Introdução
O art. 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DHDU) propõe que “Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.”
Antônio Candido entende que o pressuposto para se pensar direitos humanos é reconhecer que aquilo que se considera indispensável para si é também indispensável para o próximo.
Para o autor, no entanto, um fenômeno que ocorre na sociedade quando se discute o tema é que as pessoas:
afirmam que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde, coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoievski ou ouvir os quartetos de Beethoven? Apesar das boas intenções no outro setor, talvez isto não lhes passe pela cabeça. E não por mal, mas somente porque quando arrolam os seus direitos não estendem todos eles ao semelhante. Ora, o esforço para incluir o semelhante no mesmo elenco de bens que reivindicamos está na base da reflexão sobre os direitos humanos.
Para desenvolver o debate sobre a literatura como um direito humano, segundo Cândido, devemos adotar alguns critérios tanto do ponto de vista individual, quanto do ponto de vista social.
Do ponto de vista individual, é importante a consciência de cada cidadão a respeito dos seus direitos. É indispensável que cada indivíduo, parte da sociedade brasileira, saiba desde a infância que todos, inclusive os mais pobres, têm direito aos bens materiais e à igualdade de tratamento. Trata-se de direito constitucionalmente assegurado, e não de caridade.
Como ressalta Conceição Evaristo, as classes populares devem se apossar da literatura e da escrita como um direito do cidadão e da cidadã.
Do ponto de vista social, é preciso haver leis específicas garantindo às pessoas os meios para que tais direitos sejam efetivados.
2 – A Literatura como forma de reivindicação de direitos.
Retomando a questão do ponto de vista individual, em relação ao processo de criação da consciência dos cidadãos a respeito dos seus direitos, é importante lembrar a concepção de Paulo Freire, segundo a qual a revolução tem um caráter eminentemente pedagógico.
Para o autor, crer no povo é condição prévia e indispensável à mudança. O autor crê que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão.
De fato, a tomada de consciência dos cidadãos sobre seus direitos é libertação de homens e não de “coisas”. Porém, se não se trata de autolibertação – ninguém se liberta sozinho, da mesma maneira não se trata da libertação de uns feita por outros.
Nesse contexto, Freire defende que deve haver um permanente esforço de reflexão do homem sobre suas condições concretas. Assim, ação e reflexão devem ser pensadas como unidade que não deve ser dicotomizada.
Nesse campo, a literatura é ferramenta importante de conscientização e de reivindicação de direitos.
Nesse sentido se manifesta Antônio Cândido
A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”
Ao longo da história, diversas obras literárias retrataram o tema da pobreza e da opressão, tendo como exemplo o clássico Os Miseráveis, de Victor Hugo.
Atualmente, grandes escritores negros utilizam a sua escrita como um recurso de conscientização, de inclusão e representatividade, e de luta contra o racismo estrutural existente na sociedade brasileira.
Conceição Evaristo, representante dessa literatura, cunhou o conceito de escrevivência, a vida escrita na vivência de cada indivíduo, bem como a escrita que demonstra a vivência de mundo do indivíduo. Nas suas próprias palavras:
Na verdade, quando eu penso em escrevivência, penso também em um histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras escravizadas que tinham de contar suas histórias para a casa-grande. E a escrevivência, não, a escrevivência é um caminho inverso, é um caminho que borra essa imagem do passado, porque é um caminho já trilhado por uma autoria negra, de mulheres principalmente. Isso não impede que outras pessoas também, de outras realidades, de outros grupos sociais e de outros campos para além da literatura experimentem a escrevivência. Mas ele é muito fundamentado nessa autoria de mulheres negras, que já são donas da escrita, borrando essa imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história para ninar os da casa-grande.
Para Conceição Evaristo, na medida que uma obra sai de uma criação individual e atinge, convoca o coletivo, esse coletivo fica sensibilizado, o sujeito da leitura se sente convocado por um texto escrito. É, então, um lugar de encontro, de tomada de consciência.
Como ressalta Antônio Cândido: “a preocupação com o que hoje chamamos direitos humanos pode dar à literatura uma força insuspeitada. E reciprocamente, que a literatura pode incutir em cada um de nós o sentimento de urgência de tais problemas”.
A linguista Fabiane Pereira, explica que a literatura estimula a imaginação, a criticidade e a humanização, tornando as pessoas mais participativas na sociedade e com potencialidade para compreender o outro.
Através do caráter fabuloso, a literatura institui-se como meio de experiência e vivência, como instrumento de humanização e como transfiguração da vida, pois é produto da própria sociedade, deste modo, pode ser vista como um direito indispensável ao homem, pois o conduz ao autoconhecimento e ao entendimento do outro, assim como permite que seus sonhos sejam concretizados por meio das palavras.
Inegável, portanto, que a literatura - manifestação intelectual e artística protegida pela garantia constitucional à livre expressão (CF, art. 5º, IX), funciona, nas palavras de Cândido, como instrumento consciente de desmascaramento, focalizando as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles.
É, portanto, um bem que se reveste de caráter essencial ao ser humano, bem como verdadeiro meio de reivindicação de direitos que possibilita a transformação social por meio da consciência, da reflexão, da empatia e da alteridade.
__________________
CANDIDO, Antonio. 2004. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades. p. 169-191.
Conceição Evaristo – “A escrevivência serve também para as pessoas pensarem”. 9 de nov 2020. Disponível em: https://www.itausocial.org.br/noticias/conceicao-evaristo-a-escrevivencia-serve-tambem-para-as-pessoas-pensarem/. Acesso em: 09 set. 2022.
Conheça Conceição Evaristo e o conceito Escrevivência. Disponível em: https://blog.mackenzie.br/vestibular/materias-vestibular/conheca-conceicao-evaristo-e-seu-conceito-de-escrevivencia/. Acesso em: 09 set. 2022.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
PEREIRA, Fabiane Aparecida. O direito à literatura: “sonho acordado” das civilizações. Revista Primeira Escrita, Aquidauana, n. 3, p. 175-189, dez. 2016.