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A garantia constitucional da livre iniciativa econômica, erro de proibição e direito penal econômico

O artigo traz breve reflexão sobre a interpretação – no âmbito do Direito Penal Econômico - do erro de proibição (art.21/CP) no âmbito de nossa ordem econômica constitucional.

8/12/2022

Os temas relacionados às garantias constitucionais estão na berlinda. Parece que, de repente, toda a sociedade se deu conta de que existe uma Constituição Federal e que ela garante várias liberdades aos indivíduos que vivem em nossa república.

Neste artigo, vou me ater a uma dessas garantias: a garantia da livre iniciativa, da liberdade econômica, que podemos definir como a ausência de interferência e coerção nas decisões econômicas dos indivíduos.

Note-se que o Direito é instrumento de engenharia social que, através da legalidade, permite à sociedade criar redes de estruturação social.

Dentre os juristas, as posições científicas sobre a liberdade econômica são variadas, tendo um forte viés ideológico. Isto porque os direitos relacionados às propriedades privadas são os pilares de uma economia capitalista como a nossa: os proprietários terão os direitos legais de fazer uso e seus bens em seu benefício, podendo trocar seus recursos conforme desejarem.

Partimos dessas premissas: a garantia do direito de propriedade, os contratos cumpridos, os preços estáveis e a livre alocação de recursos no mercado são as principais características de um país economicamente livre.

No Brasil, o marco histórico da positivação do princípio da livre iniciativa deu-se com D. João VI que, pelo Alvará de 1º de abril de 1808, concedeu às colônias portuguesas a liberdade de indústria.

Nos dias atuais, o artigo 1º, inc. III, de nossa Constituição Federal, é um dos fundamentos de nosso estado Democrático de Direito. A democracia brasileira está fundamentada na livre iniciativa dos indivíduos para tomar decisões econômicas.

No entanto, para que seja concretizada tal liberdade, é necessário que haja igualdade de condições para atuar, não bastando apenas o livre acesso aos mercados, mas também a garantia de liberdade para permanecer no mercado. Ou seja: garantia de livre concorrência, permitindo a disputa por um lugar no mercado, sem obstáculos impostos pelo Estado, nem por outros agentes econômicos.

Neste sentido, nosso legislador constituinte foi sábio ao positivar tal garantia de livre concorrência no artigo 170 de nossa Magna Carta, como um dos princípios de nossa atividade econômica.

Faz-se mister destacar a relevância de tais princípios de nosso sistema jurídico: “Por não descreverem fatos, mas veicularem ideais ou valores, os princípios são normas dotadas de densa carga de finalidade. Toda norma, em geral, pretende alcançar um fim. Aliás, o Direito não se larga ao acaso nem surge do nada. Há, no mínimo, por trás de toda norma – e nisso se incluem os princípios – alguma causa e finalidade. Sem estes elementos a norma é vazia e desnecessária”.1

Dentro desse ambiente econômico, inserido nesse sistema normativo, podemos concluir que também a livre iniciativa empresarial é uma modalidade da livre iniciativa econômica que se verifica fundamental no modelo de economia capitalista que adotamos em nosso país.

Neste ponto, imperioso trazer o marco da liberdade econômica no Brasil que, através da lei 13.874/19, instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado aos agentes econômicos, que em seu artigo 1º, parágrafo 2º, assim dispõe: “Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”. (grifo nosso)           

Portanto, em nossa república temos um cenário jurídico no qual as normas que regem a atividade econômica devem ser interpretadas e aplicadas sempre em favor da liberdade dos agentes econômicos e suas iniciativas empreendedoras.

Notemos que no artigo 4º, inciso VII, dessa lei, o legislador determina que o Estado evite o abuso de seu poder regulatório que possa decorrer na introdução de “limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas”.

Pois bem, consideramos o Direito, traduzido na legalidade, fornece o mecanismo que permite à sociedade criar redes de estruturação social, onde se localiza a atividade empreendedora.

Nesse contexto estrutural, a livre iniciativa de empreender decorre no direito de não ser arbitrariamente tolhido do mercado, em especial pela criação de um ambiente normativo pelo Estado que se transforma em empecilho à sua concretização.

