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Análise das alterações da lei 11.101/05 sob a perspectiva da superação do dualismo pendular

No entanto, após a promulgação da lei 11.101/05 (LRF), a preocupação precípua do legislador, especialmente no que diz respeito às recuperações judiciais, passou a ser a preservação da empresa.

1/12/2022

Quando o assunto é insolvência e crise empresarial e, especialmente, legislações voltadas a regulamentar tais circunstâncias, observa-se uma tendência histórica de oscilação dos interesses tutelados, oscilação esta denominada pela doutrina de “Teoria do Dualismo Pendular".

Comparato, ainda em 1970 (p. 97), abordou o ritmo “nitidamente pendular” da legislação falimentar ao destacar que a Lei protegia “alternadamente o insolvente, ou os seus credores, ao sabor da conjuntura econômica e da filosofia política do momento”.

Em linhas gerais, a Teoria do Dualismo Pendular representava a tentativa de ora atender o interesse do devedor, canalizando os esforços à manutenção da empresa, ora em atender o interesse dos credores, possibilitando-lhes satisfazer seus créditos.

No entanto, após a promulgação da lei 11.101/05 (LRF), a preocupação precípua do legislador, especialmente no que diz respeito às recuperações judiciais, passou a ser a preservação da empresa, conforme denota-se do art. 47, considerado sustentáculo do instituto. 

Cabe, neste ponto, rememorar de forma sucinta os conceitos de empresa e empresário, os quais circundam o direito empresarial como um todo e possuem íntima relação com o instituto da recuperação judicial: Ao passo que a empresa é compreendida como “uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços para o mercado” (TOMAZETTE, Marlon, 2022, p. 35), compreende-se como empresário aquele a quem compete “a iniciativa de organizar uma atividade econômica de produção ou circulação de bens ou serviços”, seja pessoa física, ou jurídica. (COELHO, Fábio Ulhoa. 2012`).

Portanto, a bem da verdade, a atual Lei de Recuperação Judicial pretende preservar, para além do empresário (pessoa física ou jurídica em crise), a atividade empresarial e, como consequência, fomentar a produção de bens e a prestação de serviços, dando cumprimento à função social da empresa.1

Daniel Carnio Costa, com propriedade, afirma que o instituto da recuperação de empresas “deve superar o dualismo pendular de modo a deslocar o foco interpretativo para a realização do resultado útil e eficaz desse sistema jurídico”, cabendo aos Magistrados zelar pela equilibrada divisão de ônus entre credores e devedor e, assim, possibilitando maximizar resultados sociais relevantes e decorrentes da recuperação da empresa.

Alguns passos para a superação do Dualismo Pendular já podiam ser notados na Exposição de Motivos da lei 11.101/05, cuja redação demonstra a preocupação do legislador em salvaguardar a empresa, e não apenas proteger interesses do devedor e dos credores. Datada de 1993, a Exposição continha o seguinte trecho:

Assim sendo, a proposta legislativa mencionada visa a, primordialmente, proteger credores e devedores, salvaguardando, também a empresa. [...] Adota-se a recuperação da empresa em substituição à concordata suspensiva, com a finalidade de proteger o interesse da economia nacional, e aos trabalhadores na manutenção dos seus empregos.

Indo além, as recentes alterações da LRF, implementadas pela lei 14.112/20, deixaram ainda mais clara a intenção do legislador de superar o que se conhece por Dualismo Pendular.

A título exemplificativo, merece destaque a alteração do art. 56 da lei, com a inclusão dos parágrafos 4º ao 9º, que preveem, expressamente, a possibilidade de apresentação de plano de recuperação judicial pelos próprios credores em caso de rejeição do plano da devedora - os chamados “planos alternativos”.

Rejeitado o PRJ e ausentes os requisitos para cram down, a convolação da RJ em falência deixou de ser consequência direta e imediata (antes prevista no §4º do art. 56), uma vez que caberá ao administrador judicial submeter à votação dos credores, na mesma assembleia, a concessão de prazo de 30 (trinta) dias para apresentação de plano por eles próprios.

