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LC 194/22 e a eterna discussão do ICMS sobre a TUSD e a TUST

A LC 194/22 não encerrou a discussão quanto a inclusão da TUSD e TUST na base de cálculo do ICMS, tratando apenas de excluir as parcelas do serviço de distribuição e transmissão e dos encargos setoriais, as quais não representam a TUSD e a TUST em sua integralidade.

2/12/2022

Recentemente os Estados viram seus poderes de arrecadação serem reduzidos com a publicação da lei complementar 194/22, que entre as alterações, introduziu um teto para a alíquota de ICMS incidente sobre energia elétrica e excluiu da base de cálculo os serviços de transmissão e distribuição e os encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica.

Visando limitar o escopo do presente artigo, antecipa-se desde logo que o cerne da discussão consiste em verificar se a lei complementar 194/22 encerra a discussão do ICMS incidente sobre a TUSD e a TUST, atualmente pendente de julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) por meio do tema  986 dos recursos repetitivos.

Tanto a Tarifa do Uso do Sistema de Distribuição (“TUSD”) quanto a Tarifa do Uso do Sistema de Transmissão (“TUST”) são cobradas do consumidor de energia elétrica, estando no ambiente regulado ou no ambiente de contratação livre, sendo uma contraprestação pelo uso do sistema ou, corriqueiramente chamado de “uso do fio”.

Um dos princípios norteadores do setor elétrico brasileiro está no rateio dos encargos entre todos os agentes, ou seja, de geradores a consumidores. Em razão disto, para os consumidores, os encargos acabam sendo camuflados na tarifa de energia elétrica, especialmente para aqueles que estão conectados no mercado cativo, que observam em suas faturas de energia dois grandes grupos, quais seja, a Tarifa de Energia e a TUSD.

De acordo com o módulo 7 dos Procedimentos de Regulação Tarifária (“PRORET”) a TUSD é composta pelas seguintes rubricas:

A imagem desmistifica o fato de que a TUSD se destina exclusivamente à remuneração pelo uso do fio ou pela sua disponibilização, a exemplo do grupo de “perdas”, que visa reduzir o impacto das distribuidoras com as perdas de energia, sejam de ordem técnicas em virtude dos decaimentos de potência em razão da geração em alta tensão ou por questões não técnicas, como os furtos de energia elétrica.

Historicamente, com a necessidade de modernizar o setor elétrico, foram realizadas algumas reformas, dentre as quais encontra-se a segregação das atividades de geração, distribuição e transmissão1. A segregação é um dos fundamentos utilizados para justificar que tais etapas são autônomas e, pelo fato de a transmissão e distribuição não estarem relacionadas à materialidade do ICMS, haveria que ser reconhecida a exclusão da TUSD e da TUST da base de cálculo do ICMS.

Assim sendo, o pagamento pelo uso do fio não está relacionado à uma das materialidades do ICMS, consistente na circulação jurídica de mercadorias, dentre as quais, a energia elétrica.

Não estando relacionada ao fato gerador, visto que apenas possibilita o deslocamento da mercadoria, que no caso é a energia elétrica, algumas decisões do STJ acabaram por reconhecer a não inclusão da TUSD na base de cálculo do ICMS.Acontece que não há como negar que o pagamento das tarifas, em razão do uso da rede de distribuição ou transmissão se dá de maneira quase que compulsória, visto que sem as redes de transmissão e distribuição, a energia gerada dificilmente alcançaria as unidades consumidoras, fato este comumente levantado por aqueles que defendem a inclusão das tarifas na base de cálculo do ICMS, por não vislumbrarem a possibilidade de tratar como autônoma as etapas de geração, distribuição e transmissão.

Com base neste raciocínio, podem ser encontrados alguns precedentes do STJ, reconhecendo a indissociabilidade das etapas acima, de modo que a tributação abrangeria todo o processo de fornecimento de energia elétrica, reconhecendo a inclusão da TUSD e da TUST na base de cálculo do ICMS.3

Em outros termos, as etapas de transmissão e distribuição não seriam apenas o meio ou “caminho” para o qual a energia elétrica seria transportada, de modo que são essenciais no processo de circulação da energia elétrica.

Independentemente das argumentações apresentadas, não é objeto deste presente artigo tentar antecipar a conclusão a ser tomada no âmbito do Tema 986 a ser julgado pelo STJ, tampouco analisar se os argumentos carreados por ambas as partes estão corretos ou adequados à técnica jurídica, tendo sido apresentados apenas para situar o leitor no debate e nas razões pelas quais se defende uma ou outra posição.

Superados a apresentação do que é a TUSD e a TUST, bem como os fundamentos utilizados em decisões judiciais para afastar as mencionadas tarifas da base de cálculo do ICMS ou inclui-las, passa-se a tratar da Lei Complementar nº. 194/2022, mais especificamente ao incluir o inciso X no art. 3º da lei complementar . 87/96, também conhecida como “Lei Kandir”:

“Art. 3º. O imposto não incide sobre:

X – serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica.”

Em uma interpretação literal, percebe-se sem maiores esforços que não tratou a lei complementar de determinar de maneira clara e inafastável que a TUSD e a TUST, como um todo, não compõem a base de cálculo do ICMS.

Ao cotejar a novel disposição legal com a tese jurídica a ser debatida no Tema 986 dos recursos repetitivos, percebe-se a importância da lei complementar 194/22 para o deslinde do caso.

Isto porque, sendo entendido que houve a determinação legal da exclusão do TUSD e da TUST da base de cálculo do ICMS, o que não parece ser a interpretação mais acertada, os contribuintes tendem a sair vitoriosos nas demandas, restando aguardar eventual modulação dos efeitos para verificar o alcance da decisão.

