabelece os requisitos para bulas de medicamentos – Resolução da Diretora Colegiada (RDC) 47/2009 – ratifica essa interpretação. Seu artigo 14 exige que as bulas dos genéricos e similares estejam em harmonia quanto à forma e conteúdo com a bula do respectivo medicamento de referência, isto é, sua “bula padrão”2. Logo, nesse ponto – comprovação da segurança e eficácia do uso –, que obviamente engloba as indicações terapêuticas, não pode haver divergência.

Sendo ainda mais clara, a regulação prevê que as bulas dos genéricos e similares só podem diferir nas informações específicas de cada produto, listando-as: (i) dados de identificação do medicamento; (ii) frases de advertências específicas relacionadas aos excipientes, aos cuidados de armazenamento, ao prazo de validade, às orientações de preparo e às reações adversas relacionadas à formulação do medicamento; e (iii) dizeres legais (i.e., número do registro do medicamento, nome e endereço da titular do registro e da fabricante do medicamento, etc.)3. As indicações terapêuticas não estão nesse grupo.

Também nesse sentido é a norma da Anvisa que dispõe sobre as mudanças pós-registro de medicamentos sintéticos (RDC 73/16). Nela, a possibilidade de empresas solicitarem à Agência a inclusão de novas indicações terapêuticas na bula está restrita a medicamentos da categoria nova (Anexo I, Item 11), que, em regra, são os eleitos como de referência. Havendo a inclusão, as titulares dos registros dos genéricos e similares daquele medicamento devem disponibilizar as suas respectivas bulas atualizadas dentro de 180 dias4. Não há previsão para pedidos de exclusão de indicação terapêutica pelos titulares de registro de genéricos e similares. Ou seja, a única alteração das indicações terapêuticas para genéricos e similares autorizada pela regulação é em decorrência de uma alteração anterior na bula do seu medicamento de referência, de modo que genéricos e similares continuem tendo as mesmas indicações do seu medicamento de referência.

A Anvisa já confirmou que o seu entendimento é no sentido de que skinny labeling não é permitido no Brasil, já que “os textos de bula dos medicamentos similares e genéricos devem conter exatamente as mesmas indicações descritas na bula do medicamento de referência”5-6 .Essa identidade entre as indicações terapêuticas, necessária para a intercambialidade entre genéricos e similares e seus respectivos medicamentos de referência, é lógica de toda a regulação da Anvisa.

Apesar dessa vedação, observa-se que algumas empresas estão atualizando a base de dados da Anvisa (o Bulário Eletrônico) com bulas nas quais não constam todas as indicações terapêuticas do respectivo medicamento de referência7. A submissão no Bulário Eletrônico a priori não passa por um crivo prévio da Agência (por ser uma “mudança de implementação imediata”8), o que facilita a implementação do skinny label quando o registro do genérico ou similar já foi concedido. A Agência já tem conhecimento de que isso está ocorrendo e informou que justamente a ausência de análise permitiria a existência desses casos concretos9.

Contudo, também há caso em que o registro do genérico ou similar foi concedido pela Anvisa já sem todas as indicações terapêuticas em bula10. E o modelo de bula é um dos documentos que instrui o pedido de registro de um medicamento. Diante desse cenário, vê-se que está sendo implementado o que pode ser chamado de “de facto/non-statutory skinny label”, em completo desacordo com a lei 6.360 e a regulação da Anvisa.

Não obstante, de acordo com as informações prestadas pela Agência, “existem discussões internas sobre o assunto suscitado após decisão do INPI de concessão de patentes de segundo uso para indicações terapêuticas, mas tais discussões somente implicarão em mudança de posicionamento caso resultem na alteração da RDC 47/09, o que ainda não ocorreu”11. Há ainda notícia de que a Anvisa discutiu com a Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos e Biossimilares (PróGenéricos) a possibilidade de legitimar a prática ainda que não haja mudança da regulação.

Isso ocorreria, supostamente, com a aplicação do parágrafo único do artigo 20 da RDC 47/0912, que, contudo, não foi instituído para essa hipótese. Sua previsão se volta para situações em que o medicamento de referência implementa alguma mudança pós-registro que não é aplicável ao genérico e ao similar em razão de aspectos técnicos do produto. Por exemplo, caso de uma nova indicação aprovada para o medicamento de referência que fosse restrita à uma concentração do produto na qual o genérico não está registrado. Ademais, usar o artigo 20 para tentar fundamentar a prática de skinny labeling encontra obstáculo nos conceitos de medicamento genérico e similar previstos na lei 6.360.

Nessa tentativa de forçar a prática de skinny labeling ao arrepio do entendimento da Anvisa, das previsões da Lei 6.360 e da regulação da Agência, esquece-se de que a ausência na bula da indicação objeto de proteção patentária não é um salvo-conduto à configuração de infração patentária. Tribunais internacionais na Europa e nos Estados Unidos – onde o skinny label é permitido – vêm chancelando o entendimento de que é necessária uma análise holística do comportamento da empresa demandada.

Por exemplo, atenta-se para as estratégias de marketing usadas pela empresa de genérico para verificar se de alguma forma induzem a prescrição do seu produto para a indicação patenteada, ainda que esta não conste em sua bula (caso GlaxoSmithKline v. Teva13). Em outra discussão, analisou-se a circunstância em que, por mais que a indicação patenteada não constasse na bula, era mencionada em outros trechos como na descrição da posologia e dos eventos adversos (caso Amarin v. Hikma14).

