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Sistema penal e exclusão social – Questões de classe sócio-econômica

A crise que envolve a Dogmática Jurídica estatal do positivismo, tomada no contexto de um Poder Judiciário inoperante, desacreditado e ultrapassado, nos leva forçosamente a reconhecer sua falência como instrumento efetivo de solução de conflitos interesses.

16/4/2007


Sistema penal e exclusão social – Questões de classe sócio-econômica

Aimbere Francisco Torres*

1. Introdução

A crise que envolve a Dogmática Jurídica estatal do positivismo, tomada no contexto de um Poder Judiciário inoperante, desacreditado e ultrapassado, nos leva forçosamente a reconhecer sua falência como instrumento efetivo de solução de conflitos interesses.

Fato este, experimentado quase sempre pela população menos favorecida deste país, logo se torna imperioso repensar o papel do Poder Judiciário diante das novas necessidades sociais ocasionadas pelas transformações ocorridas nos últimos tempos.

Com efeito, numa análise ainda que superficial do tema depreende-se a imprescindível necessidade de se romper com esta Estrutura Estatal vigente, que de há muito não acompanha nem satisfaz as necessidades sociais, políticas e econômicas advindas da modernidade para a modernidade recente.

Necessidades estas impostas por um capitalismo central dominante que reduz a América Latina, em especial o Brasil, numa região subdesenvolvida e dependente, onde seus cidadãos menos favorecidos são relegados a mercê da própria sorte, colocados à margem de um Estado adjetivado como Democrático de Direito.

Ressalte-se, contudo, que estas mudanças embora imprescindíveis, devem vir acompanhadas de profundas alterações na base do Poder Judiciário, principalmente no que tange a sua estrutura burocrática, fonte geradora da ineficácia da tutela jurisdicional, quase sempre atribuída à insuficiência de meios materiais e humanos.

De outro lado, imperiosa e necessária é a aceitação por parte do aplicador da lei de uma nova concepção do direito, essa releitura do que seja direito é a pedra angular na superação desta crise. Infelizmente nas entranhas das maiorias das togas, calorosamente reverenciadas e afagadas por seus detentores, se faz presente o pensamento de Hans Kelsen, reproduzido por Nélson Hungria em seu comentário ao Código Penal de 1.940, “não há outro Direito senão o que se encerra na lei do Estado. A fórmula de Kelsen é incontestável: ‘o Estado é o Direito’.” (HUNGRIA, 1980, p. 34-37).

Revela notar, que a identificação entre Direito e Poder derivada da positivação sofreu no Brasil grande influência de uma cultura jurídica importada da Europa, mais precisamente de Portugal e, por sua vez, totalmente divorciada de nossa realidade.

Neste sentido, a lição de Antônio Carlos Wolkmer:

Esta estrutura jurídica formal fundada nas Ordenações portuguesas visava unicamente, ‘garantir que os impostos e os direitos aduaneiros fossem pagos, e na formação de um cruel (...) código penal para se prevenir de ameaças diretas ao poder do Estado. (...) A maior parte da população não tinha voz no governo nem direitos pessoais. Eram escravos, objetos de comércio’ (WOLKMER, 1997, p. 76).

Além do que inegável o fato de que o positivismo jurídico no Brasil, essencialmente monista, estatal e dogmático, desde os tempos de colônia, sempre esteve vinculado aos interesses de uma elite individualista, segregadora, adepta de um individualismo liberal e conservador, originando, por conseguinte, um Estado completamente distante e alheio das necessidades de sua população periférica e excluída.

De outro lado, não menos verdadeiro é fato de que a corrupção sempre esteve presente na sociedade brasileira, desde os tempos do império, conforme demonstra Wilcken:

(...) sempre fora uma característica da vida ao redor do império, mas assumiu uma forma concentrada no Rio. O afluxo repentino de milhares de burocratas exilados criou terreno fértil para os abusos, de modo que foram devidamente construídas fortunas misteriosas pelos freqüentadores dos círculos íntimos da corte. Enquanto a vida era uma luta para muitos dos cortesãos mais periféricos, os ministros do governo logo passaram a ter um padrão de vida muito acima dos recursos que podiam ter ganho legitimamente. (...) Por trás das bengalas, mantos e perucas, e por trás das cerimônias formais e dos éditos proferidos em linguagem refinada, o roubo em nome da Coroa disseminou-se à larga. (WILCKEN, 2005, p. 121).

