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Da penhorabilidade da pequena propriedade rural diante da ausência de exercício da sua função social

Se não existir a comprovação de que o imóvel penhorado é explorado pela família, é possível afastar assim a incidência da proteção da impenhorabilidade.

14/12/2022

Prevista no art. 5º, XXVI, da Constituição Federal de 1988 (CF/88), existe regra de impenhorabilidade da pequena propriedade rural, ora regulamentada em compasso com o disposto na lei 8.629, de 25 de fevereiro de 1993.

Em sentido semelhante é o previsto no art. 833, VIII, do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15), vejamos:

Art. 833. São impenhoráveis:

VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família.

No tocante ao conceito do tema objeto da comentada proteção jurídica, relembra-se que o art. 4º, II, alínea “a”, da lei 8.629/93, conceitua como de pequena propriedade a área de até quatro módulos fiscais, que varia de acordo com a localização geográfica de cada munícipio.

À luz disso, cumpre destacar inicialmente que não se nega a existência da proteção constitucional dada a pequena propriedade rural, ora consagrada constitucionalmente.

Entretanto, além de ser necessária a comprovação do enquadramento do bem imóvel, existe a necessidade de comprovação do exercício da sua função social, visto que a Constituição Pátria em seu art. 186 prevê o seguinte, nestas palavras:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores

Se não houver a comprovação dos requisitos cumulativos exigidos, não há que se falar em impenhorabilidade com fundamento na regra prevista no art. 5º, XXVI, da CF/88, ou mesmo naquela inserida no art. 833, VIII, do CPC/15, porquanto além da comprovação que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural é preciso que ele seja explorado pela família.

A próposito, é verificado que “[a]s situações jurídicas patrimoniais possuem uma instrumentalidade indireta à concretização da dignidade humana, pois o seu principal objetivo é a realização de uma função social”. 

Se não houvesse a necessidade de comprovação do exercício da função social, simplesmente estaríamos dando margem à uma exploração generalizada e irresponsável da proteção dada pequena propriedade rural.

O ônus da prova de que o bem constrito é explorado e eventualmente cumpre com a sua função social cabe a família, à medida que caberá a eles apresentar documentação comprobatória que ratifique o alegado, como, por exemplo, na juntada de certidão de aptidão junto ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

O próprio art. 373, I, do CPC/15, define que “o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito”, ao passo que o dever de comprovar tal situação cabe a parte que alega.

Tal raciocínio é facilmente ratificado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), in verbis:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PENHORA DE IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE. ÔNUS DA PROVA DO EXECUTADO DE QUE O BEM CONSTRITO É TRABALHADO PELA FAMÍLIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA EXPLORAÇÃO FAMILIAR . DESNECESSIDADE DE O IMÓVEL PENHORADO SER O ÚNICO DE

3. Para reconhecer a impenhorabilidade nos termos do art. 833, VIII, do CPC/2015, é imperiosa a satisfação de dois requisitos, a saber:

(i) que o imóvel se qualifique como pequena propriedade rural, nos termos da lei, e

(iii) que seja explorado pela família. Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade. Diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na lei 8.629/93, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária. Em seu art. 4ª, II, alínea a, atualizado pela lei 13.465/17, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural "de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento".

4. Na vigência do CPC/73, esta Terceira Turma já se orientava no sentido de que, para o reconhecimento da impenhorabilidade, o devedor tinha o ônus de comprovar que além de pequena, a propriedade destinava492.934/PR; REsp 17 se à exploração familiar ( REsp 7.641/RS). Ademais, como regra geral, a parte que alega tem o ônus de demonstrar a veracidade desse fato (art. 373 do CPC/2015) e, sob a ótica da aptidão para produzir essa prova, ao menos abstratamente, é certo que é mais fácil para o devedor demonstrar a alegado (grifos nosso) veracidade do fato . Demais disso, art. 833, VIII, do CPC/2015 é expresso ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar.

Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família.

9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (STJ - REsp: 1913236 MT 2020/0218252-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 16/03/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/03/2021)

Em outras palavras, “[a] função social denota que a propriedade é legitimada pela sua finalidade, motivo pelo qual são impostas ao proprietário prestações de natureza positiva, cuja inobservância enseja a intervenção do Estado na propriedade”. 

A propriedade apresenta algumas características de ser absoluta, exclusiva e ilimitada, sendo importante dar ênfase ao seu aspecto de ser considerada como um direito real.

Em caso de abuso no exercício da sua função social, o art. 186 do Código Civil de 2002 trata especificadamente sobre isto, pois eventual direito deve ser exercido de forma razoável e proporcional.

Portanto, se não existir a comprovação de que o imóvel penhorado é explorado pela família, é possível afastar assim a incidência da proteção da impenhorabilidade.

Diante do exposto, se não houver a comprovação dos requisitos cumulativos exigidos, não há que se falar em impenhorabilidade com fundamento na regra prevista no art. 5º, XXVI, da CF/88 ou mesmo no art. 833, VIII, do CPC/15.

______________

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.html. Acesso em 15 set. 2022.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2022. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 15 set. 2022.

BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 15 set. 2022.

BRASIL. Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8629.htm. Acesso em: 15 set. 2022.

JR., Luiz Antonio S. Direito Imobiliário - Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2020. E-book. ISBN 9788530992576. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530992576/. Acesso em: 15 set. 2022.

SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos N. Direito Civil – Constitucional. São Paulo: Grupo GEN, 2016. E-book. ISBN 9788597005172. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597005172/. Acesso em: 15 set. 2022.

Caio Almeida Monteiro Rego
Advogado do escritório Barreto Dolabella Advogados. Pós-graduando em Direito Civil pela PUC/MG.

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