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Práticas ESG e discurso de respeito como pressuposto lucrativo: eleições brasileiras 2022 e a função socio-democrática das empresas

As palavras utilizadas por defensores tornaram-se fortes, com emprego, muitas vezes, de palavras de ódio, racistas e excludentes dos adversários, que passaram a ser tratados como inimigos.

13/12/2022

Mais de um mês se passou desde o resultado definitivo do processo eleitoral brasileiro. As eleições e o discurso político são realidades que interessam ao setor público e ao privado, pelo impacto que as políticas públicas adotadas pelos eleitos podem trazer à dinâmica social. Em relação às eleições presidenciais de 2022, os candidatos à presidência de 2022 possuíam propostas em diferentes aspectos, como meio ambiente e abrangência e qualidade dos serviços públicos.

Esse cenário fez com que os últimos quatro meses tenham sido marcados por intensas discussões em torno do processo eleitoral brasileiro. Até a realização do primeiro turno, uma maior pulverização de ideias ou mesmo de indefinições ainda pairavam em um ambiente já caracterizado pela polarização. Contudo, inobstante esta, até por uma questão de estratégia eleitoral e alinhamento partidário, muitos apoios somente foram oficializados para o segundo turno, fato que consolidou a intensa e marcante polarização das eleições.

Pesquisas eleitorais eram termômetros para o mercado, o qual não emitia sinais claros sobre o real comportamento que adotaria após a definição do segundo turno. Especulação, dúvidas e incertezas, inclusive, do ponto de vista da “desinformação”, qualificaram a importância histórica das eleições de 2022: um país recém-saído de uma pandemia, imerso em crise econômica e cujas instituições democráticas estavam sendo tensionadas, principalmente, por discursos em rede sem lastro de confiança e fidedignidade.

Testemunhou-se um ambiente bastante propício para toda sorte de discurso, sob um aparente exercício da liberdade de expressão. Até mesmo a velha e ainda não superada alocução que acompanha o Brasil desde seus primeiros anos de República emergiu intensamente: a falsa dicotomia comunismo versus capitalismo.

As palavras utilizadas por defensores tornaram-se fortes, com emprego, muitas vezes, de palavras de ódio, racistas e excludentes dos adversários, que passaram a ser tratados como inimigos.

Para além da questão relacionada à liberdade de expressão, o discurso, no mundo contemporâneo, possui inúmeros desdobramentos jurídicos e econômicos, num cenário em que se exige postura ética e transparente dos diversos atores sociais. Os próprios cidadãos e pessoas jurídicas passam a ser considerados em sua complexidade existencial e o comportamento individual, cívico, político não é mais compreendido de forma isolada, mas dentro do contexto geral da dinâmica das relações sociais.

Exatamente por isso o discurso político emitido por diretores(as), CEOs ou proprietários de empresas, grupos econômicos e demais instituições privadas pode ter o potencial de afetar a lucratividade que esses representantes e seus segmentos almejam obter. 

Boas práticas democráticas relacionam-se diretamente com o comportamento do mercado e com as reações positivas e negativas enquanto externalidades oriundas da adoção de determinadas escolhas. Mercado, instituições políticas e democráticas, discurso e lucratividade têm afinidade diretamente proporcional e a sigla que representa melhor essa adequação é ESG.

ESG é esse novo olhar para o capitalismo. Também fruto de práticas liberais, o termo surgiu em 2004, em um relatório de Pacto Global da ONU e do Banco Mundial. “Quem se importa, ganha”, foi a partir desse ponto que, em 2004, o termo ESG foi cunhado. Do inglês Environmental (Meio Ambiente), Social (Social) e Governance (Governança), a sigla passou a ser utilizada em substituição ao termo “sustentabilidade”1. É uma expressão que vai além. Promove uma nova forma de as empresas se posicionarem em suas relações com o meio ambiente e o social, no qual estão inseridas ou suas atividades têm impacto direto ou indireto, e na forma como são administradas, de modo a não incidirem em práticas corruptas.

Com a adoção das novas práticas ESG, nota-se um avanço nos contornos mais atuais da função social da empresa, a qual decorre da “função social de propriedade dos bens de produção”, como nos ensina famoso ensaio do jurista Fábio Konder Comparato2. E, ousamos ir além.

Reconhecemos não serem as pessoas jurídicas detentoras do direito de votar e temos em nosso horizonte argumentativo o fato de terem sido vetadas de realizarem financiamentos eleitorais em razão do medo da “captura do político pelo poder econômico”3.