2. O perfil segregador e violento da elite brasileira

A Elite colonial brasileira, representada hegemonicamente pelas oligarquias agro-exportadoras, grandes latifundiários e senhores de escravos, jamais se descurou de seu papel opressor para com suas minorias.

Afirma Wilcken que “um morador da classe alta (...) escreveu a um amigo, horrorizado, dizendo que ‘os cabras, mulatos e crioulos andavam tão atrevidos que diziam que éramos todos iguais (...)’”. (ob. cit. p. 216).

O único meio conhecido pela classe dominante no sentido de coibir a busca por igualdade de classes e assegurar sua permanência no poder e efetivando cada vez mais seu distanciamento da classe periférica, era a violência.

Sobre este fato, assevera Wilcken:

O mercado de escravos do Valongo tornou-se apenas mais uma atração como o Pão de Açúcar ou o parque da Tijuca – uma parada macabra (...). Os visitantes caminhavam por entre as fileiras do armazém com grades de ferro, onde os que aguardavam o martelo do leiloeiro ficavam mergulhados na depressão. ‘O cheiro e o calor do aposento eram muito opressivos e ofensivos’, escreveu um viajante. (...) Os turistas observavam os escravos recém-chegados que eram submetidos à humilhação de serem vendidos como gado, com os vendedores a desfilar suas mercadorias nuas, enquanto compradores potenciais lhes inspecionavam os dentes e genitália, faziam-nos correr e mandavam que os açoitassem para testar sua reação. (ob. cit. p 206).

O totalitarismo da classe dominante do império, estigmatizado pela violência utilizada na opressão de movimentos reivindicadores de interesses das classes excluídas, teve reflexo direto na legislação positivada privada que sempre lhes resguardavam e beneficiavam seu Direito de propriedade.

Relegado ao segundo plano estavam às funções sociais da posse, a resolução dos conflitos sociais de massa, merecendo total atenção das Elites tão somente a legislação penal e processual penal, que efetivaram suas conclusões nesta época, espelhando em larga medida a história da dominação racial brasileira.

Neste aspecto, Hédio Silva Junior esclarece:

(...) para os efeitos civis – contratos, herança, etc. o escravo não era considerado pessoa, sujeitos de direitos. No entanto, para o direito penal, melhor dizendo, para efeito de persecução penal, o escravo era considerado responsável, humano, isto caso figurasse como réu; já se tivesse uma parte de seu corpo mutilada, a lesão era qualificada juridicamente como mero dano – algo atinente ao direito de propriedade e não ao direito penal. Ou, ainda, caso fosse um escravo arrebatado por alguém, configurado estaria o crime de roubo. Numa palavra: sendo réu era pessoa, sendo vitima, coisa. (SILVA JUNIOR, p. 328).

Linhas adiante, narra-nos Silva Junior em seu artigo “Direito Penal em Preto e Branco”, depoimento sobre um fato ocorrido em 1913:

(...) cuja técnica redacional configura prática absolutamente usual em nossos dias – o emprego insistente, sistemático, calculado da referência à cor, quando se trata de realçar a condição racial de acusado negro, conformando recurso discurso indisfarçavelmente destinado a brandir a cor como indício de culpabilidade: ‘Um conhecido da depoente, que se encontrava no bar disse que o pretinho podia levar a motocicleta para lá; que o dito pretinho aceitou a oferta...; que a depoente não desconfiou de coisa alguma, pois o pretinho falava com naturalidade; que dias depois soube que a tal motocicleta o pretinho tinha roubado...; que a depoente conhecia de vista esse pretinho, sabendo só agora que ele praticava furto. (Op. cit., p.333).

O mesmo autor revela outro dado interessante, agora no que concerne ao Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, no início do século passado:

(...) a cor preta do acusado aumenta mais do que qualquer outra característica, a probabilidade de condenação no Tribunal do Júri. Há uma enorme diferença entre as probabilidades de condenação dos acusados pretos e dos pardos em relação aos acusados brancos. O acusado preto tem 31,2 pontos percentuais a mais de probabilidade ou chances de ser condenado do a que o acusado branco, e o acusado pardo têm 15,8 pontos percentuais a mais de chances de condenação do que o acusado branco. (Op. cit., p.333).

