De início, imperioso destacar que o direito falimentar se molda à realidade e à essência social de sua contemporaneidade, por essa razão nos deparamos com 10 (dez) grandes normas que legislam sobre o tema no país no decorrer de mais de 500 anos1. A figura do devedor que faliu seu empreendimento não era, e até hoje não é, bem-vista pela sociedade em geral.
Contudo, consoante se extrai dos princípios norteadores da lei 11.101/05, a preservação da empresa e da atividade empresarial do devedor é pauta central da nova legislação, ampliada por força da lei 14.112/20. Destaque-se que as duas principais normas, no que tange ao sistema de insolvência no Brasil, podem ser observadas sob o estudo do decreto-lei 7.661/45 e da lei 11.101/05, o primeiro, sem dúvidas versando em sua preeminência no âmbito da falência, e a segunda, sem dúvidas trazendo à tona a necessidade de regulamentação de um novo sistema, introduzido por meio da Recuperação Judicial e Extrajudicial, oriundos da legislação norte-americana2.
Em apertada síntese, considerando que o escopo do presente artigo é a questão falimentar, podemos entender a Recuperação Judicial como um mecanismo análogo, em determinados aspectos, à antiga concordata preventiva, que busca estender ao devedor em crise a possibilidade de uma negociação coletiva com os credores sob um patamar de igualdade, com maior margem para negociação, trata-se de um fôlego à empresa quando do deferimento do pedido de Recuperação Judicial3, que suspende as ações e execuções em face da devedora consoante inteligência do inciso II do art. 6º da lei 11.101/054.
Já no que tange à Recuperação Extrajudicial, trata-se de um procedimento cujo aspecto principal é a celeridade, a legislação conduz o mecanismo de tal sorte que o devedor apresenta uma proposta de homologação de plano de recuperação extrajudicial, contendo a anuência e adesão dos credores concursais submetidos ao feito, de forma prática e simples, evitando maiores intervenções do Poder Judiciário, convocação de assembleia, possível nomeação de Administrador Judicial, dentre outras medidas que trazem custos procedimentais5.
Neste norte, podemos identificar que o direito falimentar, ou direito de empresa, representa alternativas ao insolvente/devedor, seja para prevenir crises, recuperar empresas em crise, liquidar empresas não recuperáveis ou, por fim, punir os sujeitos culpados pela crise, neste último caso, é claro, somente se comprovado eventual crime falimentar previsto em lei6.
Nas palavras do ilustre Marlon Tomazette:
“A falência, a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial são institutos gerais do direito das empresas em crise. A generalidade desses institutos significa uma aplicação mais ampla do que a dos regimes especiais (intervenção, regime de administração especial temporária e liquidação extrajudicial), mas não uma aplicação indiscriminada”7.
Certo é que os citados procedimentos possuem suas características específicas que, por si só, possibilitam o proveitoso debate sobre seus mecanismos, todavia, deve-se manter o foco do presente esboço, que é a alteração da visão do devedor falido e a promessa do fresh start, introduzido pela lei 14.112/20.
Vale rememorar, desde já, que as alterações oriundas da lei 14.112/20 possuem viés extraído do Bankrupcy Code, e o chamado fresh start no sistema de insolvência brasileiro decorre da também citada seção 727 daquele código, que dispõe acerca do discharge, que nada mais é do que a ideologia de reinserção daquele que fracassou por motivo não suspeito ou comprovadamente criminoso no mercado e ambiente empresarial, lhe possibilitando uma nova tentativa.8
Estabelecida a origem do indigitado mecanismo de fresh start, passa-se à análise de sua inserção no sistema de insolvência do Brasil, irrefutavelmente proveniente das alterações no texto normativo dos arts. 75, bem como incisos dos arts. 83 e 158 da lei 11.101/05, acrescidos por meio da lei 14.112/209.
O fresh start no sistema brasileiro nada mais é do que uma representação do sistema americano dedicada à reinserção no mercado do empresário que faliu de boa-fé. As razões que levam o empreendedor à falência podem ser várias, desde pura e simplesmente econômicas (crise da COVID-19, por exemplo), ou muito mais complexas, cuja análise será realizada no tópico abaixo, ao tratar de psicologia financeira.