Trata-se então, nobres colegas advogados, de prover segurança jurídica a todos que desejam empreender, pois a empresa já se estabeleceu na História como o “instrumento melhor equipado e mais bem adaptado a fim de realizar os postulados capitalistas da acumulação do capital. Nesse sentido, a livre iniciativa empresarial tornou-se rapidamente um elemento de transformação social, impondo-se como força motriz do mercado”.2

Ora, verifica-se inconteste que, para garantir a força do livre mercado, da livre iniciativa impulsionando nossa economia, o Brasil precisa oferecer segurança jurídica a todos os indivíduos e às empresas.

Me refiro à segurança jurídica como a presença de previsibilidade, de estabilidade, de racionalidade, de certeza, de concretização das garantias e direitos fundamentais: “A segurança jurídica revela-se ínsita à própria ideia de Estado Democrático de Direito. Com a sua observância, espera-se que a atuação estatal “seja guiada por regras claras, transparentes e preestabelecidas, a fim de garantir aos cidadãos um mínimo de previsibilidade em relação às condutas que eles poderão adotar no curso de suas vidas3

Partindo das premissas expostas, buscando concretizações dos princípios e fundamentos mencionados, chegamos à realidade do mercado na qual o empreendedor busca uma oportunidade, assim como o leão busca sua presa nas savanas africanas.

Nos referimos ao conceito de oportunidade como um conjunto de idéias, crenc¸as e atitudes que viabilizam o desenvolvimento de produtos e servic¸os futuros, que ainda na~o esta~o disponi'veis no mercado atual.4

Portanto, para a concretização do princípio da livre iniciativa de empreender e para o fortalecimento do mercado na economia brasileira, é imprescindível que os indivíduos sintam-se seguros – no que se refere à legalidade – para aproveitar todas as oportunidades econômicas que enxergarem.

Refletindo sobre o tema das oportunidades que o mercado oferece em um ambiente capitalista, com livre iniciativa econômica, é preciso destacar o recente fenômeno deste século XXI que é o surgimento das startups. Tal forma high-tech de se empreender é caracterizada “pela abertura de uma pequena empresa, normalmente do setor de tecnologia, que transforma uma idéia em um produto ou servic¸o com alto potencial comercial, e esse empreendimento atrai investidores financeiros ou investidores intelectuais que ajudam na gesta~o do crescimento da empresa”.5

Nesse mundo de empreendedorismo high-tech, digital, há que se destacar o protagonismo da inovação no mundo dos negócios, “na~o apenas da atividade empresarial, mas tambe'm da capacidade de descobrir, avaliar e explorar as oportunidades que o mercado oferece aos empresários”.6

Nós, operadores do direito, devemos compreender que a inovação que todos desejam na sociedade somente é alcançada com a segurança jurídica no ambiente econômico no qual os empreendedores atuam.

Vamos, então, fazer um exercício de hermenêutica e localizar dentro da rede de estruturação jurídica brasileira a interpretação correta de tais princípios na vida real, cotidiana, daqueles que operam nos mercados, em especial nos mercados de câmbio, de commodities, de criptoativos, de ações, etc.

Refletir sobre a aplicação de tais garantias e princípios no âmbito do Direito Penal Econômico. Sabemos que o indivíduo acusado da prática criminosa goza da presunção constitucional de inocência e o princípio que impõe o ônus da prova ao acusador, na realidade, nada mais é do que a dimensão probatória do referido princípio.

O cidadão, destinatário da norma penal, precisa ter conhecimento que determinada conduta é proibida pelo ordenamento jurídico, porque assim pode ser confrontado com sua postura ética, moral, diante da decisão de agir de forma ilícita, contrária à lei.

Todavia, o legislador instituiu a premissa que o sujeito imputável tem o conhecimento potencial da lei, acarretando assim, a responsabilidade penal do agente que não pode alegar a ignorância da norma como tese defensiva. A lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu art.3º, dispõe que: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Conclui-se, então, que basta o “conhecimento profano da existência dos valores protegidos pela norma (vida, integridade corporal, saúde, liberdade, patrimônio, etc) para que se possa exigir uma conduta adequada às exigências do Direito”.7

Todavia – uma vez mais - legislador foi mais sábio ao positivar no artigo 21 de nosso Código Penal, a possibilidade de o indivíduo atuar em erro sobre a ilicitude do fato. É o que nós denominamos erro de proibição, que afasta a culpabilidade daquele que pratica a conduta, que até pode apresentar tipicidade penal.

A República Federativa do Brasil consignou como direito fundamental dos indivíduos a impossibilidade de aplicação da sanção penal enquanto não for comprovada a culpabilidade do acusado. Por essa razão, não se pode afastar a presunção de inocência com base em fundamentos, “modelos interpretativos analógicos” utilizados pelo Estado-Julgador, substituindo a definição legal por referências empíricas, valorativas, etc.