Em outra oportunidade, observou-se que empresa titular do genérico participou de um pregão para a aquisição do medicamento, mas deixou de informar voluntariamente à operadora de plano de saúde que o estava conduzindo que o seu produto não continha uma das indicações terapêuticas (caso Novartis v. Sun Pharmaceutical15). Transpondo para a realidade do mercado brasileiro, é especialmente importante analisar o comportamento em vendas para o Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque, para medicamentos dispensados para mais de uma indicação terapêutica, em regra não é feita uma distinção do quantitativo adquirido para cada uso a que se destina.

Sendo assim, ainda que o skinny label passe a ser amparado pela legislação e regulação sanitárias – o que claramente não é –, não deve ser considerado suficiente para concluir que não há infração de patentes de uso médico. Faz-se necessária uma análise casuística, levando-se especialmente em consideração o comportamento das empresas detentoras dos registros dos genéricos e similares nas estratégias de comercialização dos seus produtos.

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1 Art. 3º. “Para os efeitos desta Lei, além das definições estabelecidas nos incisos I, II, III, IV, V e VII do Art. 4º da Lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, são adotadas as seguintes: [...] XX - Medicamento Similar – aquele que contém o mesmo ou os mesmos princípios ativos, que apresenta a mesma concentração, forma farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica e que é equivalente ao medicamento registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e forma do produto, prazo de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, devendo sempre ser identificado por nome comercial ou marca; XXI – Medicamento Genérico – medicamento similar a um produto de referência ou inovador, que se pretende ser com este intercambiável, geralmente produzido após a expiração ou renúncia da proteção patentária ou de outros direitos de exclusividade, comprovada a sua eficácia, segurança e qualidade, e designado pela DCB ou, na sua ausência, pela DCI;”. 

2 Art. 14. “As bulas dos medicamentos genéricos e similares devem ser harmonizadas com as suas respectivas Bulas Padrão no tocante à forma e ao conteúdo relativo às informações sobre a eficácia e segurança para uso do medicamento.”

3 Essas informações que podem diferir estão listadas no artigo 14, §1º, da RDC nº 47/2009. 

4 RDC nº 47/2009. “Art. 20. Para as alterações nos textos de bulas dos medicamentos que possuem Bula Padrão, vinculadas às alterações de suas respectivas Bulas Padrão, exceto para as informações específicas do produto, as bulas devem ser notificadas eletronicamente em até 90 (noventa) dias e disponibilizadas em até 180 (cento e oitenta) dias após a publicação das Bulas Padrão no Bulário Eletrônico, devendo ser implementadas, independentemente de manifestação prévia da Anvisa.”

5 Essa manifestação se deu no âmbito de pedido de acesso à informação apresentado à Agência com fulcro na Lei de Acesso à Informação (NUP nº 25072.037692/2021-61).

6 Destaca-se que essa é uma vedação aplicável apenas aos medicamentos sintéticos. Para o registro de produtos biossimilares, a regulação permite que a empresa solicitante sinalize para quais indicações terapêuticas está buscando a aprovação (i.e., para quais indicações pretende que os dados de segurança e eficácia do produto biológico originador sejam extrapolados ).

7 Casos do genérico à base de mesilato de imatinibe, cujo registro pertence à Eurofarma Laboratórios S.A.; e genérico e similar à base de everolimo, cujos registrados pertencem à Natcofarma do Brasil Ltda. 

8 RDC nº 73/2016. “Art. 4º. Para efeito desta Resolução, são adotadas as seguintes definições: IX - Mudança de implementação imediata: mudança pós-registro para qual a Anvisa concede autorização prévia para sua imediata implementação pela empresa, mediante a inclusão no HMP ou na petição protocolada individualmente, de todas as provas satisfatórias requeridas para a modificação, conforme disposto neste regulamento.”

9 As informações foram prestadas pela Anvisa no âmbito de pedidos de acesso à informação apresentados com fulcro na Lei de Acesso à Informação (NUPs nº 25072.026931/2021-58 e nº 25072.037692/2021-61). 

10 Caso do genérico e similar à base de lenalidomida, cujos registros foram concedidos à Eurofarma Laboratórios S.A.

11 A informação foi prestada pela Anvisa no âmbito de pedido de acesso à informação apresentado com fulcro na Lei de Acesso à Informação (NUP nº 25072.027628/2022-53).

12 RDC nº 47/2009. “Art. 20. Para as alterações nos textos de bulas dos medicamentos que possuem Bula Padrão, vinculadas às alterações de suas respectivas Bulas Padrão, exceto para as informações específicas do produto, as bulas devem ser notificadas eletronicamente em até 90 (noventa) dias e disponibilizadas em até 180 (cento e oitenta) dias após a publicação das Bulas Padrão no Bulário Eletrônico, devendo ser implementadas, independentemente de manifestação prévia da Anvisa. Parágrafo único. As empresas devem avaliar se as mudanças relacionadas à posologia, ampliação de uso, inclusão de nova via de administração e/ou nova indicação terapêutica são aplicáveis ao seu produto. Caso não sejam, não há a obrigatoriedade de cumprimento do prazo do caput e o prazo será avaliado caso a caso pela Anvisa, dependendo da(s) alteração(ões) pós-registro que será(ão) necessária( s) para a adequação do produto.”

13 Disponível em: https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/gkvlgmzoypb/IP%20GSK%20TEVA%20PATENTS%20FEDCIR%20opinion.pdf

14 Disponível em: https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/gkvlgmzoypb/IP%20GSK%20TEVA%20PATENTS%20FEDCIR%20opinion.pdf

15 Disponível em: https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/gkvlgmzoypb/IP%20GSK%20TEVA%20PATENTS%20FEDCIR%20opinion.pdf

Ricardo Campello
Sócio do Licks Attorneys. LL.M George Washington University.

Roberto Rodrigues
Sócio do Licks Attorneys.

Natália Toledo
Advogada do Licks Attorneys.

Anna Francisca Pizzolante Secco
Estagiária do Licks Attorneys

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