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O PL 3293/21 prejudicará seriamente a arbitragem nacional

A permissibilidade de escolher qualquer cidadão capaz, disponível e com a especialização necessária, para julgar uma questão é justamente o que define a arbitragem. Restringir tal liberdade é desvirtuar a instituição.

19/12/2022

A atual Comissão de Constituição Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados está discutindo a possível aprovação do PL 3293/21. O que é proposto pela sua autora como algo que “visa, pois, aprimorar a lei de Arbitragem,”, na realidade afetaria muito negativamente o instituto arbitral nacional. Ao tentar aprimorar uma lei, a Câmara arrisca desvirtuar a arbitragem brasileira, desacelerar investimentos, e congestionar ainda mais os tribunais nacionais. 

Este assunto pode parecer inconsequente ou até inofensivo para aqueles fora da comunidade arbitral. No entanto, cabe ressaltar que caso aprovada, tal lei irá prejudicar a principal ferramenta jurídica utilizada por empresas para resolver suas disputas. Assim, desacelerando o ambiente de negócios nacional e diminuindo a segurança jurídica necessária para investimentos estrangeiros. 

Os processos judiciais são demorados. Tal demora gera custos e oportunidades perdidas. Por esse motivo, muitas partes em conflito preferem resolver as suas disputas fora dos tribunais estatais. E a forma mais utilizada pela iniciativa privada para evitar o Poder Judiciário, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, é a arbitragem. Processo este em que um profissional independente, imparcial e especializado na matéria em disputa, é nomeado pelas partes para resolver a disputa no âmbito privado.

O processo arbitral é tão antigo quanto Roma. De igual maneira, conforme as nações modernas começaram a emergir, a arbitragem foi adotada pela maior parte dos sistemas jurídicos. A Inglaterra, por exemplo, aprovou legislação que regulava o uso do instituto no país ainda em 1698. Na França, a Constituição de 1793, já protegia o direito de resolver disputas através da arbitragem. Nos Estados Unidos, legislações estaduais já regularizavam a prática pelo menos desde que o Estado de Connecticut assim o fez em 1774.

Por isso, a importância da lei 9.307 de 1996, que finalmente regularizou a arbitragem e as suas principais características no direito brasileiro. Assim terminando um vasto período em que o direito arbitral ainda se encontrava em processo de reconhecimento no Brasil.

Hoje, a arbitragem é o método de resolução de controvérsias escolhido para disputas a nível empresarial. Como indicado pelo relatório “Arbitragem em Números” de autoria da Professora Selma Lemes, em 2021, havia 1.047 processos arbitrais em aberto no Brasil. Estes processos, no entanto, disputam a significativa quantia de 55 bilhões de reais.Valor este, que comprova a confiança que o setor privado tem no instituto, o utilizando, portanto, para resolver causas de grande importância para o país.

A confiança que empresários têm na celeridade da arbitragem traz investimento. A possibilidade de resolver a disputa por via arbitral, traz confiança para o investidor, que sabe que caso tenha um direito seu violado poderá contar com um método muito mais rápido para obter uma solução definitiva. Também traz confiança ao investidor estrangeiro, que frequentemente desconfia da parcialidade de tribunais judiciais desconhecidos e prefere os procedimentos mais flexíveis e familiares da arbitragem.

A arbitragem é por natureza transnacional. Como argumenta Emmanuel Gaillard, pode-se dizer que o foro de um árbitro é o mundo. As regras e práticas arbitrais são similares nas distintas jurisdições e isso é positivo, já que gera segurança jurídica. E por isso é possível afirmar que a boa prática internacional discorda das propostas do PL 3293/21 aqui discutidas.

Os benefícios econômicos trazidos pela arbitragem são parte do motivo pelo qual a Convenção de Nova Iorque, a principal convenção de reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras, tem 156 países signatários. Um reflexo da importância que a arbitragem tem em um país para garantir um ambiente amigável de negócios.

O atual projeto 3293/21 propõe profundas mudanças a essa legislação. Vamos focar aqui em duas destas que seriam particularmente danosas: (i) A mudança do critério do dever de informação de “dúvida justificada” para “dúvida mínima” e (ii) A limitação para que os árbitros só participem de máximo dez tribunais por ano.

Primeiramente, o PL propõe alterar o critério do dever de revelação dos árbitros. O atual artigo 14 dispõe que o árbitro deve revelar quaisquer informações que possam trazer dúvida justificada sobre sua imparcialidade e independência. O PL propõe alterar esse critério para “dúvida mínima”, gerando assim grande insegurança jurídica para futuros procedimentos arbitrais, impugnações desnecessárias e acusações de violação da lei de arbitragem por atos banais, como será explicado.

