Migalhas de Peso

Ataque à democracia

A democracia brasileira vem sendo violada sistematicamente nos últimos anos, a Constituição Federal vem sendo agredida e a insegurança jurídica vem amedrontando não somente o indivíduo, mas os representantes do povo legitimamente eleitos, jornalistas e até os investidores.

22/11/2022

Costumo dizer que a constituição federal só empolga alunos de primeiro ano de graduação, tão inocentes e iludidos quanto um adolescente que se apaixona pela primeira vez e acredita que encontrou o amor de sua vida, até a realidade bater à sua porta e a maturidade, cruel como só ela é, revelar que tanto o sentimento apaixonado quanto a teoria do direito ficam irreconhecíveis quando vistos na prática.

Assim é como vemos a constituição sendo aplicada nos últimos anos, olhamos pra ela no “papel” e depois pras decisões do STF e não a conhecemos, o que nos provoca um certo sentimento de estranheza, revolta e um pouquinho de medo, mas só o suficiente pra nos deixar distantes dos ataques que essa estranha interpretação constitucional vem promovendo diante de suas vítimas.

Não há democracia sem um Estado de Direito, pois este é quem garante as liberdades que aquela promete aos indivíduos. Uma vez que a constituição federal não é mais respeitada por aqueles que deveriam protegê-la, a democracia, inevitavelmente, também é violada, o que destrói e corrói importantes princípios corolários do Estado de Direito.

Espera-se que a OAB ou os advogados que prezam pelo devido processo legal e, portanto, pelo respeito à constituição, que se manifestem em apoio ao Estado de Direito. Isso porque, na qualidade de advogados, não só se pode como  se deve insurgir-se contra as injustiças que, porventura, venham a ser observadas, não importa quem as promova. É neste sentido que o Código de Ética e Disciplina da OAB leciona (Art. 2°)  ao dizer aquilo que está sedimentado na própria constituição federal, como vemos a seguir:

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

O Código de Ética da OAB vai dizer no mesmo sentido que:

Art. 2º O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social, cumprindo-lhe exercer o seu ministério em consonância com a sua elevada função pública e com os valores que lhe são inerentes

O texto da norma deontológica advocatícia é bem mais primoroso, pois acrescenta importantes aspectos e deveres inerentes ao advogado, como defender o Estado de Direito, os Direitos Humanos e as Garantias fundamentais, por exemplo. É respaldado nessa ordem e dever que se deve manifestar diante do estado de coisas no qual nos encontramos atualmente.

O inciso “V” do citado código diz que um dos deveres do advogado é zelar pelo aprimoramento das instituições e das leis, mas, como isso pode ser feito pelos mais de 1,3 milhão de profissionais habilitados/atuantes na advocacia? Parece-nos que uma das formas de contribuir pra isso é através dos meios digitais, através dos quais o profissional pode manifestar posicionamentos jurídicos, esclarecendo aos demais cidadãos muitas situações que causam espanto, descrédito e até revolta ao verem certas pataquadas vindas de alguns julgadores do judiciário.

Poucos advogados têm o privilégio de ser ouvidos pro aprimoramento das instituições ou das leis, restando somente suas redes virtuais como canais de comunicação e contribuição ao público leigo. As críticas às instituições e leis também são formas de contribuição pros seus aprimoramentos. É por isso que não só se pode, mas se deve insurgir-se contra as arbitrariedades que vêm acontecendo contra nossa constituição e democracia, seja por instituições, ministros ou por leis.

Quando tudo  começou?

Não consigo ter o poder pra saber exatamente quando tudo isso começou, mas certamente um dos grotescos capítulos dessa série deu-se no julgamento do impeachment de Dilma Rousseff. Naquela ocasião, em 2016, sua excelência, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu inovar na interpretação da constituição federal. Ao invés de ler e aplicar aquilo que diz o texto da carta magna, o ministro resolveu ler e decidir diversamente daquilo que dizia o texto. Vejamos o que diz o artigo violentado por tal interpretação:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

(...)

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.

Naquela ocasião, o então presidente do STF, resolveu ouvir “vozes” de sua cabeça, (ou ao redor dela) presumo como jornalista, e manter os direitos políticos da então presidente Dilma Rousseff, mesmo lhe aplicando o impeachment, o que é estranho ao texto constitucional. Diante de tal absurdo não houve grandes alardes ou manifestações populares, por exemplo, nem das instituições que zelam pela constituição e Estado de Direito, porém, se manifestaram, não tiveram êxito nenhum no socorro à constituição. O mais estranho é que no caso do impeachment de Collor em 1992, não houvera tal manobra pra beneficiá-lo como ocorreu com Rousseff, (vai saber  como era interpretação de texto naquela época, né?).

Mas, alegrem-se, meus caros leitores migalheiros, de tédio nós brasileiros não morremos, principalmente se depender da política e da justiça (que é a mesma coisa que política ultimamente). Isso me faz lembrar de outro episódio (não menos horroroso) quando da análise pelo STF da possibilidade de reeleição de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre em 2020,  à presidência do senado e da câmara dos deputados federais. Naquela ocasião, mais uma vez, os ministros do maior tribunal de justiça do país pareciam estar tomados por alguma força alienígena (talvez oculta seja mais adequada) ao julgar o texto constitucional, posto o resultado da votação sobre o problema que lhes foi apresentado.

 Primeiramente, vejamos o que diz o texto sobre a questão:

 Art. 57. O Congresso Nacional reunir-se-á, anualmente, na Capital Federal, de 2 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro.         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 50, de 2006). (...)

