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Patentes de interesse de defesa nacional – perspectiva Brasil e França

Observa-se que, de maneira geral, os diferentes países pouco divulgam os critérios que os levam a decidir se um pedido de patente deve ou não tramitar em sigilo.

9/12/2022
O art.75 da Lei de Propriedade Industrial (lei 9.279/96) assegura ao Estado o direito de intervir no processamento de pedidos de patentes e/ou na exploração de patentes que envolvam invenções que possam afetar a Segurança Nacional, desde que tais pedidos tenham sido depositados prioritariamente no Brasil. Invenções na área da indústria bélica ou nuclear, entre outras, podem ser citadas como exemplos de casos que podem ser incluídos neste dispositivo.1

Tal definição dá margem a diferentes interpretações, em especial quando inserida no âmbito de contratos comerciais. Segundo o professor Alexandre Aragão, apenas refletem as normas cogentes do direito brasileiro, inafastáveis pela vontade das partes, sem criar novos direitos de caráter exclusivamente contratual em favor da União ou de qualquer de seus órgãos, como a Força Aérea Brasileira. Em outras palavras, a concessão de direitos de propriedade intelectual e o deferimento de tais patentes, ou seja, a renúncia ou outro arranjo contratual evitando a restrição ao uso da propriedade intelectual estatal, só poderia ser contemplada, na medida em que o Direito brasileiro, incluindo as normas de ordem pública em matéria de defesa nacional brasileira, permitisse.

Assim, bastaria se fundar no Direito brasileiro para determinar o escopo de tais restrições. No entanto, o art. 75 da lei 9.729/96 da Propriedade Intelectual dispõe apenas que “O pedido de patente originário do Brasil cujo objeto interesse à defesa nacional será processado em caráter sigiloso e não estará sujeito às publicações previstas nesta lei.” e ainda que que “O INPI encaminhará o pedido, de imediato, ao órgão competente do Poder Executivo para, no prazo de 60 (sessenta) dias, manifestar-se sobre o caráter sigiloso. Decorrido o prazo sem a manifestação do órgão competente, o pedido será processado normalmente”.

Nota-se que não se estipula qual seria o “órgão competente do Poder Executivo” responsável por julgar a procedência do pedido de sigilo feito pelo INPI, como ocorria no Código de Propriedade Industrial de 1971, no qual citava-se especificamente a Secretaria de Segurança Nacional e o Estado-Maior das Forças Armadas como órgãos responsáveis por tal análise. Reserva-se, portanto, ao Poder Executivo o direito de designar ou estabelecer tal órgão.

A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República2 foi, então, designada pelo decreto n°. 2.553, de 16 de abril de 1998, como competente para analisar os casos de interesse de defesa nacional. Na prática, a Secretaria enviava mensalmente ao INPI representantes que analisavam todos os pedidos de patente de origem nacional, e isolava aqueles que eram considerados de interesse de defesa nacional, com o intuito de analisá-los de maneira mais aprofundada.

Com a extinção da referida Secretaria por meio de medida provisória em 1999 e, ainda, diante da falta de outro órgão para substituí-la, houve durante um certo período grande acúmulo de pedidos de patente à espera de análise, o que resultou no atraso de sua tramitação no INPI. Para solucionar temporariamente este problema, foi eliminada a etapa de análise, até que fosse nomeado novo órgão em substituição à Secretaria extinta. O que ocorre é que, atualmente, não é feita qualquer análise de pedidos de patentes com relação às disposições deste art..3

Com isso, a simples inclusão de um art. na LPI não responde às necessidades de um sistema de Propriedade Intelectual atuante na aérea de defesa nacional, pois ficam perguntas sobre a forma de como é realizada a integração entre os órgãos governamentais responsáveis por essa matéria, quais os critérios levados em consideração para que um pedido de patente ou tecnologia seja inserido nesse contexto e quais órgãos seriam responsáveis por determinar o que é ou deixa de ser de interesse estratégico nacional.4

Logo, visto as lacunas procedimentais do art. 75 da LPI, parece oportuno tecer comparações entre o Brasil a França, país signatário da LoI (Letter of Intention assinada em 6 de julho de 1998, transformada no Framework Agreement concerning measures to Facilitate the Restructuring and Operation of the European Defense Industry, de 27 julho de 2000), e que representa, junto com os demais países signatários do acordo, 90% da produção de equipamentos de defesa da União Europeia5.