Primeiramente, porque “dúvida mínima” é uma expressão leiga, extremamente subjetiva, não utilizada nas legislações estrangeiras. O atual §1 do artigo 14 da lei de arbitragem é uma tradução literal do artigo 12 da lei Modelo da Comissão das Nações Unidas sobre o Direito do Comercio Internacional (UNCITRAL). O parâmetro proposto de “dúvida mínima”, no entanto, não é aplicado em nenhuma das 10 legislações mais populares para sede de arbitragens em casos internacionais. Várias destas inclusive, utilizam o mesmo critério de “dúvida justificada” que o Brasil. Estas sendo a Inglaterra, Cingapura, Hong Kong, Emirados Árabes Unidos e a Suíça. Também pode-se citar outros países na América do Sul, por exemplo, como a Argentina e o Peru.

Diferentemente, os Estados Unidos não estabelecem um critério de forma expressa. Mas determina que as sentenças podem ser anuladas caso haja “evidente parcialidade ou falta de independência” do árbitro. Enquanto a China, apesar de não estabelecer expressamente a extensão do dever de informação, enumera uma lista restrita dos fatos que podem levar à remoção de um árbitro.

O que é evidente portanto é que a vasta maioria da comunidade internacional adota um critério menos subjetivo e severo do que “dúvida mínima”, expressão esta que não é definida pelo legislador. O risco que existe é que, mesmo que o árbitro seja diligente ao prover uma lista minuciosa de todos as suas relações comerciais, pessoais e profissionais, este ainda possa ser impugnado, por exemplo, por ser membro de uma associação profissional ou clube esportivo ao qual coincidentemente o advogado de uma das partes também participa. Ou porque participaram do mesmo congresso acadêmico. Até relações assim distantes poderiam gerar espaço para uma alegação de que houve uma violação à lei de arbitragem, por existir “dúvida mínima”. Assim, privando a parte do seu direito de escolher o árbitro.

Como segundo ponto, a característica definidora da arbitragem é a faculdade de selecionar os próprios árbitros. A proposta de limitar o número de procedimentos arbitrais anuais por árbitro restringe essa liberdade. Através desta medida, o PL tenta propagar maior agilidade no mercado, no entanto, seu efeito seria desvirtuar e remover as características que fazem o instituto atrativo.

A justificativa que foi protocolada junto ao projeto na Câmara, argumenta o seguinte:

“Por exercer função judicante e personalíssima, considerando sua livre indicação pelas partes, a lei 9.307/96 exige que o árbitro conduza os casos com diligência, eis que a celeridade é característica ínsita aos procedimentos arbitrais. O que se tem notado na prática, porém, é a presença de um mesmo árbitro em algumas dezenas de casos simultaneamente, bem assim o aumento no tempo de tramitação das arbitragens. Muitas vezes, essas constatações guardam relação direta de causa e efeito, abrindo brecha para o ajuizamento de uma maior quantidade de ações anulatórias”

Por esta lógica, a Câmara dos Deputados também deveria aprovar PL que limite o número de casos que um advogado possa defender por ano. Ora, se argumentaria, o que ocorre atualmente é que advogados de renome se sobrecarregam. Assim dedicando menos tempo a cada cliente e gerando processos mais longos, pois protocolam suas petições no prazo fatal.

Inclusive, não há motivo para acreditar que tal policiamento por parte do Congresso deva parar na esfera jurídica. É inquestionável que todo médico tem uma quantia limitada de horas disponíveis no dia. Então, independentemente de seu renome, seria supostamente benéfico aos pacientes, e à agilidade no tratamento de cada um, que o Legislativo imponha um limite máximo ao número de clientes que cada médico pode atender por ano. Claramente seria um absurdo.

A avaliação sobre se um árbitro profissional está sobrecarregado, e, portanto, não está apto a prover a atenção necessária a um caso é muito legítima e importante. Mas é uma avaliação que cabe às partes na controvérsia. E não ao Congresso. Da exata mesma forma que a avaliação de se um médico está sobrecarregado ou terá tempo para tratar tal condição, cabe ao paciente que o contrata e ao mercado. Uma avaliação que é automática em toda contratação de um serviço, e que é inerente a qualquer e todo mercado de trabalho. 