Todavia, a ausência do direito ao sufrágio ativo e da possibilidade jurídica de contribuírem financeiramente com o processo eleitoral não anula a participação e o posicionamento político das empresas nas eleições, principalmente através de seus diretores e representantes. Aliás, ficou, de certo modo, bem evidente existir muita força política pulsando em pequenos e grandes polos empresariais. Por isso, relevante pensarmos em como e em que medida o cumprimento da função social da empresa está, de igual forma, diretamente relacionado ao respeito dos agentes de mercado a valores democráticos.

Mas, antes de promovermos imersão em uma reflexão desta natureza, precisamos entender brevemente a relação da democracia com o capitalismo, embora reconheçamos a complexidade do tema4.

Seguindo a linha de raciocínio a qual nos propomos, consideramos importante reforçar a informação de ser o arquétipo econômico capitalista, sustentado na propriedade privada, a regra nos Estados soberanos. Esse modelo tem como finalidade o lucro. Atravessando o tempo e espaço, passou por diversas adaptações nos últimos dois séculos, adequações estas frutos de tensões provocadas por movimentos revolucionários, crises econômicas, guerras mundiais, consolidação dos direitos humanos no discurso hegemônico, processos de redemocratização, crises climáticas, surgimento da inteligência artificial, fortalecimento das pautas identitárias, aparecimento das redes sociais, combate à desinformação, pandemia, dentre outros fatores.

Em paralelo à consolidação do capitalismo como modelo econômico vigente, presenciamos o amadurecimento das instituições democráticas, as quais pressupõem e possibilitam o diálogo; aliás, precisam dele para sobreviver. O debate de ideias e de posições, e até mesmo, de compreensão sobre melhor bem, precisam estar sendo objeto de discursos constantes. Os valores liberais do capitalismo e da democracia estão lado a lado e, por essa mesma razão, precisam se retroalimentar das sensibilidades e necessidades históricas e humanas contingenciais.

Diferente da sociedade existente à época do nascimento do capitalismo, como modo de produção econômica, e da democracia, as relações e modelos sociais contemporâneos são altamente complexos e diferenciados, o que se reflete no “ser “cidadão” e “ser consumidor”, categorias indispensáveis para a política e para o mercado, respectivamente.

Cidadãos e consumidores são categorias que foram se definindo fortemente com o tempo e o Direito os abraçou com bastante proteção jurídica. Quem tem o poder de voto e de compra, capacidades básicas para manutenção do modelo liberal vigente de economia e de democracia, são pessoas com características diversas e plurais e que os processos de segmentação histórica tornaram muito mais conscientes de sua história e seu lugar no mundo; e claro, também de seus direitos.

Com uma pequena longa vida quase comum, o capitalismo e a democracia têm, com o passar dos séculos, suportado diversas tensões. Nesse contexto, importante trazer para a análise e reflexão a obra de Peter Barnes, Capitalism 3.0: a Guide to Reclaiming the Commons5. O livro propõe uma atualização do capitalismo, o qual é, para o autor, o sistema operacional da economia. As bases desse sistema apresentam falhas, razão por que propõe uma nova versão, a qual ela denomina de Capitalismo 3.0.

Por isso, sua ideia passa a ser referência para aqueles que desejem repensar e enxergar possibilidades de uma economia mais inclusiva e que tem a sensibilidade e o olhar para bens mais comuns, como a natureza, a cultura e, por que não, a própria democracia, se a considerarmos um presente político herdado de gerações e que é importante manter preservado. A democracia é, em si, um bem (propriedade) comum e que visa igualmente atingir o bem (valor) comum.

A adoção desse novo tipo de “sustentabilidade corporativa”  relaciona-se diretamente a resultados financeiros melhores. Ou seja, quando a empresa implanta os três pilares do ESG nas relações com seus colaboradores, clientes/consumidores, parceiros e fornecedores (“stakeholders” ou partes interessadas), por exemplo, incentivando realmente a inclusão, diversidade, melhores práticas de gestão e administração e o olhar mais responsivo com o meio ambiente, melhores resultados o negócio alcançará, pois, a conexão com as partes interessadas será muito mais real e profunda.

Respeito à diversidade, inclusão e ao meio ambiente são ativos muito importantes. Adotando essa nova prática, “a empresa faz a opção de criar valor a longo prazo não optando pelo lucro de curto prazo"6.

ESG está nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Os objetivos e metas de alcance global contribuem para implantação da Agenda 20307.

No âmbito das empresas, considera-se que elas estão tendo responsabilidade na construção de um mundo melhor quando, por exemplo, apoiam e respeitam à proteção de direitos humanos reconhecidos internacionalmente, asseguram a não participação em violações destes direitos, eliminam a discriminação no emprego, dentre outros.