Havendo aprovação do prazo para apresentação do plano pelos credores, por maioria simples dos credores presentes, conforme determina o §5º, caberá ao administrador judicial proceder ao encerramento da assembleia. Por outro lado, havendo rejeição do prazo de 30 (trinta) dias, a recuperação judicial será convolada em falência, consoante determina o §8º do art. 56.

Assim, a atual redação, ao prever a possibilidade de apresentação de plano alternativo, revela mais um esforço do legislador em preservar a atividade empresarial, evitar a falência e, assim, manutenir empregos, recolher tributos e fomentar a economia.

Além dos requisitos formais contidos nos incisos I, II e III, do § 6º, do art. 56, os credores, ao apresentar o novo plano de recuperação, deverão observar diretrizes insertas nos incisos IV, V e VI2, do mesmo artigo.

O parágrafo sétimo do art. 56, por seu turno, revela outro grande passo para a superação do Dualismo Pendular e, especialmente, para a superação da tutela irrestrita de interesse do devedor. Isto porque possibilita, inclusive, que o plano alternativo contenha disposição hábil a acarretar a alteração de controle da sociedade devedora, permitindo o exercício do direito de retirada pelos sócios. Aqui, uma vez mais, nota-se o esforço do legislador em privilegiar a atividade empresarial face aos interesses particulares do próprio devedor e de seus sócios.

Outro grande e atual exemplo de Superação do Dualismo Pendular diz respeito à possibilidade de instaurar procedimento de mediação e/ou conciliação nos processos de recuperação judicial, também regulamentada pela edição da Lei 14.112/20. Referida lei incluiu na LRF os arts. 20-A a 20-D, bem como a alínea “j” no art. 22, inciso II, esta, responsável por atribuir como nova obrigação do administrador judicial o incentivo, sempre que possível, de conciliação, mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos relacionados à RJ e à falência, respeitados os direitos de terceiros.

Sobre este aspecto, vale lembrar a situação ocorrida no processo de recuperação judicial da Mineradora Samarco (5046520-86.2021.8.13.0024). Em AGC realizada em 18/4/22, a administração judicial daqueles autos, após observar a existência de impasse e situação de alta beligerância entre os credores financeiros e a Recuperanda em relação à negociação e aprovação do PRJ, sugeriu o estabelecimento de procedimento formal de mediação, atenta às modificações implementadas pela lei 14.112/20.

Embora a sugestão da AJ não tenha sido acolhida por credores financeiros quando da realização da assembleia, após deliberado o plano da devedora, que fora rejeitado pela maioria dos credores presentes, e aprovada a concessão de trinta dias para apresentação de plano alternativo, o Magistrado determinou a realização de audiência de conciliação entre devedora e credores, na qual foi convencionada a instauração de processo de mediação, com vistas a atingir um equilíbrio quanto aos interesses envolvidos no que diz respeito às condições do PRJ. Apesar do procedimento naqueles autos ter sido encerrado sem que os envolvidos chegassem a um acordo, nota-se um grande passo na tentativa de equalizar interesses, refletindo, assim, a Superação do Dualismo Pendular.

O art. 20-B, inciso I da LRF, ao prever que a solução consensual poderá ser utilizada para dirimir disputas entre sócios e acionistas de sociedade em dificuldade ou em RJ, também revela o rompimento da defesa irrestrita de interesses credor versus devedor. Embora seja possível notar este rompimento, Manoel Justino entende que tal previsão extrapola os limites da Lei, pois as disputas entre sócios e acionistas podem envolver temas diversos e, sobretudo, sem nenhuma relação com o processo de RJ (BEZERRA FILHO, 2022, p. 145).

Dentre outros exemplos hábeis a ilustrar o esforço do legislador em superar o Dualismo Pendular, também vale mencionar a inclusão do parágrafo sexto no art. 39, que passou a admitir expressamente a possibilidade de declaração de nulidade de voto por abusividade “quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem” - estabelecendo limites legais ao direito de voto de credor legitimado.