Dentro de um sistema jurídico no qual a liberdade econômica é corolário máximo, garantia constitucional e princípio da República, a comprovação de ciência da proibição precisa estar em um standard acima da dúvida razoável. Portanto, seguindo tal raciocínio, podemos afirmar que a cognição da proibição legal é indispensável à aplicação da pena ao indivíduo, a título de dolo.

Logo, a quantidade de prova acusatória da existência dessa cognição quanto a fatos e respectiva ilicitude precisa ultrapassar a dúvida razoável para que se concretize o princípio in dubio pro reo.

O indivíduo empreendedor, que busca oportunidade para inovar no mercado, precisa ter a certeza absoluta de seu direito fundamental: que, uma vez sob acusação de conduta criminosa relacionada à sua atividade econômica, sejam comprovadas pelo Estado-Persecutor a existência de cognoscibilidade e dirigibilidade objetivas da proibição legal.

Então, faz-se necessária comprovação da vontade do acusado de realizar os atos exatamente como descritos no tipo penal e do conhecimento de que respectivos atos, se praticados daquela maneira, eram proibidos pela lei.

Ora, em mercados cuja regulação ainda é insuficiente ou excessiva – com inflação de norma incriminadoras - exigir do empreendedor onisciência das normas proibitivas cuja tecnicidade confunde até mesmo operadores do direito é medida sem razoabilidade, desproporcional e carregada de iniquidade. Exigir daquele que inova no mercado que conheça toda a produção normativa do direito penal econômico e ainda ter a ciência de que tal normatividade poderia ser analogamente aplicável ao seu negócio é algo fora do razoável.

Quando a pessoa se lança ao mercado, trabalhando duro para conquistar seu lugar, buscando identificar oportunidades, procurando formas de inovação, exercendo seu direito de atuar livremente segundo sua visão de mundo e sua análise das forças econômicas e seus respectivos rumos, a essa pessoa deve ser dada toda a presunção de verdade, legalidade, inocência.

São as pessoas que trabalham e inovam que impulsionam o mercado e a nação adiante, não podendo pesar sobre suas cabeças a insegurança de serem, a qualquer momento, acusadas de violação de normas de Direito Penal Econômico, por exemplo.

No caso dos crimes dolosos, o elemento subjetivo do tipo, essencial para sua configuração, precisa ser comprovado de forma cabal, inequívoca, concretizando assim as garantias constitucionais que são os pilares de nosso sistema de justiça penal e de nossa ordem econômica liberal.

A advocacia criminal deve ser combativa sempre, pois os fins a perseguir não legitimam os meios de “amortecimento” da aplicação de princípios e garantias que são os pilares de todo o sistema jurídico pátrio.

Ao intérprete, aplicador da lei penal, cabe apenas redução interpretativa, e jamais a ampliação dos contornos do tipo penal de modo a legitimar uma sentença condenatória, pois uma interpretação analógica extensiva não será, sob nenhuma hipótese, conforme a nossa Constituição Federal.

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1 Nunes, Cleucio Santos Nunes. Justiça Tributária. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 256-257.

2 TAVARES, André Ramos. Livre iniciativa empresarial. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017.

3 Becho, Renato Lopes; Basso, Bruno Bartelle. A Segurança jurídica tributária como funda-mento para o desenvolvimento econômico brasileiro. Revista Juris Plenum, Caxias do Sul, v. 15, n. 88, p. 153, jul. 2019. 

4 MAINELA, T.; PUHAKKA, V.; SERVAIS, P. The Concept of International Opportunity in International Entrepreneurship: a Review and a Research Agenda. International Jour- nal of Management Reviews, v. 16, p. 105-129, 2014.

5 YETISEN, A. K. et al. Entrepreneurship. LabChip, v. 15, p. 3.638-3.660, 2015.

6 MAS-TUR, A.; PINAZO, P.; TUR-PORCAR, A. M.; SA'NCHEZ-MASFERRER, M. What to Avoid to Succeed as an Entrepreneur. Journal of Business Research, v. 68, p. 2.279-2.284, 2015.

7 Dotti, René Ariel, Curso de Direito Penal – Parte Geral, Ed. Revista dos Tribunais, 2013, pag.334.

Antonio Valença da Silva
Servidor federal aposentado do Ministério da Justiça. Advogado atuante na seara do direito empresarial e direito penal econômico.

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