 Essas questões, como contextualizamos na introdução do texto, tangenciam com os basilares pontos sensíveis das eleições presidenciais: excedente quantidade de discursos não respeitosos, tendo como público-alvo nordestinos, mulheres, colaboradores/empregados, população negra e parda, dentre outros grupos subrepresentados na política e historicamente discriminados.

O reputacional é um importante pilar do ESG. Pessoas representam marcas e falam, ainda que fora do exercício de seus cargos, em nome deles. Chegamos no estágio da indissociabilidade, afinal, o personalismo, conexões e autenticidades são fortes ativos do momento, pois os consumidores buscam, além da mera compra, experiências com a marca. São seres humanos que tomam decisões, criam políticas, assim como discutem ações, mercados, bem-estar e valores como respeito, equidade, isonomia. São com essas pessoas que o consumidor deseja se conectar para que sua aquisição faça sentido.

Qualquer discurso não respeitoso afeta, portanto, diretamente o que empresas e grupos econômicos mais almejam: o lucro. O consumidor e eleitor do futuro não irão mais aderir a discursos antigos e a propostas que não fazem mais sentido em sua realidade, muito menos que desrespeite a si e ao seu poder de compra, seja ele em qual grau for.

Os representantes das marcas precisam compreender a dimensão política que assumem ao ascender a determinadas posições. E assumir toda e qualquer sorte de externalidades que podem advir de suas ações.

Mas um ponto o mercado já revelou: empresas e grupos econômicos investidores em diversidade lucram mais. Um capitalismo de propósito, em que as pessoas não se sintam apenas exploradas enquanto trabalhadores ou consumidores, mas enxerguem real sentido no labor e/ou nas experiências de aquisição, assim como vejam em suas decisões por trabalho ou produto um passo na construção de um mundo melhor, é a versão mais atualizada desse sistema operacional do modelo econômico vigente.

E compreender essa nova fase do capitalismo também exigirá forte investimento em educação. Por isso, nada mais atual do que o pensamento de Martha Nussbaum, que reconheceu a crise silenciosa pela qual o mundo todo está passando: a crise na educação. A busca desenfreada por resultados tem deixado de lado “competências indispensáveis para manter a democracia viva”.8 O sistema educacional tem formado pessoas programadas para o lucro e não “cidadãos íntegros que possam pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado dos sofrimentos e das realizações dos outros”.

Reconhecer essa crise na educação será preciso para que possamos formar cidadãos e consumidores com habilidades e competências para operarem essa mais nova versão do sistema, que exigirá humanidade, sobretudo.

Como alerta Thomas Kuhn: “O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos.”

Práticas ESG, democracia e discurso de respeito são pressupostos lucrativos e assumem forte e determinante protagonismo nesse upgrade capitalista com geração de valor.

Por isso, vislumbramos, pelas reflexões tecidas, uma função socio-democrática da empresa por meio de exercício respeitoso de sua força política reverberante de seus pequenos e grandes polos durante as disputas eleitorais, seja a força política que atinja trabalhadores, consumidores, investidores e/ou admiradores da marca. O futuro do mercado e da política exigirá essa compreensão e sensibilidade para o cumprimento dessa nova colocação.

_____________________

1 Conferir https://www.pactoglobal.org.br/pg/esg.

2 COMPARATO, Fábio Konder. Função social de propriedade dos bens de produção, em Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 125-135.

3 LUCHETE, Felipe. STF publica acórdão que proíbe financiamento eleitoral por empresas. Consultor Jurídico, 05/03/2016. 

4 Conferir, por exemplo, Joseph A. Schumpeter. Capitalismo, socialismo e democracia. Editado por George Allen e Unwin Ltd., traduzido por Ruy Jungmann). Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961.

5 BARNES, Peter. Capitalism 3.0: A Guide to Reclaiming the Commons. Berrett-Koehler, 2006.

6 OLIVEIRA JÚNIOR, José Santos de. Influência dos diferentes níveis de democracia no ESG Score das empresas: um estudo cross country, 2022, 157 f, p. 11.

7 Conferir https://www.pactoglobal.org.br/pg/esg .

NUSSBAUM, Martha. Sem fins lucrativos. Por que a democracia precisa das humanidades. Martins Fontes, São Paulo, 2015, p. 04.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Jéssica Teles de Almeida
Mestre e Doutoranda pela UFC. Professora de Direito Eleitoral e Direitos Humanos da UESPI. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e do Grupo Ágora (UFC).

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