A civilização se fundou e até hoje sobrevive em virtude da engenhosidade e do aprimoramento da tecnologia. Da roda e estilingue aos carros elétricos e revólveres, a maioria das invenções abre caminho ao progresso e qualidade de vida – mas não é menos verdadeiro que uma minoria pode produzir perigos. Nesse sentido, o direito tem importante papel regulamentador, voltado a salvaguardar o homem dos potenciais excessos e imprevisibilidades de cada inovação. O exercício dessa função, contudo, não é simples. Como compreender a fundo, então, a relação entre o meio jurídico e as novas tecnologias?
O primeiro passo é o entendimento de que direito e tecnologia sempre caminharam juntos. Se um axioma da natureza humana é que “onde existe sociedade, há direito”, também é fato que onde existe civilização, há inovação. Para visualizar isso, basta rememorar alguns avanços do século passado, como a criação da internet, o mapeamento dos genomas e as corridas espaciais. Essas revoluções modificaram amplamente a relação do homem com o mundo e logo foram seguidas por uma adequação do meio jurídico. Atualmente, há leis maduras sobre a difusão de informações no ambiente virtual, uso corriqueiro de exames de DNA como recurso probatório e até manuais especializados em direito espacial. Na mesma esteira, as primeiras décadas do novo milênio não desaceleram esse padrão: redes descentralizadas (web 3.0), engenharia genética e inteligência artificial já impactam a sociedade e, por conseguinte, inspiram discussões sobre a atualização do ordenamento jurídico.
Um dos principais efeitos das novas tecnologias sobre o direito é, portanto, seu caráter estimulante. Os avanços científicos frequentemente instam os diplomas normativos a fazer frente às inovações. A cada invenção, nasce, concomitantemente, uma lacuna jurídica – e lacunas, sabe-se, podem ser problemáticas. Como melhor proteger os dados pessoais dos cidadãos na internet? Quais as regras civis e tributárias aplicáveis às criptomoedas e tokens não fungíveis? E quais os deveres e responsabilidades dos robôs inteligentes e seus respectivos desenvolvedores? A falta de uma resposta concreta pode causar insegurança em alguns. Porém, para além desse receio inicial, essas ferramentas inéditas oferecem um ganho indiscutível: a oportunidade de aperfeiçoamento do direito.
A área jurídica é composta por duas realidades que se complementam: teoria e prática. Enquanto legisladores, acadêmicos e magistrados desenvolvem o arcabouço de regras, doutrinas e precedentes que fundamentam os direitos e deveres dos jurisdicionados, estes relacionam-se com o ordenamento por meio da atuação dos advogados, medidas dos agentes oficiais e serviços públicos. Essa relação, no entanto, nem sempre é célere ou efetiva como deveria – e é aí que as inovações tecnológicas têm potencial transformador.
É fácil observar como seus benefícios estão por toda parte. Inegável, por exemplo, o ganho de tempo e a praticidade que os autos digitais e as audiências remotas deram aos processos judiciais. Na administração interna dos tribunais, o uso dos sistemas de inteligência artificial como Victor (STF), Clara (TJ-RJ) e Elis (TJ-PE) vem tornando os procedimentos burocráticos mais organizados e eficientes. E, no âmbito penal, o uso dos drones e câmeras especiais nos fardamentos sofisticou a atuação da polícia e facilitou a obtenção dos indícios de autoria e materialidade de ilícitos complexos.
Todavia, como dito, o progresso não é o único corolário da tecnologia. Embora seja verdade que o aumento do processamento gráfico dos computadores favoreceu as reuniões por videochamada e ensino a distância, o mesmo ganho deu azo à criação dos deepfakes e shallowfakes. Nessa linha, ainda que as blockchains tenham barateado e aprimorado várias transações econômicas, o anonimato inerente ao sistema torna propício seu uso para o desvio de ativos e comércio ilegal. E, por mais que os softwares de reconhecimento facial aumentem a segurança dos consumidores nas lojas e dos transeuntes pelas ruas, a formulação equivocada de seus algoritmos pode acarretar na discriminação velada de minorias.
Evidentemente, existem profissionais do direito atentos a esses problemas, mas é parte da essência da lei caminhar mais lentamente do que as ações dos inventores e cientistas. Para que um ato normativo possa ser promulgado, um extenso procedimento de deliberação é etapa inescapável. Somando-se isso à complexidade técnica e moral que certas inovações invocam, torna-se ingênuo acreditar em resoluções simples e rápidas para tais discussões.