1. O escopo da noção de “Defesa Nacional”

Os órgãos de defesa sempre se interessaram por inovação, procurando constantemente fornecer aos seus exércitos os melhores meios de defesa e ataque possíveis, meios esses que devem ser superiores aos do adversário.

Nessa corrida, a liderança assumida em um campo técnico pode ser fundamental. Uma inovação não pode, portanto, ser tornada pública se ela permitir às forças armadas obter superioridade operacional, seja ela defensiva ou ofensiva. Logo, na maioria dos países do mundo, o legislador deu aos órgãos de defesa alguns meios, como:

(a) Possibilidade de conhecimento de inovações que são objeto de patente, ou seja, que provavelmente serão tornadas públicas por meio da publicação do respectivo pedido.

(b) Proibição de divulgação dos pedidos mais sensíveis, atribuindo-lhes um nível de confidencialidade estratégico.

Na França, o Ministério da Defesa tem por objetivo “garantir a segurança e a integridade do território e a vida da população em todos os momentos, em todas as circunstâncias e contra todas as formas de agressão. Todas as políticas públicas contribuem para a segurança nacional.” (C. Défense, art. L.1111-1)6. A Defesa se encontra, portanto, incorporada a uma concepção global que associa à defesa militar uma dimensão civil e econômica, assim como uma dimensão social e cultural.

O mesmo ocorre no Brasil, onde a Política Nacional de Defesa7 define os objetivos nacionais de defesa como sendo (i) de garantir a soberania, o patrimônio nacional e a integridade territorial; (ii) de defender os interesses nacionais e as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior; (iii) contribuir para a preservação da coesão e da unidade nacional; (iv) contribuir para a estabilidade regional; (v) contribuir para a manutenção de paz e segurança internacionais.

Desse modo, seja no Brasil ou no exterior, o escopo da noção de “defesa nacional”, sendo suficientemente abrangente, engloba as mais diversas tecnologias, envolvam eles material bélico ou não. A título de exemplo, algumas patentes da Petrobras que tratam de tecnologias de retortagem de xisto piro betuminoso foram processadas como sendo de Segurança Nacional.8

2. O caráter sigiloso ou não do pedido de patente

Uma vez depositado o pedido de patente, seu titular, que se beneficia de uma data de prioridade, pode desejar divulgá-lo rapidamente (conferência, publicação antecipada, exploração comercial etc.). Entretanto, o exame do pedido de patente pelas autoridades de defesa e a possível decisão de classificá-lo como sigiloso não ocorre, por motivos óbvios, logo após o depósito do pedido. Portanto, é necessário prever que o pedido permaneça em segredo por determinado período, importando pouco que o pedido seja nacional ou PCT9, já que o depositante do pedido procura patentear eventualmente uma invenção de interesse da Defesa Nacional, cuja divulgação pode ser inoportuna.

A duração deste período de “sigilo inicial” deve ser limitada para não penalizar demasiadamente o depositante, que permanece incerto quanto à possibilidade de publicar seu pedido e obtenção da patente. As autoridades de defesa têm, portanto, um período máximo para tomar sua decisão, que varia de país para país.

No Brasil, caso existisse um órgão responsável por essa análise, ele disporia, como previsto no art. 75 da LPI, do prazo de 60 (sessenta) dias para proferir a sua decisão. Não obstante, o art. 30 da mesma lei prevê que:

“O pedido de patente será mantido em sigilo durante 18 (dezoito) meses contados da data de deposito ou da prioridade mais antiga, quando houver, após o que será publicado, a exceção do caso previsto no art. 75”.

É possível pedir a antecipação da publicação do pedido, caso este não seja de interesse de defesa nacional.

Quanto ao sistema francês, o art. L. 612-8 do Código de Propriedade Intelectual dispõe que “O Ministro da defesa está autorizado a tomar conhecimento dos pedidos de patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial em caráter confidencial.” e o art. L.612-9 ordena que:

“As invenções que são objeto de pedidos de patente não podem ser divulgadas e trabalhadas livremente até que uma autorização tenha sido concedida para esse fim.