O Ministro Luis Felipe Salomão, ao proferir voto no REsp 1.337.989/SP, evocou a teoria da Superação do Dualismo Pendular e destacou que há consenso, na doutrina e no direito comparado, no sentido de que as regras da RJ devem ser interpretadas prestigiando a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores.

Assim, antes mesmo das edições da LRF pela lei 14.112/20, o Ministro, visando sobretudo evitar eventual abuso de voto, reconheceu a validade da decisão de primeiro grau que concedeu RJ mesmo diante da rejeição do plano pelos credores e não preenchidos integralmente os requisitos do cram down. Consignou, naquela ocasião, que a manutenção da empresa recuperável deveria sobrepor aos interesses de um ou poucos credores divergentes.

Por outro lado, a superação do Dualismo Pendular, ao privilegiar o resultado útil do processo e a atividade econômica, também pode ser observada na rápida identificação de empresas inviáveis, com a retirada destas da economia e realocação dos bens e dos empregos, de modo que possam gerar proveito econômico e social. De forma a facilitar a identificação de empresas inviáveis, antes mesmo do deferimento da Recuperação Judicial, o art. 51-A, introduzido pela Lei 14.112/20, instituiu a possibilidade de constatação prévia, por meio da qual será apurado se a empresa está em funcionamento e é geradora de mão de obra e riquezas para a sociedade.

Os exemplos acima destacados corroboram o entendimento de que a legislação de recuperação judicial e falência tem caminhado, cada vez mais, rumo à Superação do Dualismo Pendular, mediante a inserção e alteração de dispositivos voltados ao equilíbrio e consenso dos agentes envolvidos e à efetiva manutenção da atividade empresarial, ainda que, para tanto, seja necessário extrapolar os interesses particulares do próprio devedor em crise.

Como consequência, os avanços rumo à superação do Dualismo Pendular tornam o procedimento de recuperação judicial mais democrático e menos polarizado, o que, sem sombra de dúvidas, contribui para se alcançar o resultado útil da RJ, qual seja, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

_______________

1 Como esclarecido pelo Professor Daniel Carnio Costa, o ônus suportado pelos credores em razão da recuperação judicial se justifica se o desenvolvimento da empresa gerar os benefícios sociais reflexos, que são decorrentes do efetivo exercício dessa atividade. Assim, empresas que não contribuem para a circulação de riquezas, serviços e produtos não cumprem sua função social, motivo pelo qual não há justificativas para mantê-las (CARNIO COSTA, Daniel. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 16, nº 39, p. 59-77, Janeiro-Março/2015).

2 § 6º O plano de recuperação judicial proposto pelos credores somente será posto em votação caso satisfeitas, cumulativamente, as seguintes condições: I - não preenchimento dos requisitos previstos no § 1º do art. 58 desta Lei; II - preenchimento dos requisitos previstos nos incisos I, II e III do caput do art. 53 desta Lei; III - apoio por escrito de credores que representem, alternativamente: a) mais de 25% (vinte e cinco por cento) dos créditos totais sujeitos à recuperação judicial; ou b) mais de 35% (trinta e cinco por cento) dos créditos dos credores presentes à assembleia-geral a que se refere o § 4º deste artigo;IV - não imputação de obrigações novas, não previstas em lei ou em contratos anteriormente celebrados, aos sócios do devedor; V - previsão de isenção das garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação aos créditos a serem novados e que sejam de titularidade dos credores mencionados no inciso III deste parágrafo ou daqueles que votarem favoravelmente ao plano de recuperação judicial apresentado pelos credores, não permitidas ressalvas de voto; e VI - não imposição ao devedor ou aos seus sócios de sacrifício maior do que aquele que decorreria da liquidação na falência.

Cristiene Julia Gonçalves de Paula
Sócia fundadora e coordenadora do escritório Inocêncio de Paula Sociedade de Advogados e especialista em Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, com ênfase em Administração Judicial.

Maria Carla Oliveira Rocha Tolentino
Advogada no escritório Inocêncio de Paula Sociedade de Advogados, mestre em Direito Empresarial e especialista em Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência.

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