O direito não oferece soluções instantâneas nem eternas. Portanto, a presença de uma lacuna normativa nem sempre indica que a tecnologia é de fato nova. Às vezes, seu uso poderá gerar dúvidas que precisarão de tempo e revisões a fim de serem respondidas da melhor forma. É o caso dos criptoativos, existentes desde 2008, até agora sem lei regulamentadora aprovada pelo parlamento. Ademais, mesmo normas minuciosas elaboradas com o auxílio de especialistas e juristas de monta poderão apresentar imperfeições: pense-se nas retificações sofridas pelos recentes Marco Civil da Internet e lei Geral de Proteção de Dados – sem citar a adaptação da jurisprudência a tais temas, ainda caminhante.
Isso significa que, embora as novas tecnologias possam estimular o aperfeiçoamento do direito, tal efeito muitas vezes não é contemporâneo à sua criação. Carros automáticos são realidade em alguns países, mas a ausência deles no Brasil faz com que ainda não seja imperiosa uma revisão do Código Brasileiro de Trânsito. Da mesma maneira, ainda que o desenvolvimento do metaverso esteja acelerado, a nova realidade digital ainda não alterou o ambiente laboral a ponto de vindicar uma atualização da Consolidação das leis do Trabalho.
Contudo, projetos em andamento podem exercer influência gradual sobre o meio jurídico. O próprio anúncio do metaverso, mesmo em seus primórdios, vem estimulando muitos advogados a se especializarem em programação e mídias digitais a fim de se integrarem ao futuro mercado. Semelhantemente, a expectativa quanto aos avanços das energias renováveis já é objeto de análise de muitas firmas que cuidam do compliance ambiental de grandes empresas. Na arquitetura do desenvolvimento moderno, as novas tecnologias são os tijolos que erigem os monumentos, ao passo que a lei é o cimento que confere liga e estabilidade – ainda que possa demorar a secar.
Se as reformas legais tendem a ser mais morosas em prol do amplo debate e segurança jurídica, há, por outro lado, um elemento do direito dinâmico por excelência: seus operadores. Advogados, defensores, promotores e juízes têm como atuar de modo inventivo e industrioso para manejar o arcabouço normativo satisfatoriamente aos jurisdicionados. A mente do jurista não é, afinal, engessada como a lei, tendo potencial de captar as mudanças, associá-las à sua formação teórica e adequá-las ao seu trabalho – antes mesmo das primeiras proposições legislativas. É o caso das modernas lawtechs e das associações como a AB2L, nas quais juristas engenhosos aprendem sobre as novidades do mercado tecnológico e, por meio da cooperação interdisciplinar e modernização dos contratos, dão um passo à frente do direito positivo. Outro exemplo é o aproveitamento do crescente acesso à internet para alterar o modo de participação popular no processo legislativo. Isso já foi feito quando da tentativa de criação de uma crowdsourced constitution, em 2011, na Islândia – iniciativa não tão distante do atual sistema de consultas públicas do Portal e-Cidadania, do Senado Federal.
Tais exemplos demonstram como uma ferramenta tecnológica pode dispensar regulamentação legal e, ainda assim, transformar o meio jurídico tal qual uma medida normativa. Basta a astúcia daquele que a maneja: o ser humano.
Ser humano, novas tecnologias e direito. É percebendo o vínculo entre os três que se encontra a melhor resposta. Explorar os impactos das novas tecnologias sobre o meio jurídico é, em última instância, dissertar sobre o potencial inventivo do homem. Nesse sentido, as leis são só mais um instrumento, constantemente desenvolvido e adaptado, com vistas à evolução e pacificação sociais. Direito e tecnologia se constituem, pois, como ferramentas de um mesmo arquiteto e, juntos, têm potencial de construir um futuro auspicioso e empolgante. O arquiteto? É cada um dos quase oito bilhões de cérebros pensantes, que arriscam ideias, iniciam projetos, elaboram regras, cometem equívocos, corrigem seus fracassos e transformam, pouco a pouco, a realidade. Tudo isso graças à tecnologia mais antiga e, ao mesmo tempo, a mais moderna do planeta: essa força, tão fundante quanto o direito natural à vida, à liberdade e ao pensamento, que é a criatividade humana.