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Revisitando aspectos relevantes da convenção de arbitragem

Qual a importância da convenção de arbitragem? Quais são os seus elementos essenciais? Na ausência de um deles, quais os riscos para a higidez do procedimento arbitral?

24/11/2022

1. Introdução

Como se sabe, a arbitragem é um meio alternativo ao processo judicial para resolução de controvérsias. Para que as partes submetam seus conflitos à arbitragem, é preciso celebrar uma convenção de arbitragem, que, por sua vez, se divide em duas diferentes espécies.

A primeira é a cláusula compromissória ou cláusula arbitral, pactuada pelas partes antes do surgimento do conflito que será submetido à arbitragem e, muitas vezes, está inserida no contrato principal que originou a controvérsia, na forma do art. 4º da lei 9.307/96 (“Lei de Arbitragem”).

A segunda espécie é o compromisso arbitral, pactuado após o surgimento de determinado litígio, de modo que as partes celebram um instrumento contratual destacado do contrato original para especificamente prever que determinado conflito será resolvido pela arbitragem, podendo tal compromisso ser judicial ou extrajudicial, conforme o art. 9º da Lei de Arbitragem.

A convenção de arbitragem é, assim, a fonte da jurisdição dos árbitros. E, cabe afirmar, como ideia introdutória: não há arbitragem sem convenção de arbitragem.1

2. A convenção de arbitragem

Feito esses registros iniciais acerca da convenção de arbitragem, destaca-se o conceito de arbitrabilidade subjetiva, que diz respeito aos sujeitos – quem – submetidos à arbitragem. Em tese, apenas as partes signatárias da convenção arbitral estão vinculadas à arbitragem. Já a arbitrabilidade objetiva diz respeito às matérias – o que – a serem dirimidas pela via arbitral, as quais podem variar de acordo com a legislação aplicável.2 Não se descarta, no entanto, a existência de complexas discussões sobre a ampliação dos limites subjetivos e objetivos da convenção arbitral, o que não constitui o escopo deste trabalho.

O art. 1º da Lei de Arbitragem delimita a abrangência dos conceitos de arbitrabilidade subjetiva e objetiva ao dispor que (i) as pessoas capazes poderão dirimir conflitos pela arbitragem; e (ii) apenas controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis podem ser resolvidas pela arbitragem.3

No Direito brasileiro, os contratos são firmados por meio do consenso das partes, isto é, pelo encontro de vontades que materializa o exercício da autonomia privada. Nesse contexto, o art. 4º, §1º, da Lei de Arbitragem vai além, ao dispor que a “cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito”, mas há situações em que o intérprete irá se deparar com cláusulas compromissórias que não foram assinadas pelas partes, o que ocorre, por exemplo, quando esta é celebrada por uma troca de e-mails das partes.

A verdade é que a assinatura facilita a prova do consentimento das partes, este um requisito essencial da convenção arbitral, ao lado da exigência legal de que o contrato seja escrito.4

3. Elementos essenciais da convenção de arbitragem

A redação da convenção de arbitragem deve ser realizada de maneira diligente e detalhada pelas partes contratantes e seus respectivos advogados. A cláusula arbitral pode ser classificada como “cheia” ou “vazia”.

A cláusula cheia é aquela que dispõe de modo completo sobre os pressupostos que viabilizam a instauração regular de uma arbitragem. Existem aspectos que, para a comunidade arbitral, devem ser regulados pela cláusula compromissória para caracterizar a cláusula cheia, quais sejam:

(i) a lei aplicável ao procedimento arbitral, que é tida como uma das maiores vantagens da arbitragem, uma vez que as partes poderão, consensualmente, analisar e escolher o ordenamento jurídico mais adequado para resolução da disputa (art. 2º, §1º da Lei de Arbitragem);

(ii) o idioma em que serão apresentadas as manifestações das partes e proferidas as ordens processuais e a sede da arbitragem (local em que, normalmente, o procedimento arbitral se desenvolve e onde é prolatada a sentença arbitral);5

(iii) a instituição que administrará a arbitragem; e

(iv) os critérios para nomeação de árbitros.

