No art. 783, o Código de Processo Civil fica disponibilizado ao credor em posse de títulos de crédito que corroboram com a existência de dívida líquida, certa e exigível, a propositura de ação de execução, que possibilita ao credor, caso o ajuizamento da demanda não tenha o poder de trazer o devedor para compor amigavelmente, ou ainda na hipótese de não localização de bens suficientes à satisfação da dívida, utilizando-se de sistemas conveniados disponíveis ao Judiciário para fazê-lo, a consequente expedição de certidão de execução frustrada, como previsto no art. 94 da lei 11.101/05.
Entretanto, alguns credores, cientes da possibilidade de uma abordagem mais agressiva, tem-se utilizado do pedido de falência indevidamente como ferramenta de cobrança, antes de intentar qualquer demanda judicial de cobrança ou executória que vise o recebimento de seu crédito.
O art. 94 da lei 11.101/05, in verbis, elenca os requisitos para a declaração de falência da sociedade empresária, dentre eles o não pagamento de dívida materializada e protestada, cuja soma ultrapasse 40 (quarenta) salários-mínimos vigentes quando da realização do pedido de falência, o que, se calculados para o ano de 2022, alcançaria o montante de R$ 48.480,00 (quarenta e oito mil e quatrocentos e oito reais).
Art. 94. “Será decretada a falência do devedor que:
I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência;
II – executado por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal; (...)
Todavia, ainda que a Lei expressamente possibilite o pedido de falência atendidos os requisitos acima, se popularizada a medida como mero caráter coercitivo de cobrança, esta violaria o princípio basilar da Lei de Recuperações Judiciais e Falências, qual seja, o Princípio da Preservação da Empresa.
Isto porque, quando o pedido de falência é publicamente disseminado estre as instituições financeiras, Fundos e ao mercado na qual está inserida a empresa inadimplente, as linhas de créditos que lhes são disponibilizadas diminuem drasticamente ou simplesmente deixam de existir, tornando a sobrevivência da empresa difícil, senão impossível, o que compromete o crédito do próprio credor que ofereceu o pedido de falência, e que consequentemente terá a possibilidade de satisfação de seu crédito drasticamente reduzido.
Assim, quando cientificada da existência de pedido de falência contra si, não resta medida outra a empresa, senão tentar efetuar o depósito elisivo requerido pelo autor do pedido de falência que, a depender da quantia, necessitará de crédito junto a instituições financeiras para fazê-lo.
Logo, o que temos é o interesse de apenas um credor contra toda uma coletividade de credores desta mesma empresa, que frise-se, a priori está enfrentando apenas um problema de impontualidade do pagamento.
E nesse sentido, a utilização do pedido de falência como ferramenta de cobrança individual do credor é contrária às diretrizes propostas pela lei 11.101/05, na medida em que o pedido de falência, não é senão, o meio de execução coletiva de créditos.
Assim leciona o Professor Fábio UIhoa Coelho:
“(...) Mas, regra geral, é o credor que tem mais interesse na instauração do processo de execução coletiva. Até porque o pedido de falência tem se revelado um eficaz instrumento de cobrança. A despeito do que afirma a maioria da doutrina e da jurisprudência, fato é que o credor, ao ajuizar o pedido de falência, em função da impontualidade do devedor, quer mais o recebimento de seu crédito e menos - consideravelmente menos - a falência do devedor. A forma de entender esta ação judicial, esta etapa do processo falimentar, que melhor se ajusta à realidade, é, portanto, considerando-a uma espécie de cobrança judicial. Contudo, esta não é a forma que corresponde àquilo que o legislador deixou assente no texto legal. O credor, segundo o que imagina a lei, teria o interesse na instauração do processo de execução concursal. Este seria o seu objetivo, que o devedor, cumprindo em juízo a obrigação devida, acabaria por frustrada”.1(grifos nossos)
Pois bem.
