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O insustentável veto à lei Júlio Lancellotti

É preciso pensar a cidade para todos, inclusive os jovens, os idosos, os moradores de rua, e outros segmentos da população - e a lei Júlio Lancellotti é, sem dúvida, um avanço para tal finalidade.

15/12/2022

Em fevereiro de 2021, o padre Júlio Lancellotti pegou uma marreta e com ela, num ato simbólico, destruiu alguns blocos de paralelepípedo que a Prefeitura de São Paulo havia instalado na parte inferior de viaduto da Zona Leste, como forma de afugentar a população de rua dali. A Prefeitura logo mandou retirar todas os blocos, mas esta política discriminatória, de retirada dos espaços dos moradores de rua da cidade, é bem antiga e se manifesta de várias formas. São bancos antimendigos, lanças, telas e cercas, espelhos d'água, dentre outros dispositivos que têm como única finalidade afastar a população de rua e eles ocorrem em todas as cidades. A ação de revolta do padre teve grande repercussão e logo depois o senador Fabiano Contarato (Rede-ES, na época) apresentou projeto de lei ao Senado que, modificando o Estatuto da Cidade, impede este tipo de prática urbanística antidemocráticas nas cidades brasileiras.

Na justificativa do projeto, escreveu o senador: “A chamada ‘arquitetura hostil’ está cada vez mais presente nas cidades brasileiras e do mundo. Também denominada de “arquitetura defensiva” ou “desenho desconfortável” (‘unpleasant design’), essa técnica é caracterizada pela instalação de equipamentos urbanos e realização de obras que visam afastar pessoas indesejadas, principalmente as que estão em situação de rua”. Daí ter ele apresentado, no mesmo mês de fevereiro – e com a foto do padre -, o projeto de lei 488/21 que “altera a lei 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade, para vedar o emprego de técnicas de ‘arquitetura hostil’ em espaços livres de uso público”.

Continua o senador-autor: “Embora os paralelepípedos tenham sido retirados [pela Prefeitura], fato é que não se trata de caso isolado e de fenômeno recente. Há anos muitas cidades brasileiras têm não apenas tolerado, mas incentivado a arquitetura defensiva, principalmente em razão da especulação imobiliária de determinadas regiões. A ideia que está por trás dessa ‘lógica’ neoliberal é a de que a remoção do público indesejado em determinada localidade resulta na valorização de seu entorno e, consequentemente, no aumento do valor de mercado dos empreendimentos que ali se localizam, gerando mais lucro a seus investidores”.

Para lutar contra isso, o texto inicial do projeto por ele apresentado, que introduzia mais um inciso no art. 2º do Estatuto da Cidade (o inciso XX), tinha a seguinte redação: integra as diretrizes gerais da política urbana a “promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de técnicas de arquitetura hostil, destinadas a afastar pessoas em situação de rua e outros segmentos da população.” Ainda no Senado, por proposta do Senador Paulo Paim (PT-RS), a proposição passou a levar o nome do padre em razão do seu ato “forte e simbólico” cuja foto o próprio religioso publicou em sua rede social e viralizou.

Embora ganhando diversas redações, o projeto teve um processo legislativo relativamente rápido e em 22 de novembro de 2022 foi aprovado também na Câmara com o seguinte texto:  “promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população.” Ademais, o art. 1º da lei passou a ser mais explícito quanto ao seu objeto: “Esta lei, denominada lei Padre Júlio Lancelotti, veda o emprego de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público”.

Porém, supreendentemente, o Presidente da República vetou agora o projeto de lei com uma argumentação muito frágil. Disse ele em veto publicado no dia 13 de dezembro de 2022:

“Entretanto, em que pese a boa intenção do legislador, a proposição legislativa contraria o interesse público, tendo em vista que poderia interferir na função de planejamento e de governança locais da política urbana ao definir as características e as condições a serem observadas para a instalação física de equipamentos e de mobiliários urbanos. Além disso, o emprego da expressão 'técnicas construtivas hostis' poderia gerar insegurança jurídica, por se tratar de conceito ainda em construção, ou seja, terminologia que ainda está em processo de consolidação para inserção no ordenamento jurídico, de modo a se observar o disposto na alínea 'd' do inciso II do art. 11 da lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998."

Ambos os argumentos utilizados pelo Presidente não se sustentam porque a lei não contraria o interesse público. São eles: interferência com o planejamento urbano, de competência municipal, e geração de insegurança jurídica.

Quanto ao primeiro, a garantia dos direitos fundamentais – dentre eles o direito à cidade – é o próprio objetivo do planejamento. Ora, se a lei visa garantir conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade, isto se coaduna plenamente com os objetivos da ordenação do solo, que é matéria de interesse local quanto à sua efetivação (art. 30/VIII da CF). Não há conflito algum entre planejamento e garantia de tais valores. Reiterando a ideia, o propósito de “afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população” de certos locais é o próprio reverso do planejamento, é o seu contrário. Assim, não há incompatibilidade alguma a causar qualquer tipo de atrito com a competência municipal.

De outra parte, a alegação de que a expressão “técnicas construtivas hostis” geraria insegurança jurídica também não é aceitável porque se trata de conceito de clareza meridiana, facilmente verificável em cada caso concreto. Quando se tenta afastar um determinado grupo social composto por “pessoas indesejadas” de certo logradouro público como praças, parques, ruas, largos, utilizando-se dispositivos como blocos de concreto, grades, telas, pontas de lança, etc, isto é claramente “arquitetura hostil” - que, na verdade, nem propriamente arquitetura é porque a arquitetura organiza espaços e não bloqueia ou fecha. Daí as aspas necessárias no uso da expressão. E a “arquitetura hostil” ou, melhor, todas as “técnicas construtivas hostis”, devem ser combatidas para a democratização das cidades.

Ademais, a invocação do art. 11/II/”d” da lei complementar que disciplina a redação das leis parece que nada tem a ver com o caso uma vez que o dispositivo diz que, para obtenção de precisão, a elaboração das normas deve “escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais”. Não parece que aquela expressão, escrita em bom português, tenha variação de sentido nas diversas regiões brasileiras e não causando insegurança alguma nem do ponto de vista gramatical e nem do ponto de vista factual. Neste último caso, os litígios serão resolvidos, em cada caso, pelo Judiciário.

Portanto, espera-se que o Congresso Nacional derrube o veto, que não apresenta qualquer fundamento sólido, o que certamente ocorrerá mas infelizmente não ocorrerá no presente ano. É preciso pensar a cidade para todos, inclusive os jovens, os idosos, os moradores de rua, e outros segmentos da população - e a lei Júlio Lancellotti é, sem dúvida, um avanço para tal finalidade.

José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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