3. A identificação do poder com o Direito Positivo

De outro, uma análise da população carcerária do Estado de São Paulo, realizada por Brant em 1986, reproduzida na obra Cidade de Muros – Crime, segregação e cidadania <_st13a_personname productid="em São Paulo" w:st="on">em São Paulo, por Teresa Pires do Rio Cadeira (2003), demonstra de forma clara a inalterabilidade dos fatos:

(...) as pessoas classificadas como branca correspondiam a 75% da população do estado de São Paulo em 1980 (Censo), a população branca nas prisões era de apenas 47,6%. Para a população negra e mulata as porcentagens eram de 22,5% da população e 52 % nas prisões. Como argumenta Brant, isso não significa necessariamente que os negros estão mais envolvidos com o crime, mas sim que eles são mais frequentemente tidos como criminosos. Como disseram alguns dos policiais entrevistados por Brant ‘um negro correndo é um suspeito. (CALDERA, 2003, p.108).

Destarte, a estrutura social e jurídica criada como modelo por nossa classe dominante, embora inconcebível, não foi corroída pelo processo histórico – colônia, império, república – ao revés, transladou-se para os dias atuais, perpetuando-se em nossa sociedade pós-moderna, ampliando, porém, seu processo de vitimação.

Com feito, já não mais atende aos interesses e conveniências dessa elite, segregar e excluir tão somente o negro escravo, mas também o negro livre, pobre, os Sem teto, os homossexuais, os descamisados, os Sem terra, as crianças pobres, os anciãos, enfim, toda minoria étnica e social.

Os quais são classificados por essa sociedade dominante, como seres humanos supérfluos e descartáveis, que no pensamento de Celso Lafer “representa uma contestação frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto ‘valor fonte’ de todos os valores políticos, sociais e econômicos e, destarte, o fundamento único da legitimidade da ordem jurídica (...)” (LAFER, 1999, p.19).

Com efeito, a característica social do positivismo jurídico que se procurou exteriorizar com o advento da Constituição de 1988 (clique aqui) e posteriormente com o Código Civil de 2002 (clique aqui), alardeada aos quatro cantos deste país, em momento algum contribuiu para extirpar as profundas desigualdades entre a elite e a imensa maioria da população pobre deste país, que continuam mesmo com a vigência dos regramentos acima mencionados, excluída da participação política e desprovida de direitos básicos.

A professora catarinense, Vera Andrade (1994), retrata de maneira muito clara o destino que nosso Poder Judiciário subserviente e comprometido com os interesses da elite dominante deste país vem dando às normas de interesse social e coletivo.

Em seu artigo A Construção Social dos Conflitos Agrários como Criminalidade, evidencia a Autora a forte tendência do Estado em submeter à questão dos conflitos agrários ao controle das normas do Direito Penal, inserindo no pólo da vitimação os proprietários de terras.

Sobre a questão em tela, alerta Vera Andrade:

“(...) embora, pois, seja o mecanismo menos adequado, verifica-se, de fato, a colonização do problema agrário pelo controle penal, que aparece com absoluta centralidade e hegemonia sobre outros mecanismos interpretativos e resolutórios, o que só se explica mediante uma justificativa reguladora e conservadora do status quo. (ANDRADE, 1994, p.328).”

As conseqüências mais significativas desta manifestação de poder estatal segundo a autora são:

“(...) em primeiro lugar, a descontextualização e despolitização destes conflitos com o conseqüente esvaziamento de sua historicidade e imunização da violência estrutural e institucional pela sua existência. De outra parte, ao encerrar a complexidade destes conflitos (que estavam em estágio de latência controlada) no código crime-pena e ir construindo, seletivamente, uma criminalidade patrimonial rural (analogamente à construção história seletiva da criminalidade patrimonial urbana) este processo provoca, a um só tempo, a duplicação da violência contra os ‘invasores criminalizados’ e a duplicação da imunidade dos ‘proprietários vitimados’ revelando a profunda conexão funcional entre controle penal e a estrutura social (Ob. cit., p.328).

4. A seletividade do Direito Penal

No entendimento de Alessandro Baratta, é inegável a existência de “uma dolorosa analogia entre os processos de exclusão na rua e no campo; entre os Sem teto e os Sem terra e, sem dúvida, a hegemonia do controle penal representa um forte obstáculo democrático à construção da cidadania dos excluídos do campo” (Ob. cit., p.328).

Dúvida não resta que o Direito Penal está sendo instrumentalizado como fim único de efetividade a repressão de necessidades reais, compreendida pelo autor como as “potencialidades de existência e qualidade de vida das pessoas, dos grupos e dos povos que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento da capacidade de produção material e cultural...” (BARATTA, 1993, p. 46).

Essa eficácia instrumental invertida do Direito Penal, imposta pelas elites que sempre contaram com o beneplácito do Judiciário, no sentido de ignorar a tutela de bens jurídicos universais gerando insegurança jurídica e política no convívio em sociedade, acaba por reproduzir as desigualdades sociais.