Quando disputantes vão a arbitragem, estes têm a oportunidade de impugnar árbitros selecionados pela parte contrária. O árbitro já tem o dever de informar todas as partes de qualquer situação que crie risco de “favorecimento de uma das partes”, contanto que seja uma dúvida justificada. Esse mecanismo de impugnação é comprovado como eficaz no Brasil e é muito similar ao realizado em arbitragens internacionais.

O efeito prático das propostas e proibições é a redução da atratividade da arbitragem. O Congresso argumenta que atualmente árbitros estão sobrecarregados, mas na realidade quem está sobrecarregado é o judiciário brasileiro. Enquanto em 2021 existiam 1047 processos arbitrais, existiam também estrondosos 80 milhões de processos judiciais, de acordo com o anuário da Justiça de 2022.2 Se as partes não puderem escolher os seus árbitros de confiança, talvez prefiram ir ao judiciário, sobrecarregando ainda mais a Justiça brasileira. O Congresso Nacional deveria legislar para promover a desjudicialização dos conflitos, não o seu retorno para os tribunais judiciais.

A permissibilidade de escolher qualquer cidadão capaz, disponível e com a especialização necessária, para julgar uma questão é justamente o que define a arbitragem. Restringir tal liberdade é desvirtuar a instituição.

O que é evidente é que a vasta maioria das legislações arbitrais do mundo não incorpora limitações ao número máximo de arbitragens por árbitro. Citando somente alguns exemplos, as leis de arbitragem doméstica dos EUA, Reino Unido, Alemanha, Itália, Suécia, França, Suíça, Perú, Canadá, Austrália, Nigéria, Portugal, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Alemanha, Nova Guiné, Rússia ou da China, nenhuma destas inclui esta proibição.

Inclusive aqui cabe ressaltar que defender a liberdade das partes em controvérsia de nomear seus árbitros não é uma defesa vinda de uma visão ideológica de Estado mínimo. Governos de várias orientações econômicas concordam que essa liberdade deve ser salvaguardada. Inclusive, até mesmo Cuba e Venezuela, dois países latino-americanos que muitas vezes são criticados por uma falta de liberdade econômica, têm leis de arbitragem que permitem a repetição de painéis e não restringem a atuação anual de árbitros.

Nesse aspecto, o Brasil, uma democracia liberal, teria a lei de arbitragem mais restritiva da América Latina. O que une as propostas aqui discutidas é que todas são adições estranhas e completamente alheias à prática internacional. A aprovação deste Projeto de lei fará a lei de arbitragem brasileira uma estranha exceção perante o resto do mundo.

Já no início de seu Império, Roma permitia que cidadãos fossem escolhidos para ser “arbiters” através de um contrato chamado de “compromissium”, O mesmo arbiter poderia arbitrar quantas disputas quisesse aceitar por ano, sem limitações impostas pelo autoridade.

Façamos como os Romanos. Não deixemos séculos e séculos de tradição bem-sucedida ser jogada fora por um projeto insuficientemente fundamentado do Congresso Nacional. Se for aprovado, o PL afetará de forma muito negativa a arbitragem brasileira. Também, comprovará uma vez mais como verdadeira a tese do historiador AJP Taylor que defendia que a história humana é geralmente construída não pela vilania de grandes homens mas pelos seus equívocos.3

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1 LEMES, Selma. Arbitragem em Números. Migalhas, São Paulo. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/10/78B3FD4545063E_pesquisa-arbitragem.pdf.

2 CONSULTOR JURÍDICO. Anuário da Justiça Brasil 2022. São Paulo 2022. 

3 TAYLOR, Alan John Percival. Origins of the Second World War. Simon & Schuster. Nova Iorque. 16 de Abril de 2016. 

Christian Carbajal Valenzuela
Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Perú - PUCP. Mestrado em Direito Internacional Econômico pela Universidade de Warwick, Inglaterra. Assessor legal em arbitragens de investimento estrangeiro CIADI e ICC. Professor em cursos de "Direito Comercial Internacional" e "Arbitragem Internacional de Investimentos" em Universidades do Peru e do Brasil. Consultor do departamento de Arbitragem do escritório Braz, Coelho, Veras, Lessa e Bueno Advogados, com sedes em Curitiba e Rio de Janeiro e sócio da firma Wöss & Partners S.C. (W&P), com sede no México. Vice-Presidente da CAMARB sede Sul.

Gabriel Dotti
Acadêmico do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e estagiário do departamento de Arbitragem e Infraestrutura do escritório Braz, Coelho, Campos, Veras, Lessa e Bueno Advogados.

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