Como é fato, além das medidas executivas típicas e de cunho pecuniário, um dos aspectos que mais vem provocando reflexão doutrinária e jurisprudencial, diz respeito à interpretação das medidas executivas atípicas, visando estimular o cumprimento das ordens ligadas às obrigações de fazer, não fazer, coisa e dinheiro (art. 139, IV, do CPC).
Este dispositivo consagra o poder do magistrado na adoção das medidas necessárias visando assegurar o cumprimento da decisão judicial, inclusive nas demandas de natureza pecuniária. Em uma frase: o Código aproxima as medidas de apoio para todas as obrigações judiciais, com claro estímulo para a adoção da conduta por parte do demando.
Com efeito, se antes a multa era a medida clássica para estimular o cumprimento da ordem de conduta – tutela específica de fazer, não fazer e entrega de coisa, o legislador de 2015 ampliou o rol de possibilidades, inclusive no que respeita às obrigações de pagamento de quantia.
O Enunciado 12 do Fórum Permanentes de Processualistas Civis (FPPC) elenca alguns requisitos importantes para a aplicação deste dispositivo:
“(arts. 139, IV, 523, 536 e 771) A aplicação das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão aplicadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II”.
Vários questionamentos estão sendo feitos em relação a constitucionalidade de algumas das medidas executivas atípicas que estão sendo adotadas na prática forense (v.g., apreensão e suspensão de utilização de passaporte, carteira de motorista, cartão de crédito, créditos em programa de vantagens como o Nota Fiscal Paulista, etc.) bem como em relação ao próprio conteúdo do art. 139, IV, do CPC (ADI 5941/STF).
Neste sentido, demonstrada, no caso concreto, a recalcitrância sem qualquer fundamento por parte do demandado (em regra estando exauridas as medidas típicas), o art. 139, IV, do CPC deve ser utilizado como instrumento de estímulo visando o cumprimento das ordens judiciais e, em última análise, de efetividade da prestação jurisdicional nela contida.
No julgamento de Habeas Corpus, impetrado contra decisão que determinou a apreensão do passaporte e carteira de motorista daquele que descumpria ordem judicial, a 30ª Câmara Direito Privado do TJSP (HC 2183713-85.2016.8.26.0000 – Rel. Des. Marcos Ramos, j. 29/03/17) debateu o binômio razoabilidade X proporcionalidade, concluindo que:
“‘Habeas corpus’ Ação de execução por quantia certa – Decisão que determinou a apreensão do passaporte e a suspensão da CNH do executado, até que efetue o pagamento do débito exequendo, fundamento no art. 139, IV, do NCPC – Remédio constitucional conhecido e liminar concedida – Medidas impostas que restringem a liberdade pessoal e o direito de locomoção do paciente Inteligência do art. 5o, XV, da CF – Limites da responsabilidade patrimonial do devedor que se mantêm circunscritos ao comando do art. 789, do NCPC – Impossibilidade de se impor medidas que extrapolem os limites da razoabilidade e da proporcionalidade. Ação procedente para conceder a ordem” .
O STJ, no RHC 99606/SP (3ª T – Rel. Min. Nancy Andrighi – J. em 13.11.2018 – DJe 20.11.2018) também enfrentou a questão, inclusive citando precedentes da própria Corte, aduzindo que:
“A suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura dano ou risco potencial direto e imediato à liberdade de locomoção do paciente, devendo a questão ser, pois, enfrentada pelas vias recursais próprias” .
Em 2021, nos REsp 196373/MT (Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª Turma – J. em 26/10/2021 – Dje 10/12/2021) e REsp 1929230/MT (Rel. Min. Herman Benjamin – 2ª Turma – J. em 04/05/2021 – Dje 01/07/2021) , a 2ª Turma do STJ concluiu pela possibilidade de adoção das medidas executivas atípicas nas ações de improbidade, desde que atendidos os parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade.
A propósito, o postulado da proporcionalidade na adoção da medida atípica também foi ponderado em precedente da 3ª Turma do STJ, senão vejamos:
"A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada/ às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade." (REsp 1.788.950/MT, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 26.4.2019).
No REsp 1.782.412/RJ, a 3ª Turma do STJ novamente indicou a necessidade de preenchimento de pressupostos para a adoção das medidas atípicas, como se observa na seguinte passagem:
“De se consignar, por derradeiro, que o STJ tem reconhecido que tanto a medida de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação quanto a de apreensão do passaporte do devedor recalcitrante não estão, em abstrato e de modo geral, obstadas de serem adotadas pelo juiz condutor do processo executivo, devendo, contudo, observar-se o preenchimento dos pressupostos ora assentados”. (REsp 1.782.418/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª T – J. em 23/4/2019 - DJe26/4/2019).
Observa-se, portanto, que a Corte da Cidadania vem enfrentando algumas variáveis ligadas ao tema. Além da análise acerca da proporcionalidade, é razoável afirmar que a viabilidade/efetividade da medida está relacionada ao enfrentamento de outro binômio: efetividade do processo X direitos constitucionais do executado.
Neste contexto, passa-se a analisar o tema central deste ensaio, com duas indagações: por quanto tempo deve perdurar a medida executiva atípica? Mesmo em caso de baixo alcance de eficácia em relação ao adimplemento do objeto principal, deve o demandado ser liberado da suspensão de seu passaporte ou Carteira de Motorista depois de certo tempo?