Já a cláusula vazia é aquela que “não cont[ém] – basicamente – as indicações para a nomeação de árbitros, a fim de instituir-se o juízo arbitral”.6 Para solucionar o impasse, o art. 6º da Lei de Arbitragem estabelece que a parte interessada poderá notificar a contraparte sobre seu interesse de instaurar a arbitragem, a fim de que, em local, dia e hora predeterminados, firmem o compromisso arbitral.  

Há também as cláusulas reputadas “patológicas”, que são aquelas que, embora submetam a` arbitragem uma eventual controvérsia, são redigidas de forma incompleta ou contraditória, inviabilizando a instauração do procedimento arbitral de forma regular. Nesses casos, é necessário que as partes busquem o Poder Judiciário para que se promova forçadamente a instauração da arbitragem. As cláusulas arbitrais vazias, por exemplo, são patológicas.7

A indicação desses elementos na convenção de arbitragem busca, portanto, evitar discussões relativas à sua existência, validade e eficácia. Nessa linha, destaca-se que as cláusulas patológicas são cláusulas viciadas, que não respeitam os elementos essenciais da convenção de arbitragem (por exemplo, quando não está claro qual Câmara de Arbitragem que as partes escolheram para administrar o procedimento arbitral).

As cláusulas vazias, por sua vez, são verificadas quando os elementos essenciais da convenção de arbitragem não estão presentes, apesar de cumprir os requisitos formais. Exemplo disso é quando a convenção de arbitragem dispõe, genericamente, que a resolução de disputa será por meio da arbitragem no Brasil, sem especificar os outros elementos indicados anteriormente.

4. Separabilidade e princípio da competência-competência

A cláusula compromissória, portanto, confere jurisdição ao Tribunal Arbitral para decidir sobre determinada matéria, afastando, por consequência, a jurisdição estatal para o julgamento de mérito.

Característica relevante do instituto da arbitragem é a separabilidade, que se traduz na autonomia da cláusula compromissória em relação ao contrato principal. Dito de outro modo, a cláusula compromissória é considerada um contrato autônomo firmado pelas partes, uma ficção jurídica que constitui um contrato distinto do contrato principal. O consentimento das partes ao pactuarem a cláusula compromissória é distinto daquele manifestado quando da celebração do contrato principal. É sintomática desta ideia a possibilidade de que a lei aplicável à cláusula compromissória seja diferente da lei aplicável ao contrato principal.

Uma vez estabelecida a premissa de que o contrato principal e a cláusula compromissória são contratos autônomos e distintos, conclui-se que a nulidade do contrato não implica a nulidade da cláusula compromissória, conforme dispõe expressamente o art. 8º, caput, da Lei de Arbitragem. A despeito disso, a Lei de Arbitragem não ignora que as causas de nulidade (e anulabilidade) do contrato principal e da cláusula compromissória podem ser as mesmas.

Buscando preservar ao máximo a autonomia privada das partes que pactuaram a convenção de arbitragem, o princípio da competência-competência (Kompetenz-Kompetenz) também ganhou relevância na prática arbitral,8 a conferir aos árbitros, e não ao juiz estatal, a competência para (i) avaliarem se a convenção de arbitragem é existente, válida e eficaz (art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem); e (ii) decidirem sobre questões relativas à sua própria competência.

5. Conclusão

A arbitragem é, portanto, fundamentada na autonomia privada das partes que, conjunta e consensualmente, decidem celebrar a convenção de arbitragem e afastar determinados conflitos da apreciação da jurisdição estatal para que sejam julgados na jurisdição arbitral.

É recomendável que, ao estipularem os termos da convenção de arbitragem, as partes estejam devidamente assessoradas e considerem os seus respectivos interesses, tudo para que as condições pactuadas sejam as mais adequadas para aquele contexto negocial e a fim de evitar discussões relativas à sua existência, validade e eficácia.