Em igual sentido é o julgado abaixo selecionado pelas Câmaras de Direito Privado e Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo e compiladas pelo Grupo de Apoio ao Direito Privado:
“APELAÇÃO – Pedido de falência – Sentença de improcedência – Juízo de origem que considerou que o pedido foi utilizado como instrumento de coação para a cobrança da dívida e que deve prevalecer o princípio da preservação da empresa, especialmente com a crise advinda da pandemia – Insurgência da autora - Cabimento - Inaplicabilidade do art. 60 da lei 11.101/05, que trata apenas de hipóteses que envolvem plano de recuperação judicial e alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o que não é o caso dos autos, não se confundindo com o princípio da preservação da empresa – Faculdade do credor de ajuizamento de execução singular ou coletiva (pedido de falência), sendo desnecessária a demonstração de insolvência do devedor – Inteligência das Súmulas 42 e 43 do E. TJSP – Situação excepcional decorrente de pandemia que assola o mundo que não pode servir de pretexto para afastamento dos requisitos legais para decretação de falência, ante o inadimplemento dos compromissos assumidos pela devedora, e uma vez preenchidos os requisitos da lei – Inaplicabilidade da suposta elevação do valor mínimo a embasar o pedido de falência para R$100.000,00 (Projeto de lei 1.397/20) – Projeto de lei que ainda não teve sua aprovação e, consequentemente, não há que se falar em seus possíveis efeitos, prevalecendo a disposição legal de 40 salários-mínimos (art. 94, inciso I, da lei 11.101/05) – Projeto que pretende apenas a alteração, em caráter transitório, do regime jurídico dos institutos da recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência – Isolamento social e restrições das atividades comerciais impostas pelo Governo do Estado de São Paulo que já foram flexibilizados, com o retorno gradativo do comércio – Regularidade formal do pedido de falência, com comprovada impontualidade e higidez do protesto da duplicata, nos termos da Súmula 52 deste E. Tribunal – Sentença reformada para o fim de decretar a falência da ré – Determinação de que as providências previstas no art. 99 da lei 11.101/05 sejam tomadas pelo douto Juízo "a quo" – Descabimento quanto à pretensão de inversão do ônus sucumbencial, uma vez que a sentença de quebra não fixa verba de sucumbência. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.” (Apelação Cível nº 1001813-46.2021.8.26.0572, Rel. Jorge Tosta, j. 15/08/22).
Na ementa acima colacionada verificamos que em primeira instância o pedido de falência foi julgado improcedente, pois pela convicção do magistrado “restou claro que o procedimento previsto na Lei de Falências foi utilizado como instrumento de coação para a cobrança de dívida em face da empresa devedora, atentando contra a intenção do legislador, de tornar o pedido de falência a última ratio.2. Já o colegiado, entendeu de forma diversa, reconhecendo a possibilidade de utilização da via como meio de cobrança disponível.
Confere-se ainda o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do RESP nº 1.433.652 – RJ, referente a pedido de falência promovido em face da gigante empresa varejista “Lojas Americanas”.3 Vejamos:
DIREITO EMPRESARIAL. FALÊNCIA. IMPONTUALIDADE INJUSTIFICADA. ART. 94, INCISO I, DA LEI 11.101/05. INSOLVÊNCIA ECONÔMICA. DEMONSTRAÇÃO. DESNECESSIDADE. PARÂMETRO: INSOLVÊNCIA JURÍDICA. DEPÓSITO ELISIVO. EXTINÇÃO DO FEITO. DESCABIMENTO. ATALHAMENTO DAS VIAS ORDINÁRIAS PELO PROCESSO DE FALÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA.
1. Os dois sistemas de execução por concurso universal existentes no direito pátrio - insolvência civil e falência -, entre outras diferenças, distanciam-se um do outro no tocante à concepção do que seja estado de insolvência, necessário em ambos. O sistema falimentar, ao contrário da insolvência civil (art. 748 do CPC), não tem alicerce na insolvência econômica.
2. O pressuposto para a instauração de processo de falência é a insolvência jurídica, que é caracterizada a partir de situações objetivamente apontadas pelo ordenamento jurídico. No caso do direito brasileiro, caracteriza a insolvência jurídica, nos termos do art. 94 da lei 11.101/05, a impontualidade injustificada (inciso I), execução frustrada (inciso II) e a prática de atos de falência (inciso III).
3. Com efeito, para o propósito buscado no presente recurso - que é a extinção do feito sem resolução de mérito -, é de todo irrelevante a argumentação da recorrente, no sentido de ser uma das maiores empresas do ramo e de ter notória solidez financeira. Há uma presunção legal de insolvência que beneficia o credor, cabendo ao devedor elidir tal presunção no curso da ação, e não ao devedor fazer prova do estado de insolvência, que é caracterizado ex lege. 4. O depósito elisivo da falência (art. 98, parágrafo único, da lei 11.101/05), por óbvio, não é fato que autoriza o fim do processo. Elide-se o estado de insolvência presumida, de modo que a decretação da falência fica afastada, mas o processo converte-se em verdadeiro rito de cobrança, pois remanescem as questões alusivas à existência e exigibilidade da dívida cobrada.
5. No sistema inaugurado pela lei 11.101/05, os pedidos de falência por impontualidade de dívidas aquém do piso de 40 (quarenta) salários mínimos são legalmente considerados abusivos, e a própria lei encarrega-se de embaraçar o atalhamento processual, pois elevou tal requisito à condição de procedibilidade da falência (art. 94, inciso I). Porém, superando-se esse valor, a ponderação legal já foi realizada segundo a ótica e prudência do legislador.