Imagine uma hipótese em que a medida executiva atípica (ex. Suspensão de Carteira Nacional de Habilitação ou do Passaporte) não alcance o efeito pretendido ligado ao cumprimento da ordem judicial de pagamento de quantia, há limite temporal para a liberação do devedor de tal “incômodo/ desconforto processual”?
Sem dúvida que o tema é tormentoso, atual e absolutamente necessário, além de provocar debates acerca dos direitos constitucionais do exequente e do próprio executado. Nos casos concretos, deve ser fixado limite temporal para a medida executiva atípica ou deve permanecer até o efetivo cumprimento da obrigação, respeitados os postulados da proporcionalidade e razoabilidade?
Esta importante questão foi debatida em junho/2022, pela 3ª Turma do STJ no Habeas Corpos 711.194 – julgado por maioria – prevalecendo o voto divergente proferido pela Exma. Nancy Andrighi.
No caso concreto, a determinação de bloqueio dos passaportes dos devedores ocorreu muitos anos após o início da execução e os mesmos tentaram suspender a decisão oferecendo valor irrisório. Importante transcrever passagem da Ementa do Acórdão:
“7- Na hipótese em exame, os elementos obtidos neste habeas corpus e nos demais processos e recursos que envolveram a paciente e os demais co-executados que foram submetidos ao exame desta Corte demonstram que: (i) trata-se de dívida de honorários advocatícios sucumbenciais inadimplida desde 2006, ou seja, há mais de dezessete anos; (ii) o esgotamento das medidas executivas típicas está suficientemente evidenciado; (iii) há indícios suficientes de ocultação patrimonial da paciente e dos demais co-executados, sua filha e seu genro; (iv) é absolutamente razoável inferir que as cotas sociais das pessoas jurídicas de que a paciente é sócia não possuem expressão econômica, não estão livres e não são suscetíveis de penhora, inclusive diante da existência de inúmeras outras execuções fiscais e trabalhistas; (v) os rendimentos de aposentadoria e pensão oferecidos à penhora são insignificantes diante do valor da dívida, que, nesse contexto, somente seria quitada daqui a mais de cinquenta anos; (vi) o oferecimento de bem à penhora após dezesseis anos de execução infrutífera, ainda que claramente insignificante diante de seu contexto patrimonial e nitidamente insuficiente para adimplir a dívida, é evidência de que a retenção do passaporte do devedor está lhe causando o necessário incômodo pretendido por ocasião do deferimento da medida coercitiva atípica” (STJ 3ª Turma – HC 711194 – Rel. Marco Aurélio Bellizzi – Red. P acórdão Min. Nancy Andrigui – J. 21.06.2022 – DJe 27.06.2022).
Em seu voto, afirmou a Min. Nancy Andrighi:
“30) A propósito, registre-se que o oferecimento dessa insignificante quantia mensal após mais de dezesseis anos de execução, sem que nenhuma outra forma fosse viabilizada ao longo de todo esse período, não é apenas inócua, mas, ao revés, é até mesmo desrespeitosa e ofensiva ao credor e à dignidade do Poder Judiciário, na medida em que são oferecidas migalhas em troca de um passaporte para o mundo e, quiçá, para a inadimplência definitiva”.
E concluiu:
“36) A limitação temporal das medidas coercitivas atípicas, a propósito, é questão inédita nesta Corte, pois os precedentes até aqui examinados se circunscreveram aos pressupostos para deferimento de medidas dessa natureza, mas não às hipóteses de manutenção e de verificação de efetividade após o transcurso de determinado período.
37) E, nesse particular, é correto afirmar que não há uma formula mágica e nem deve haver um tempo pré-estabelecido fixamente para a duração de uma medida coercitiva, que deve perdurar, pois, pelo tempo suficiente para dobrar a renitência do devedor, de modo a efetivamente convencê-lo de que é mais vantajoso adimplir a obrigação do que, por exemplo, não poder realizar viagens internacionais.
Como se pode observar, especialmente considerando o teor do que foi debatido pela 3ª Turma do STJ no mês de junho/2022, a discussão envolvendo a eventual fixação de temporariedade para a adoção das medidas atípicas envolve: i) a conduta do devedor em cumprir a decisão; ii) a realidade do exequente quanto à satisfação do objeto litigioso; iii) fatores ligados à boa-fé e à cooperação judicial.
Tudo depende do caso concreto. Este último julgado por certo não exaure a discussão acerca da importância do tempo para a manutenção das medidas atípicas como suspensão de passaporte ou carteira de habilitação mas, de qualquer maneira, abre as portas para este importante debate.
Penso que, apenas no caso concreto poder-se-á concluir acerca da eventual limitação temporal, desde que atendidas as premissas anteriormente debatidas e, principalmente, analisando qual a conduta do réu em relação à obrigação que não está sendo cumprida. O que o não pode ocorrer é a manutenção da infundada recalcitrância aliada a apresentação de requerimentos de levantamento da medida judicial sob aspectos pessoais de desconforto, prejuízo etc.
Portanto, se o levantamento da medida atípica ocorrer apenas levando em conta o fator tempo, sem qualquer ponderação acerca da situação jurídica de ambas as partes e do próprio Poder Judiciário, poderá significar descrédito ao próprio Sistema de Justiça e, em última análise, esvaziamento da força coercitiva prevista no art. 139, IV, do CPC.