Exteriorizando com isso, o paradoxo entre o sistema penal e a Constituição Federal, que estabelece como princípio a dignidade da pessoa humana, atribui à propriedade função social, assegura a toda pessoa a existência digna, deixando expresso como um dos objetivos fundamentais do Estado à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Destarte perfeitamente admissível questionar-se a legitimidade desse positivismo jurídico, instrumentalizado no sentido de regulamentar o comportamento da sociedade brasileira, visto conflitar com o valor “pessoa humana”, valor fonte de todos os demais valores, por várias vezes exteriorizada no pensamento de Hannah Arendt e adotado como princípio em nossa constituição.

Consignando-se ainda o fato, de que nossa sociedade carrega consigo o estigma da desigualdade na distribuição da propriedade, tanto no aspecto rural como urbano fruto do poder das elites, natural que a classe dominante procure deslegitimar não apenas como ilegal, mas principalmente tornar típica penalmente toda e qualquer conduta reivindicatória da sociedade, aqui textualizada pelo Movimento dos Sem Terra (MST).

Vê-se, pois, que essa convivência harmoniosa, porém imoral, entre o Direito e o Poder, leva-nos ao entendimento de que o Direito reduz-se, na feliz expressão de Celso Lafer, a “um instrumento de gestão governamental, criado ou reconhecido por uma vontade estatal soberana e não pela razão dos indivíduos ou pela prática da sociedade”. (LAFER 1999, p. 39).

Nesta senda, conclui-se uma vez mais, a falta de legitimidade do estado no sentido de efetivar seu poder de punir, ou quiçá pretender questionar eventual subsunção de conduta a norma penal incriminadora, por uma questão bastante simples; primeiramente, de acordo com Varella:

(...) o alvo do Movimento Sem Terra não é a propriedade que estão ocupando, mas a União, que deve agilizar o processo de Reforma Agrária, concedendo mais terras aos que querem produzir, desapropriando as grandes fazendas improdutivas deste país. O dolo não é se apropriar daquela terra, ato ilícito, mas sim fazer com que o Governo Federal exerça seu poder de soberania, desapropriando fazenda ocupada e outras para a realização de reforma agrária, não havendo, portanto, usurpação. (VARELLA, 1998, p.349)

Num segundo plano, a Constituição de 1.988 edificou-se alicerçada, sob a égide do princípio da pessoa humana, ao mesmo tempo em que atribuiu à propriedade finalidade social. Logo enquanto o Estado não cumprir sua parte, ou seja, atribuindo à propriedade este escopo, permitir-se-á aos excluídos – legitimados como cidadãos pelo próprio Estado – a efetivarem os direitos daí decorrentes ainda que não positivados.

Com efeito, há um evidente fenômeno de contradição estrutural entre o sistema penal e os Direitos Humanos, experimentado no Brasil. Neste sentido, a lição de Zaffaroni:

(...) enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de igualdade de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as sociedades. (ZAFFARONI, 1991, p. 149).

Ao promover uma seleção desigual entre as pessoas, em que a condição de classe dominante de um lado é o fator preponderante para gerar a impunidade e, de outro, para tornar típica, embora de forma extralegal, as condutas daqueles que não possuem um lugar neste país, os descartáveis, os excluídos, aqui representados pelos Sem terras.

A assertiva que se apóia no argumento de que o Direito Penal constitui-se em instrumento de garantia de práticas democráticas de convívio social no Brasil, não passa de um sonho de uma tarde chuvosa de verão, visto encontrar-se a serviço de uma classe dominante.

Tal assertiva é demonstrada de forma clara por Karan, ao afirmar que escolhe “para receber toda a carga de estigma, de injustiça, diretamente provocada pelo sistema penal, preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato facilmente constatável, no Brasil, bastando olhar para quem está preso ou para quem é vitima dos grupos de extermínio”. (KARAN, 1993, p. 206, 207).

No caso em tela, sem sombras de dúvidas, estamos diante de um caso sui generis na história das lutas pela efetivação do Princípio da Igualdade.

5. A ineficácia das normas sociais

A convivência harmônica entre o Poder Legislativo, acaudilhado por uma elite individualista, e um Poder Judiciário, co-réu desses interesses, é assaz perigoso por ignorar a relação de causalidade do Direito Penal para além dos movimentos sociais pela terra.