Durante esse período, os pedidos de patente não poderão ser tornados públicos, nenhuma cópia autentificada do pedido de patente poderá ser emitida sem autorização e os procedimentos previstos nos arts. L.612-1410, L.612-1511 e 1° do art. L.612-2112não poderão ser iniciados.

Salvo a exceção do art. L.612-1013, a autorização prevista no primeiro parágrafo deste artigo poderá ser concedida a qualquer momento. Ela poderá ser adquirida automaticamente ao final de um período de 5 (cinco) meses a partir da data de deposito do pedido da patente.

As autorizações previstas no primeiro e segundo parágrafos deste artigo serão concedidas pelo Diretor do Instituto Nacional da Propriedade Industrial sob parecer do Ministro da Defesa”.

Deste modo, tanto na França como no Brasil, sendo o pedido de interesse nacional ou não, é previsto um período de “sigilo inicial”, durante o qual todos os pedidos de patente devem ser mantidos confidenciais. Este período é de no máximo 5 meses na França e de 18 meses no Brasil. Encerrado o período de sigilo sem que tenha havido manifestação contrária dos órgãos de defesa, a publicação do pedido ocorrerá automaticamente.

3. O processo e os critérios de determinação do caráter sigiloso

No Brasil, o decreto no. 2.553, de 16 de abril de 1998, detalha o processo e os critérios para determinação do caráter sigiloso ou não de um pedido de patente. Em seu primeiro artigo está disposto que:

“A [extinta] Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República é o órgão competente do Poder Executivo para manifestar-se, por iniciativa própria ou a pedido do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, sobre o caráter sigiloso dos processos de pedido de patente originários do Brasil, cujo objeto seja de interesse da defesa nacional.

§1° O caráter sigiloso do pedido de patente, cujo objeto seja de natureza militar, será decidido com base em parecer conclusivo emitido pelo Estado-maior das Forças Armadas, podendo o exame técnico ser delegado aos Ministérios Militares.

§2° O caráter sigiloso do pedido de patente de interesse da defesa nacional, cujo objeto seja de natureza civil, será decidido, quando for o caso, com base em parecer conclusivo dos Ministérios a que a matéria esteja afeta.”.

Este processo ocorre de maneira similar na França, onde o art. R.612-26 dispõe que:

“Representantes do Ministro da Defesa, especialmente habilitados para esse fim e cujos nomes e capacidades foram levados ao conhecimento do Diretor do Instituto Nacional da Propriedade Industrial e do Ministro responsável pela propriedade industrial, inspecionarão nas dependências do Instituto Nacional da Propriedade Industrial os pedidos de patente depositados, inclusive quando são depositados sob a forma de pedido provisório, e, se for o caso, quaisquer documentos suplementares apresentados, enquanto não for obtida a autorização prevista no art. L.612-9”.

Observa-se que, de maneira geral, os diferentes países pouco divulgam os critérios que os levam a decidir se um pedido de patente deve ou não tramitar em sigilo. Isso se dá, principalmente, por conta da natureza evolutiva desses critérios, já que um campo da tecnologia pode ser potencialmente sensível, por exemplo, por causa de suas novas aplicações, mas também, porque uma lista de assuntos sensíveis à defesa é em si uma informação confidencial.

Quanto ao processo de determinação do caráter sigiloso, na França, os representantes do Ministério da Defesa tomam conhecimento de todos os pedidos que são depositados no escritório de patentes francês, e a decisão de classificá-los como sigilosos cabe inteiramente às autoridades de defesa. Todos os pedidos estão, assim, sujeitos à análise pelas Forças Armadas, bem com a parecer e à autorização do Ministério da Defesa para que possam se tornar públicos. Já no sistema brasileiro, não fica claro se as autoridades de defesa tomam conhecimento ou não de todos os pedidos de patente depositados no INPI, já que essa análise, quando realizada, aparenta ser pontual (“a pedido do INPI ou iniciativa da [extinta] Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República”).

4. Consequências decorrentes do caráter sigiloso do pedido de patente

Naturalmente, um pedido de patente cuja decisão do órgão competente visa determinar sigilo total ou parcial sofre restrições, como a interdição de sua divulgação e de livre exploração pelo titular, a não publicação do pedido pelo escritório de patentes e a proibição do seu envio a um órgão internacional como a OMPI, uma vez que o PCT (Art. 27(8)) reconhece plenamente essas prerrogativas dos Estados Membros.