Assim, idealmente, a convenção de arbitragem deve dispor sobre elementos essenciais para o seu regular desenvolvimento – como o idioma, a sede, a lei aplicável à arbitragem e o procedimento para nomeação de árbitros.

De tudo isso se extrai uma importante recomendação: é preciso evitar que a forma de resolução de disputas eleita pelos contratantes seja orientada por convenções de arbitragem incompletas ou mal redigidas, pois a nulidade da convenção de arbitragem é causa para a anulação da sentença arbitral, nos termos do art. 32, I, da Lei de Arbitragem.

_________________

1 Sobre o objeto da convenção de arbitragem, Clávio de Melo Valença Filho ensina que “o efeito negativo restringe a liberdade do juiz estatal, os efeitos positivos procuram dirigir a conduta das partes contratantes, obrigando-as a permanecer na via arbitral, garantindo, inclusive, a possibilidade de execução específica da convenção de arbitragem” (VALENÇA FILHO, Clávio de Melo. Os efeitos da convenção de arbitragem em face da Constituição Federal. In: Estudos de arbitragem. VALENÇA FILHO, Clávio de Melo; LEE, João Bosco (coords.). Curitiba: Juruá, 2008, p. 125).

2 Quanto ao ordenamento brasileiro, Selma Ferreira Lemes, coautora da Lei de Arbitragem, afirma que “a arbitrabilidade objetiva refere-se ao objeto da matéria a ser submetida à arbitragem, ou seja, somente as questões referentes a direitos patrimoniais disponíveis.” (LEMES, Selma M. Ferreira. Arbitragem na concessão de serviços públicos – arbitrabilidade objetiva. Confidencialidade ou publicidade processual? In: Novos Rumos da Arbitragem no Brasil. GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida. São Paulo: Fiuza, 2004, pp. 368-369).

3 Nesse sentido, “a função arbitral, diferentemente da judicial, é uma função restritiva, uma vez que somente é viável para as controvérsias de caráter patrimonial relativas a direitos disponíveis” (PUCCI, Adriana Noemi. Juiz & Árbitro. In: Aspectos atuais da arbitragem. PUCCI, Adriana Noemi (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 9).

4 “Nos termos do art. 4.º, § 1.º, da Lei de Arbitragem, a cláusula compromissória deve ser estipulada por escrito. Em conformidade com disposição expressa de lei, a exigência se satisfaz com a comprovação por forma escrita, sendo dispensável assinatura específica. Assim, e.g., trocas de e-mails em que se faça referência à convenção de arbitragem já serão suficientes para que se repute haver estipulação entre as partes. Confirmando essa diretriz geral, a lei impõe anuência específica apenas no âmbito dos contratos de adesão. E mesmo essa hipótese tem sido interpretada restritivamente pelo STJ, que limita a exigência adicional aos casos em que fique caracterizada a hipossuficiência e o prejuízo da parte demandada.” (TIBURCIO, Carmen. Cláusula Compromissória em Contrato Internacional: Interpretação, Validade, Alcance Objetivo e Subjetivo. Revista de Processo, v. 241, 2015, p. 523).

5 Dessa forma, são os tribunais do local da sede da arbitragem que têm competência para julgar eventual ação anulatória.

6 CARMONA, Carlos A. Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3. ed. rev., atual. e ampl.  São Paulo: Atlas, 2009, p. 143.

7  Também são patológicas as cláusulas arbitrais que indicam órgão arbitral inexistente ou apontam um mecanismo inoperante para a indicação do árbitro.

8 Apenas a título ilustrativo, remete-se a importante precedente sobre o tema: TJSP, 28ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2075342-95.2014.8.26.0000, Desembargador Relator Manoel Justino Bezerra Filho, j. 23.09.2014.

Naomi Fiszon Zagarodny
Advogada do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados, pós-graduanda em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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