Caso contrário, havendo o entendimento de que a lei complementar 194/22 não determinou a exclusão da TUSD e da TUST da base de cálculo do imposto estadual, igualmente os contribuintes tendem a sair vitoriosos, todavia, apenas sobre as partes que deixaram de compor a base de cálculo do ICMS.

Ao que parece, a interpretação mais adequada consiste no reconhecimento de que a lei complementar. 194/22 não afastou a TUSD e a TUST da base de cálculo do ICMS, mas apenas algumas rubricas que compõem tanto a Tarifa de Energia, quanto a TUSD/TUST.

Rememorando o que foi exposto anteriormente, ao realizar a repartição dos encargos no setor elétrico, estes são incluídos em várias rubricas, sendo encontrados tanto na TE4quanto na TUSD e na TUST, conforme indicado na imagem anterior.

Assim, somente uma parcela da TUSD e da TUST, alusivas aos serviços de transmissão e distribuição e aos encargos setoriais não estará incluída na base de cálculo do ICMS, diferentemente do entendimento de alguns contribuintes que encontraram na lei complementar 194/22, um pretenso fundamento jurídico para que seu pleito pudesse ser acolhido integralmente.

Novamente, reforça-se que não é o intuito do presente artigo adotar uma posição no embate que está se desenvolvendo no âmbito do tema 986 do STJ, mas sim de tratar se a lei complementar 194/22 poderá ser utilizada para defender a exclusão total da TUSD e da TUST da base de cálculo do ICMS.

Visando subsidiar o CONFAZ acerca de como realizar a apuração da base de cálculo do ICMS, sob a égide da lei complementar 194/22, a Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) manifestou seu entendimento sobre quais rubricas deveriam ser excluídas da base de cálculo do ICMS:5

As parcelas destacadas em vermelho, correspondem a valores que visam remunerar o serviço de distribuição, transmissão e encargos setoriais, estando, portanto, afastados da base de cálculo, enquanto que as parcelas em azul, se manteriam na base de cálculo do ICMS.

Importante registrar que a manifestação apresentada pela ANEEL não deve ser tomada como uma verdade universal, visto que representa apenas o entendimento da Autarquia Federal, devendo ser observado de maneira crítica, especialmente quanto a algumas rubricas que no seu entendimento compõem a base de cálculo do ICMS, mas que em essência mostram-se como verdadeiros encargos setoriais.

Como se observa, não houve a exclusão da TUSD e da TUST em sua totalidade, como leva a crer uma interpretação extensiva, mas sim de alguns componentes que estão relacionadas à TUSD, ainda que seja a sua maior parte.

Ao incorporar as disposições da lei complementar 194/22, alguns Estados ora resolveram não tecer normas quanto a base de cálculo do ICMS e outros passaram a regular expressamente.

Como exemplo, cite-se o Estado de Minas Gerais, que ao regular o tema, manteve redação similar à da lei complementar em comento, não determinando expressamente a exclusão da TUSD da base de cálculo do ICMS, mas sim a exclusão das parcelas relacionadas aos serviços de transmissão e distribuição e dos encargos setoriais, senão vejamos:

“I – calcular o percentual remanescente na Tarifa de Energia – TE e na Tarifa de uso do Sistema de Distribuição – TUSD, excluídas as parcelas relacionadas a serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais (...).

III – aplicar os percentuais obtidos à Tarifa de Energia – TE e à Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição – TUSD, para fins de obtenção do valor da base de cálculo do ICMS nas operações com energia elétrica destinadas a seus consumidores.”6

Assim, a lei complementar 194/22 não encerra a discussão quanto a inclusão da TUSD na base de cálculo do ICMS, uma vez que a mencionada lei tratou apenas de retirar os encargos setoriais e as parcelas relacionadas aos serviços de transmissão e distribuição.

Tendo em vista a relevância do debate tanto para os contribuintes, uma vez que a TUSD representa uma parcela relevante da base de cálculo do ICMS incidente sobre energia elétrica, a decisão perpassará por uma análise acurada do sistema elétrico brasileiro, considerando as particularidades deste setor.

Portanto, observa-se que a lei complementar 194/22 não encerrou a discussão quanto a inclusão da TUSD e TUST na base de cálculo do ICMS, tratando apenas de excluir as parcelas do serviço de distribuição e transmissão e dos encargos setoriais, as quais não representam a TUSD e a TUST em sua integralidade.

___________________

1 “Art. 4º. (...).

§5º. As concessionárias, as permissionárias e as autorizadas de serviço público de distribuição de energia elétrica que atuem no Sistema Interligado Nacional – SIN não poderão desenvolver atividades:

I – de geração de energia elétrica;

II – de transmissão de energia elétrica;

(...).

§7º. As concessionárias e as autorizadas de geração de energia elétrica que atuem no Sistema Interligado Nacional – SIN não poderão ser coligadas ou controladoras de sociedades que desenvolvam atividades de distribuição de energia elétrica no SIN.”

2 AgRg no Recurso Especial nº. 1.408.185/SC; AgRg no Recurso Especial nº. 1.075.223/MG

3 AgInt no REsp nº. 1.623.318/MT; Resp 1.163.020/RS.

4 Ainda que não tenha sido demonstrado, sobre a Tarifa de Energia (TE) incidem encargos setoriais alusivos à Conta de Desenvolvimento de Energia (CDE COVID e CDE Eletrobrás), Pesquisa & Desenvolvimento, Encargos sobre serviços de sistema, encargos de energia de reserva, entre outros previstos no PRORET e que igualmente devem ser excluídos da base de cálculo do ICMS.

5 Ofício nº. 54/2022-DIR/ANEEL

6 Decreto nº. 48.482/2022

João Paulo Marçal
Advogado. Pós graduando em Direito Tributário pela FGV/SP

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