§ 4º Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente. (destacamos)         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 50, de 2006)

Ao lerem o vernáculo textual da carta política, vários ministros devem ter entendido carta política com interpretação política (mais uma vez, pra variar) da constituição federal. Praticamente metade da corte entendeu que o texto constitucional autorizava a reeleição, o que a literalidade, tão clara quanto a luz do sol, dizia o contrário. Esse novo capítulo grotesco de violação da constituição nos faz questionar a capacidade interpretativa dos ministros, pois do contrário seria somente desonestidade, o que nos parece que não é o caso dos supremos juízos.

Desta forma, de capítulo em capítulo,   essa série de terror, digna de figurar entre as mais extravagantes da Netflix, continua a nos surpreender com  as mais absurdas cenas. A cada violência cometida contra a carta maior e a cada silêncio das instituições que podem barrar tais absurdos e nada fazem, os atos arbitrários, as perseguições e censuras continuarão em pleno vapor, é só dizer que atacam a democracia pra proteger a democracia que tá tudo certo! Que fofos, não?

Um dos últimos capítulos dessa saga contra o Estado de Direito, contra a democracia e liberdade de imprensa, ocorreu contra veículos jornalísticos. Antes do segundo turno das eleições presidenciais deste ano, 2022, o TSE, por meio do ministro cujo nome causa medo nas pessoas (assim como um ditador amedronta pessoas em regimes ditatoriais) determinou multa contra uma emissora de Tv e rádio (Jovem Pan), pra que não falassem algumas palavras que fizessem referências ao passado criminal do então candidato Lula. 

Segundo a emissora censurada, houve proibição de publicação de determinados temas e termos, ainda que em caráter informativo ou crítico a respeito das condenações do então candidato condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. Desde a ditadura militar não se via tão absurdo grau de violação ao direito à liberdade de imprensa como agora. Mas, como já dito anteriormente, de tédio não padecemos, pois em julgamento público do TSE, a ministra Carmem Lúcia chegou ao descalabro de dizer:  

“não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento no Brasil, este é um caso específico e que estamos na iminência de ter o segundo turno das eleições… mas eu vejo isso como uma situação excepcionalíssima e que se, de alguma forma, senhor presidente, especialmente o senhor ministro relator que é o corregedor,  isto se comprovar, desbordando pra uma censura, deve ser imediatamente reformulada essa decisão no sentido de se acatar integralmente a constituição e a garantia da liberdade e de ausência de qualquer tipo de censura"

O que intrigou as pessoas de bom senso foi ouvir a ministra dizer que não se podia permitir a volta da censura, mas por estar na iminência de uma eleição tal ato se justificaria. Como assim? O fato de haver uma eleição autorizaria a censura novamente? Por que todos os atos violadores da lei e da constituição ocorrem em relação a pessoas de um só lado do espectro político? Estado de exceção? Parcialidade?

Socorro, Rui Barbosa!!!

Até o The New York Times publicou matéria em 21 de outubro de 2022, mostrando-se alarmado com o poder que um só julgador tem pra decidir o que é verdade e o que é mentira na rede social e na imprensa virtual. Assim, a cada passo que se dá, essa nova e excêntrica forma de se manipular e violar a constituição vai degradando nosso Estado de Direito e nossa democracia. Mas, fiquemos em paz, é tudo pela democracia, tá bom?

Só pra encerrarmos essa compilação de relatos grotescos que atacam de morte nossa constituição e democracia, não podemos deixar de citar a perseguição política feita a um deputado federal (Daniel Silveira). O referido deputado, achando que realmente havia alguma validade na constituição federal com relação à proteção dada aos parlamentares, proferiu diversas palavras ofensivas sobre ministros do STF. Caso estivéssemos de fato numa democracia e Estado de Direito, como gostam de pronunciar em palestras em Portugal e EUA, o deputado seria processado nos termos da lei e do regimento interno da Câmara dos Deputados Federais. Mas, pela democracia... vale prender um deputado sem o devido processo legal!

Que linda essa “demôniocracia”!

Porém, a tal democracia que tanto se declama com pompa e chiado na pronúncia, não existe de fato, apenas na teoria. O princípio do devido processo legal e da inocência foram atropelados por tais violações constitucionais. Jamais iremos endossar as ofensas feitas pelo deputado aos ministros, porém, se não gostam ou não concordam com a imunidade parlamentar, então que se proponha uma emenda à constituição ou, na impossibilidade desta, proponham uma nova carta magna pro país. Porém, parece que perseguir é bem mais prático.

O que não se pode é usar a constituição como se fosse um alfaiate, dando uma decisão na medida do gosto do cliente quando são amigos e promovendo perseguição quando são desafetos políticos.

Caso alguém ache que se trata de mera opinião sobre o Estado de Exceção pelo qual passa o país, ouçam juristas consagrados e altamente qualificados como Ives Gandra Martins ou o ex-ministro do STF, Marco Aurélio Mello, dentre tantos outros. O que nos resta como jornalistas e juristas é se manter vigilantes e atuantes pra não recuarmos diante das novas formas de ditadura do século 21. Lutemos pela democracia e pelo Estado de Direito.

Marcelo Vasconcelo
Advogado, jornalista credenciado no CRP, articulista de portais, autor independente, membro da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da 3° subseção da OAB/SP, autor de trabalhos sobre Nietzsche.

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