Dito isso, é possível evidenciar o fresh start na lei 11.101/05 mediante análise do art. 75 (nova redação), que aponta um princípio conhecido no âmbito empresarial, e disposto na legislação por meio do art. 47 desta mesma lei, qual seja, a preservação da empresa. A nova redação do art. 75 busca dar celeridade ao trâmite falimentar, a liquidação rápida da empresa inviável, a preservação e otimização produtiva dos bens, bem como fomentar o empreendedorismo10.
Indo além, na nova classificação dos créditos consoante disposto no art. 83 da LRF, percebe-se que o legislador buscou, também ali, por meio da realocação de créditos anteriormente privilegiados, trazer à diligente reinserção do empreendedor no mercado11.
Finalmente, talvez tão importante quanto os princípios intrínsecos ao art.75 da LRF, devemos considerar as modificações nos incisos do art.158 deste diploma legal, que trata da extinção das obrigações do falido. Veja que não mais o falido necessariamente precisa esperar o decurso do prazo de 5 anos para ver suas obrigações extintas, o prazo agora é de 3 anos, consoante inciso V do art. 158 da LRF12.
Outro fator que foi reconsiderado pela nova redação da legislação foi a possibilidade de extinção das obrigações do falido após o pagamento de 25% dos créditos quirografários, que antes era de 50% do valor devido. Destaca-se, também, que o legislador previu, na norma inserta no art. 114-A da LRF, a possibilidade de extinção das obrigações do falido, nas hipóteses em que não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo, mediante a figura da falência frustrada.
Neste ensejo, as palavras do ilustre professor e outrora magistrado Marcelo Sacramone são indispensáveis ao entendimento do fresh start mediante extinção das obrigações do falido, vejamos:
“A extinção das obrigações, ainda que não satisfeitas, permite que o falido possa retomar a desenvolver suas atividades, contraindo novos débitos e créditos. É o chamado fresh start, ou recomeço, e procura incentivar o empresário que teve insucesso a continuar arriscando e empreendendo”13.
Correlacionando o que já fora estabelecido até o presente momento, pode-se identificar que a evolução legislativa se deu no sentido de tentar estimular o retorno do empresário à atividade, mediante uma legislação menos punitiva e mais estimulante àqueles que não tiveram sucesso em suas respectivas atividades14.
A figura do devedor ou insolvente criminoso agora é vista sob outro prisma, não mais se presume que o falido é aquele que paga mal, ou que geriu mal seu negócio, deve-se considerar os infortúnios inerentes à própria atividade empresária, o risco de todo empreendimento. Neste sentido, a legislação tratou em sua reforma de criar mecanismos que auxiliem este tipo de devedor, por meio das benesses elucidadas.
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1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência: Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. 3. ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: Almedina, 2018 p. 96.
2 CUEVA, Ricardo Villas Boas. Reforma da Lei nº 11.101/2005: A importância de instrumentos simplificados de negociação prévia. In: SANTOS, Assione; FLORENTIN, Luis Miguel Roa; SALMAZO, Rodolfo (Orgs.); WAISBERG, Ivo; FILHO, Manoel Justino Bezerra (Coords.). Transformações no Direito de Insolvência: Estudos sob a Perspectiva da Reforma da Lei 11.101/2005. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 309.
3 COSTA, Daniel Carnio; MELLO, Alexandre Nasser de. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2022, p. 47-48.
4 BRASIL, Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet. Disponível em: . Acesso em: 27/08/2022.
5 MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: falência e recuperação de empresas. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 278.
6 OMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de empresas. Volume 3. 10. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 38.
7 TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Falência e recuperação de empresas. Volume 3. 10. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 39.
8 Chapter 7 - Bankruptcy Basics. The Chapter 7 Discharge. Acesso em: 27 de ago 2022.
9 BRASIL, Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2005/Lei/l11101.htm. Acesso em: 27/08/2022.
10 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. 16 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 367.
11 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005: comentada artigo por artigo. 16 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 389-391.
12 BRASIL, Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Legislação Federal. Sítio eletrônico internet. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2005/Lei/l11101.htm. Acesso em: 27/08/2022.
13 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 614.
14 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 612-615.