Entretanto, na França, os termos “não podem ser divulgadas e trabalhadas livremente” contidos no art. L.612-9 do Código de Propriedade Intelectual mostram claramente que a exploração, se não livre, continua a ser possível com a autorização do Ministério da Defesa.

No Brasil, o art. 75 §3º. da Lei de Propriedade Industrial prevê que “A exploração e a cessão do pedido ou da patente de interesse da defesa nacional estão condicionadas à prévia autorização do órgão competente, assegurada indenização sempre que houver restrição dos direitos do depositante ou do titular”. Constata-se assim que, além da possível exploração e cessão do pedido ou da patente mediante autorização, o depositante ou o titular do pedido de patente que sofreu restrições poderá também obter indenização. O que não acontece na França, onde essa prerrogativa para o depositante ou o titular não está prevista.

Por fim, quanto às sanções em caso de desrespeito às disposições aqui citadas, o comentário do professor Denis Borges Barbosa parece adequado quando descreve a situação no Brasil dizendo que “não ter previsto sanção para aqueles que desrespeitem o dispositivo torna a sua eficácia dependente da legislação penal”. Contudo, o Direito Penal brasileiro ainda não se apropriou da matéria.

O mesmo não se pode dizer do Direito penal francês, onde o art. 411-6 do Código penal prevê pena de 15 anos de reclusão e multa de até 225 mil euros se a divulgação do pedido violar os interesses fundamentais da nação.

Não obstante, o sistema francês prevê também multa de até 6 mil euros (art. L.612-13 do CPI) em caso de desrespeito do “segredo inicial”, previsto no art. L.612-9, independentemente de qualquer prejuízo à Defesa Nacional. E, em caso de prejuízo à Defesa Nacional, poderá ser aplicada pena de detenção de um a cinco anos.

Todas essas sanções testemunham, assim, uma maior evolução e proteção da matéria no direito francês. 

5. Conclusão

Dessa forma, os pedidos e as licenças de patentes objeto de contratos privados, que possam ser classificados como sendo de interesse de Defesa Nacional, quer no Brasil ou na França, estão obrigatoriamente sujeitos à confidencialidade, por força normativa de ordem pública e interesse social. Assim, é do entendimento dos governos do Brasil e da França que aos seus respectivos órgãos de defesa incumbe o dever de restringir a divulgação de informações estratégicas, ainda que estas tenham sido desenvolvidas em cooperação com a iniciativa privada.

______________

1 IDS-Instituto Dannemann Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual, Comentários À lei da propriedade industrial – edição revista e atualizada. – Rio de Janeiro, Renovar, 2005.

2 Não deve ser confundida com a atual Secretaria Especial (SAE) criada por lei em 2008

3 IDS-Instituto Dannemann Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual, Comentários À lei da propriedade industrial – edição revista e atualizada. – Rio de Janeiro, Renovar, 2005.

4 Ana Carolina Pereira, “Tecnologia nas Forças Armadas: possibilidade estratégica”, Revista Brasileira de Estudos Estratégicos, REST. Rio de Janeiro: v. 12, n. 23, jan./jun. 2020, pp. 155-156

5 Livre vert sur les marchés publics de la défense, COM(2004)608: http://eur-lex.europa.eu

6 https://www.legifrance.gouv.fr/codes/article_lc/LEGIARTI000020932648/

7 https://www.gov.br/defesa/pt-br/arquivos/estado_e_defesa/END-PNDa_Optimized.pdf

8 ABRANTES, 2011, p. 37

9 Tratado de Cooperação em matéria de Patentes (PCT): um tratado multilateral, administrado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) que permite requerer a proteção patentária de uma invenção, simultaneamente, em diversos países, por intermédio de um único depósito chamado “Depósito Internacional de Patente”

10 Redação de um parecer sobre o estado da técnica de uma invenção.

11 Tranformação do pedido de patente em pedido de certidão de utilidade.

12 Publicação do dossier do pedido de patente ou do certificado de utilidade.

13 Prorrogração, no limite de 1 ano, das interdições previstas no artigo L.612-9. 

Antonella Carminatti
Sócia do BMA Advogados e head da prática de Propriedade Intelectual

Gabriel Viana Souza
Magistère Juriste d’Affaires Européen de Nancy, France

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