6. Assim, tendo o pedido de falência sido aparelhado em impontualidade injustificada de títulos que superam o piso previsto na lei (art. 94, I, lei 11.101/05), por absoluta presunção legal, fica afastada a alegação de atalhamento do processo de execução/cobrança pela via falimentar. Não cabe ao Judiciário, nesses casos, obstar pedidos de falência que observaram os critérios estabelecidos pela lei, a partir dos quais o legislador separou as situações já de longa data conhecidas, de uso controlado e abusivo da via falimentar.
7. Recurso especial não provido.
Mas em que pese os entendimentos acima mencionados, a utilização desmedida do pedido de falência viola, expressamente, o princípio basilar do instituto da falência, qual seja, o de retirar do mercado empresas que sejam evidentemente inviáveis, econômica e socialmente.
Isso pode ser resumido pois busca-se com a falência da empresa devedora afastar do mercado o mau gestor do negócio, e a rápida liquidação dos ativos da empresa falida, evitando assim maiores prejuízos ao coletivo de credores e consequentemente maior aproveitamento dos bens do ativo que passariam a gerar recursos no mercado na gestão de outrem.
Neste sentido, leciona o Professor Marcelo Barbosa Sacramone:
“(...)Ainda que a falência acarrete a interrupção do desenvolvimento da atividade, o princípio da preservação da empresa, não apenas como estabelecimento empresarial, mas também no perfil funcional, como atividade empresarial, deverá nortear o desenvolvimento do processo falimentar.
(,,,)
Decerto que a falência acarreta o afastamento do empresário devedor da condução da sua atividade empresarial, a qual será cessada, com a arrecadação do conjunto de ativos pelo administrador judicial. Excepcionalmente apenas, nos casos em que a interrupção da atividade possa aumentar o passivo e reduzir o valor do ativo, poderá o Juiz Universal autorizar a continuação provisória da atividade do falido. A medida excepcional de não interrupção da atividade, entretanto expressamente chamada provisória, ocorrerá até que os ativos possam ser liquidados, o que confirma a regra geral de interrupção.
Com o afastamento do devedor, procura-se assegurar a conservação dos bens e otimizar a sua utilização produtiva para liquidação. A alienação em conjunto da maior quantidade dos bens produtivos, por outro lado, permitirá que o adquirente continue a desenvolver a atividade por meio do estabelecimento empresarial adquirido, a partir de então com maior eficiência, o que asseguraria a preservação da atividade empresarial e garantiria a função social.
Por seu turno, a liquidação célere das empresas inviáveis, como inserido pela alteração legislativa expressamente, assegurará uma alocação mais eficiente dos recursos escassos por quem as adquirir, o que assegurará sua melhor utilização e maior aproveitamento.
Nesses termos, o próprio parecer do Senador Ramez Tebet esclarece este intuito da legislação: “assim, é possível preservar uma empresa, ainda que haja a falência, desde que se logre aliená-la a outro empresário ou sociedade que continue a sua atividade em bases eficientes.4”.
Logo, é nítido que a falência é meio eficaz também à manutenção do mercado e do empreendedorismo, todavia, se o pedido não possui qualquer destes interesses, ou seja, o de retirar do mercado a empresa inviável, buscando apenas e tão somente benefício próprio, haverá de se estabelecer medidas punitivas pela sua má utilização, haja vista que, conforme já mencionado, o pedido de falência poderá impactar diretamente na possibilidade de reestruturação da empresa devedora.
Destarte, o que podemos esperar é que o credor se paute de cautela quando diante da possibilidade de propor ação de execução (que tem por costume demandar tempo e esforços para, eventualmente, satisfazer a dívida perseguida) ou da propositura de ação de falência, que tem enorme peso coercitivo, mas que, se acolhido poderá demandar maior tempo para alcançar o seu objetivo e poderá impactar nos créditos de demais envolvidos com a empresa falida, seja de cunho comercial ou laboral, bem como do próprio recebimento.
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1 Coelho, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa/Fabio Ulhoa Coelho – 28ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2016. pg. 238.
2 Processo nº 1001813-46.2021.8.26.0572 – sentença de fls. 58/61.
3 https://victorhugofarias.jusbrasil.com.br/artigos/443730719/da-utilizacao-da-via-falimentar-como-sucedanea-da-acao-de-cobranca-segundo-entendimento-do-stj . Acesso em 21/10/2022.
4 Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 3º edição – São Paulo: Saraivajur, 2022. pg. 416/417.