O processo de vitimização objetiva proposto pela classe dominante brasileira encontra no cidadão negro e pobre, no homossexual, nas crianças e em todos aqueles que vivem a margem do estado sua matéria-prima.

Com efeito, o jornalista Cacco Barcellos observa que:

(...) o componente racista, que já havíamos observado na ação dos principais matadores, se confirma no balanço final do Banco de Dados. Do total de 4.179 vitimas identificadas, obtivemos informações sobre a cor da pele de 3.994; 1.932 eram brancas e 2.012 negras e pardas. A Maioria de 51 por cento por si só já demonstra o preconceito contra a raça negra e parda. (BARCELLOS, 1992, p. 259).

Como se isso já não bastasse, editorial do Boletim do IBCCrim constatou que:

... a Policia Militar do Estado de São Paulo, no primeiro dia de sua ‘Operação Tolerância Zero’, retirou 40 homens da rua. Todos mendigos, vadios ou suspeitos, portanto com a cara de delinqüentes. Trinta e seis deles eram negros; quatro brancos (segundo o IBGE 57% da população paulista é de brancos, para 43% de negros). Só dois deles tinham passagem pela policia. Passados os constrangimentos naturais do passeio de camburão, revistas pessoais, perdas de tempo, invasão de privacidade etc., essas pessoas são devolvidas para as ruas sem qualquer política pública ou social que tenha o objetivo de devolver-lhes a dignidade. (IBCCrim, 1997, n.53).

Sobre este aspecto, esclarece Pinheiro:

No início deste mês de outubro a consciência civilizada brasileira vinha abaixo, horrorizada, com a fotografia de sete cidadãos negros amarrados pelo pescoço por um PM depois de uma blitz no Rio contra uma favela. Um mês depois, um sigiloso IPM concluiu que essa violência estúpida e racista é crime militar e será julgado pela Justiça Militar (...) Além do mais era negro, detalhe que sempre confirma qualquer suspeição de delito nesta terra de apartheid dissimulado que é o nosso querido Brasil (...) No mesmo sentido vai à aterrorização das populações pobres menores e negras que se consagrou como política policial durante os governos biônicos nesses vinte anos. (PINHEIRO, 1984, p. 56, 79, 82)

Como se vê, este totalitarismo conferido por nossas elites ao Estado é uma ameaça à liberdade e aos direitos humanos, para tanto confira-se a lição de Celso Laffer:

(...) no momento em que o Estado começa a decidir soberanamente quem é e quem não é cidadão, excluindo de uma comunidade política não atores políticos individualizados, mas centenas de milhares de pessoas, verifica-se, numa perspectiva ex parte populi dos direitos humanos, quais foram às conseqüências da soberania absoluta ao gerar os parias políticos legais (...), (LAFER, 1999, p. 295)

Destarte a arbitrariedade adquire em nosso sistema jurídico elitista um colorido todo especial que o faz passar por direito. Sem o dispêndio de qualquer esforço mental conclui-se que a codificação do direito nos moldes como ocorre em nosso país atende as expectativas da classe dominante.

Primeiro por tratar-se de um procedimento de simplificação e racionalização formal; segundo por fornecer um instrumento eficaz de intervenção na sociedade para a exclusão daqueles que de alguma forma contrariem seus interesses em acumular riquezas e poder.

Razão assiste a Laffer quando, apoiado <_st13a_personname productid="em Jeremy Bentham" w:st="on">em Jeremy Bentham, critica o sistema da common law, propondo uma reforma da legislação e da codificação, “conjugando o principio de utilidade com a segurança na elaboração de sua teoria da legislação e da lei positiva.” (LAFFER, 1999, p.42).

Diante disso, conclui Laffer:

(...) razoável, no clima espiritual da modernidade, preocupar-se com o alcance e os limites epistemológicos dos procedimentos intelectuais que caracterizam a prática do Direito. É igualmente razoável procurar definir o Direito pela sua forma quando o processo de contínua mudança do Direito Positivo, por obra das necessidades de gestão da sociedade moderna, tornou impraticável definir o jurídico pelo seu conteúdo. É também razoável lidar com o descompasso entre a norma formal e a realidade social quando este descompasso se generaliza. Finalmente, é razoável discutir criticamente os valores de justiça contidos no Direito Positivo diante da crise generalizada do poder que legitima a legalidade. (LAFER, 1999, p.19).

Efetivamente o Estado, embora intitulado democrático, afastou-se da sua condição de imparcialidade ao tornar-se parte interessada na solução das lides. Notadamente quando os interesses em conflito são os pertencentes à grande parcela da população – estigmatizada pela elite como descartável – embora continue a monopolizar a função de mediador.

