Dentre as inúmeras novidades trazidas pela lei 14.133/21, a muito alardeada Nova Lei de Licitações-NLL, destaca-se a introdução de ferramentas gerenciais típicas da iniciativa privada para o âmbito das aquisições públicas. São reforçados ao longo do texto legal, termos e conceitos de certa forma antigos na iniciativa privada tais como gestão por competência, associação das contratações com o planejamento estratégico da entidade, segregação de funções, governança, planejamento e gestão de riscos.
Talvez possamos entender como o verdadeiro avanço trazido pela NLL o fim do “pode ou não pode” em termo jurídicos e o início de um novo paradigma composto por técnicas gerenciais. A profissionalização da Administração Pública, pelo menos no tocante às contratações de bens e serviços, o foco no resultado gerado por todo o movimento da máquina pública e produtos e serviços melhores para os usuários dos serviços públicos, ou seja, o cidadão, engrossam essa lista.
A NLL, portanto, destaca-se não apenas pela literalidade do seu texto, mas sim pelo que ela permite e, muitas das vezes, incentiva que seja feito. Em qualquer relação comercial onde existem dois polos, quais sejam, um comprador que deseja o máximo de vantagens com o melhor preço possível; e um vendedor que deseja fornecer seus produtos e serviços com margens de lucro as mais elásticas quanto possível. Pois bem, como se dá o equilíbrio dessa equação? Uma medida que parece simples, presente em qualquer acordo da vida privada, é a negociação, onde as partes apresentam o que desejam e oferecem, de modo a atingir um denominador comum que seja interessante para ambos. Ocorre que nas contratações públicas sempre existiu uma imensa dificuldade, quase um impedimento cultural de “negociar” termos e condições vantajosas para ambos os lados.
Não quero aqui, até pela experiência que possuo com a Administração Pública, supor que os contratados e contratantes são anjos. Mesmo sob pena de parecer clichê, cito James Madison em sua clássica obra Os Federalistas: “Se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários controles externos nem internos sobre o governo.”.
Por óbvio a proximidade na relação contratado/contratante pode tender a riscos e suscetibilidades, digamos, não republicanas. Contudo, por outro lado, a boa-fé presumida é um princípio geral do direito, universalmente aceito e do qual devemos nos valer para que possamos evoluir e profissionalizar a Administração Pública. Dentro desse contexto de proximidade do contratante/contratado, uma busca básica na NLL revela oito ocorrências do vocábulo “negociação”. Pode parecer pouco em um normativo com mais de 190 arts., porém, apresenta-se como um avanço, haja vista que a lei de licitações anterior, a lei 8.666/93, apresenta apenas duas ocorrências. Na lei 10.520/02, a Lei do Pregão, criada especialmente para dar maior dinamismo aos certames licitatórios, apenas fala em negociação em uma ocorrência, quando em seu art. 4º, inciso XVII, autoriza em situações específicas o pregoeiro negociar diretamente com o proponente com fins de obter melhores preços. Como normalmente não existem palavras vãs na legislação, sempre se busca algum resultado, podemos observar então o desejo do legislador de trazer o aspecto negociação para o universo das contratações públicas.
Conforme supracitado, a principal novidade da NLL é o que ela positiva fazer, sendo que parte disso até já poderia ter sido feito, mas por uma questão cultural não era aplicado até então. Exemplo disso são as audiências públicas, positivadas pelo art. 21 na NLL, a audiência pública é uma ferramenta na qual a administração pública poderá convocar os interessados para, presencialmente ou a distância, se manifestarem acerca de licitação que se pretenda realizar.
O Estado do Mato Grosso do Sul, desde o ano de 2020, possui o decreto 15.524/20 que prevê a possibilidade de audiências públicas com potenciais contratados para coleta de contribuições, prospecção e análise de alternativas passíveis de solucionar entraves.
Um dos principais problemas enfrentados pelo Estado de Mato Grosso do Sul que ocorre também nos municípios é o desabastecimento de medicamentos das redes de distribuição, incluindo o Hospital Regional, unidade de referência para todo o Estado. O impasse surgiu quando o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul-TCE/MS, no exercício das suas competências constitucionais, passou a cobrar de forma mais incisiva o respeito aos parâmetros de preço e a realização de uma pesquisa de preços mais efetiva e capaz de gerar compras mais vantajosas ao erário. Essa medida do TCE/MS, de certa forma, causou desequilíbrio no mercado. Antes, na pesquisa de preços exigia-se apenas três cotações realizadas com potenciais fornecedores, fato que não tinha a menor chance de gerar uma compra vantajosa, tendo em vista que os preços estimados pelos próprios fornecedores tendiam a serem maiores que os de mercado. No lugar desse método já superado pela jurisprudência dos Tribunais de Contas Brasil afora, foi proposta uma metodologia, composta de 11 passos com o objetivo de aperfeiçoar o processo de pesquisa de preços e não deixar os gestores reféns do mercado e das indústrias farmacêuticas.
Chegamos ao seguinte imbróglio: de um lado fornecedores acostumados a um mercado desregulado, onde os preços atendiam apenas aos interesses privados; de outro, gestores e o TCE/MS buscando evoluir as pesquisas de preços, fazer compras a preços de mercado ou o mais próximo desse valor possível, descontando apenas as nuances inerentes às compras públicas e questões tributárias ou frete. Resultado disso foram licitações desertas e fracassadas, crises de desabastecimento e relatos como: “existe dinheiro no caixa do Estado, o Hospital está desabastecido de medicamentos e as equipes não conseguem efetivar as aquisições”.
O problema é grande e complexo, e a solução não será diferente em nenhum aspecto. Na busca dessa solução, em 15/08/2022 foi realizada a Audiência Pública – Aquisição de Medicamentos, sendo um dos encaminhamentos propostos em uma das inúmeras reuniões realizadas com os órgãos envolvidos para solucionar o problema. Na audiência foram reunidos representantes da indústria farmacêutica que atuam no Mato Grosso do Sul e mais representantes da Procuradoria Geral do Estado, da Defensoria Pública do Estado, do TCE-MS, do Hospital Regional e parte da equipe de compras e licitação e a titular da Secretaria de Estado de Administração e Desburocratização.
Na ocasião as discussões pairavam sobre a seguinte temática: quais as principais causas do desinteresse dos licitantes da área da saúde de participarem dos certames realizados pelo Estado para aquisição de medicamentos, com apresentação de detalhes como:
(i) se há um quantitativo mínimo a ser formalizado em cada pedido de aquisição de medicamentos;
(ii) quais as variáveis que podem influenciar no preço dos medicamentos;
(iii) existem ou não pedidos protocolados junto à ANVISA solicitando a alteração do valor da tabela CMED;
(iv) se o formato do certame licitatório (sistema de registro de preços) acaba por afastar interesse e, em sendo possível, por qual motivação.
As principais conclusões que foram possíveis de extrair das falas dos representantes da indústria farmacêutica presentes foram:
1. Existe uma quantidade mínima que torna os certames atrativos ou não, é preciso se ater a esse número para atrair mais licitantes;
2. Existem muitos problemas quanto a especificação dos pedidos, tais como, formas farmacêuticas, embalagens, quantitativos. Um dos presentes exemplificou que existem medicamentos que são vendidos em caixas com 200 comprimidos, se o número de comprimidos não for exatamente divisível por 200 não será possível atender;
3. A reserva legal deixada para ME e EPP muitas das vezes se torna um entrave para as contratações, pois essas empresas muitas das vezes não possuem condições operacionais e comerciais de atender e as de maior porte ficam impossibilitadas de ofertar;
4. Um dos presentes exigiu uma atitude mais incisiva com os licitantes que vencem os processos licitatórios e não entregam os produtos. Foi sugerida sanção para essas empresas para evitar vencedores com preços inexequíveis;
5. Estimativa de preços está aquém muitas das vezes dos custos, em especial para os pequenos fornecedores;
6. Os fornecedores que atuam em outros estados afirmaram que a maioria trabalha com atas de registro de preços e isso não é um problema, inclusive, incluíram como vantagem a certeza de fornecer ao longo de um período maior com a Administração Pública.
A conclusão foi que a iniciativa do Estado do Mato Grosso do Sul foi muito positiva, alguns problemas são de fato mercadológicos, onde o poder público como principal player do mercado deve seguir firme com a proposta de regular o mercado. Outros são falhas nos processos internos dos setores de licitação, havendo, por exemplo, confusão entre preço máximo, preço estimado e preço de referência. Não tem como ignorarmos também o excesso de apetite dos fornecedores quando do outro lado da negociação está uma entidade pública. Há ainda uma classe de problemas que necessitará de um estudo mais aprofundado por parte de todos os órgãos envolvidos. Todavia, o destacável mesmo foi que todas essas nuances apenas foram descobertas estando frente a frente, gestores, fornecedores e órgãos de controle.
Como dito, um problema complexo, um mercado de mais de 1 bilhão de reais anuais apenas em Mato Grosso do Sul, não poderia de forma alguma ter solução fácil ou uma receita pronta que resolva todas as situações. Faz-se necessário, muitas discussões, negociação e aplicação dos aspectos gerencias típicos da iniciativa privada para desatar e destravar alguns processos, manter as redes de distribuição abastecidas e a população usuária assistida dos produtos e serviços dos quais a Administração Pública tem a obrigação de oferecer.
Resgatando a conexão com a NLL, de fato são poucas novidades concretas, muitas alterações no rito, apenas. Alguns problemas relacionados com as contratações públicas não serão solucionados a partir do dia 1º de abril de 2023, quando será obrigatória sua aplicação. Por outro lado, a vontade do legislador de positivar ferramentas típicas da gestão privada já começa a surtir efeitos e iniciativas como a do Estado do Mato Grosso do Sul ao realizar uma audiência pública para buscar algumas soluções para seus entraves, que já era possível e, inclusive, já estavam positivadas, agora parecem estar sendo incentivadas pelo clamor em torno da NLL, que já deixa seu recado. Profissionalização da Administração Pública já!