O comportamento perverso do Estado para com a população descartável faz com que a democratização do Direito e da Justiça Penal torne descabida qualquer proposta de organização da sociedade, tornando com isso distante atingir um nível razoável de justiça.

6. A pessoa humana como valor fonte do ordenamento jurídico

As reformas propostas pela elite para a legislação penal e processual penal, como por exemplo, a redução da maioridade penal ou a supressão de recursos previstos na legislação processual penal, a fim de se reduzir a impunidade e a criminalidade. Trata-se na verdade de um estratagema que terá como resultado a condenação do negro pobre, do Sem terra, do Sem teto, de homossexuais, enfim dos seres humanos excluídos sob a égide do devido processo legal.

Data maxima venia, a constante submissão do Poder Judiciário a um Poder Legislativo, cujo papel primordial é o de normatizar os interesses da classe dominante em detrimento da classe dominada.

Tal submissão tem como conseqüência a perda de sua identidade como poder, relegando-o a condição de órgão meramente operacional, além de transformar em letra morta, dentre outros, os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

A propósito disso, convém mencionar que os princípios constitucionais, segundo Rocha,

(...) são os conteúdos intelectivos dos valores superiores adotados em dada sociedade política, materializados e formalizados juridicamente para produzir uma regulação política no Estado. Aqueles valores superiores encarnam-se nos princípios que formam a própria essência do sistema constitucional, dotando-o, assim, para o cumprimento de suas funções, de normatividade jurídica. A sua opção ético-social antecede a sua caracterização normativo-jurídica. Quanto mais coerência guardar a principiologia constitucional com aquela opção, mais legitimo será o sistema jurídico e melhores condições de ter efetividade jurídica e social. (ROCHA, 1994, p. 23)

Conclusões

Torna-se imprescindível para que o Brasil adquira efetivo status de um Estado Democrático de Direito, romper-se com esse plano jurídico e concepção de justiça hodierna.

Para tanto, mister se faz num primeiro momento o restabelecimento de princípios éticos no processo legislativo; em segundo que o Judiciário, como seu aplicador, tenha como meta, quando da elaboração de suas decisões, a singela tarefa de observar os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

Ao estabelecer como premissa na solução de conflitos de interesses o valor da pessoa humana como valor maior da ordem jurídica, estará o Poder Judiciário, ao mesmo tempo, afastando-se dos interesses das elites, resgatando sua condição de Poder dentro do Estado e, principalmente, alcançando o tão almejado nível razoável de justiça.

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Referências Bibliográficas

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. p. 328.

BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência e a violência penal, Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, n.2, abr/mai/jun 1993.

BARCELLOS, Caco. Rota 66 – A história da policia que mata. 5. ed. São Paulo: ed. Globo, 1992, p. 259.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania <_st13a_personname productid="em São Paulo." w:st="on">em São Paulo. 2. ed. São Paulo: ed. 34, 2003, p.108.

HUNGRIA, Nelson. et. al. Comentários ao código penal. 6. ed. Rio de Janeiro, ed. Forense, 1980. v 1, p. 34-37.

IBCCRIM, Instituto Brasileiro de Ciências Jurídicas. Boletim n. 53. abr. 1997. Editorial.

JUNIOR, Hédio Silva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.27, Sociologia Jurídica – Direito Penal em Preto e Branco, p. 328, 333

KARAN, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. 2 ed. Rio de Janeiro: ed. Luam, 1993, p. 206, 207.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: ed. Schwarcz ltda., 1999, p. 19, 39.

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Escritos indignados. São Paulo: ed. Brasiliense, 1984. p. 56,79, 82.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da administração pública. Belo Horizonte, 1994, p. 23

VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao direito à reforma agrária. O Direito face aos novos conflitos sociais. São Paulo: ed. de Direito, 1998, p. 349.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: ed. Revan, 1991, p. 149.

WILCKEN, Patrick. Império à Deriva – A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro, 1808 – 1821. Rio de Janeiro: ed. Objetiva, tradução Vera Ribeiro, 2005, p. 121, 206, 216.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico–Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2. ed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997, p. 76.

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*Advogado em Bauru. Professor da Faculdade de Direito de Bauru - Instituição Toledo de Ensino (ITE) – Bauru/SP, Professor da Faculdade de Direito de Ourinhos – FIO – Ourinhos/SP, Professor do Curso de Especialização da Faculdade Arthur Thomas - Londrina/PR.





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