Migalhas de Peso

A vulnerabilidade econômica e os meios de entrada na criminalidade

O presente artigo busca analisar o punitivismo penal contra pobres e negros, demonstrando que há, de fato, uma predisposição do Poder Estatal em criminalizar desproporcionalmente tal população.

17/11/2022

O sistema da seletividade penal amplamente difundido no Brasil, pauta-se em condenar negros e pobres das formas mais desproporcionais, seletivas e incabíveis possíveis. Tal afirmativa demonstra um ciclo vicioso, onde consta o negro como denominador comum.

Ora, fronte ao contexto histórico dos povos afrodescendentes no país, em virtude de um período imperial de escravidão, pode se afirmar que tal etnia compõe a maioria da população pobre. Assim, de acordo com a pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça Brasil” do IBGE, em 2018, 75,2% da população pobre era negra ou parda. (2018, p. 04).

Desta maneira, todo o descaso que o Estado tem com a população pobre e negra, de fato tem o efeito de gerar uma maior criminalidade dentreessas pessoas. Assim, a concessão de serviços públicos de qualidade duvidosa para esses indivíduos descaracterizam a cidadania da população pobre e negra, gerando entre eles, um sentimento de abandono, que efetivamente está materializado no cotidiano.

Tal afirmativa é corroborada com a tese defendida pelos criminalistas Diego Palhares Saul e Sergio Chastinet Duarte Guimarães:

“A ausência de políticas públicas sociais e econômicas em prol das classes desfavorecidas no Brasil implica em um perverso ciclo vicioso de causa e efeito, entre o abandono estatal e a seletividade do sistema penal como forma de controle social e repressão das camadas desfavorecidas da sociedade. Assim, a ausência de investimentos governamentais em educação, profissionalização, empregos e saúde implicam em aumento exponencial nas taxas de encarceramento de uma população cada vez mais pobre, sem instrução, nem perspectiva de trabalho digno. (SAUL; GUIMARÃES, 2018, p.67)”

Deste modo, no decurso do processo de criminalização da pobreza, temos o papel primordial do Ministério Público. Ora, o Ministério Público, órgão que, a princípiotem o propósito de defender os interesses da sociedade vem, paulatinamente, adotando decisões que demonstram o contrário de sua função. Com efeito, em 2021, Rosângela Sibele de Almeida Melo fora denunciada pelo Ministério Público em virtude do furto de dois macarrões instantâneos, dois refrigerantes e um sachê de suco em pó.

No caso em tela, a autora do furto, mãe de cinco filhos e em condições de rua, alegava estar com fome. Assim, representada pela Defensoria Pública de São Paulo, não obstante o nítido enquadramento em furto famélico – causa excludente de ilicitude pelo estado de necessidade – após a audiência de custódia, o Ministério Públicou conseguiu converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, como prevê os autos do Habeas Corpus n° 699572/SP:

“A conduta da autuada é de acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar o crime patrimonial. Mesmo levando-se em conta os efeitos da crise sanitária, a medida é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a indicada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país. O momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderespúblicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de ‘delinquir’. (BRASIL, Habeas Corpus n° 699.572/SP, 2021)”.

Note-se que o termo “delinquente” é citado até mesmo em um contexto onde o acusado furta em virtude do estado de necessidade, em uma circunstância fatídica que agravou a pobreza e a fome no país: a pandemia da Covid-19. Assim, a referida decisão demonstra simbolicamente a criminalização da pobreza em sua forma mais crua, que, sob o mesmo entendimento, disserta o criminalista Diego Palhares:

“O Poder Judiciário muitas vezes contribuiu, legitimando prisões injustas e desproporcionais, mediante a utilização de discursos genéricos, conservadores e punitivistas. Além disso, assume objetivos de segurança pública que não lhe é devido, de forma que cria dificuldades ao restabelecimento do estado de liberdade de tal público. (SAUL et al, 2018, p. 69)”.

Ademais, como resta supramencionado, a tese controversa da juíza que proferiu a decisão é a de que a mulher estava sendo presa pois o poder público e o Poder Judiciário têm o dever de proteger a sociedade. Nesse diapasão, em diversos casos de prisões de indivíduos de baixa renda nota-se que tal discurso de “proteção à ordem social”sempre  se faz presente. Assim, nas palavras de Jessé Souza, o referido discurso expressa o que há de mais acobertado na sociedade:

“Os discursos de ‘lei e ordem’ e do ‘combate à criminalidade’ sãos as formas típicas do discurso racista que não pode dizer seu nome. Ele pressupõe necessariamente a estigmatização anterior do negro como delinquente e criminoso. (SOUZA, 2021, p.278)”.

Contudo, o que bem sabemos é que a referida “proteção à sociedade” mencionada pela juíza  não abarca a população pobre e marginalizada, a exemplo de Rosângela Sibele. Pois se de fato o Poder Público protegesse integralmente a sociedade, não haveriam motivos para uma mãe de cinco filhos precisar furtar alimentos para sobreviver e ainda ser condenada pela sua conduta de extrema necessidade.

Assim, o caso em questão chegou ao Superior Tribunal de Justiça. De forma totalmente assustadora, pois mesmo havendo o nítido enquadramento em estado de necessidade, o Ministério Público ainda tentou recorrer do pedido de habeas corpus impetrado pela Defensoria em face da autora, ato contínuo, o referido órgão de justiça concedeu a liberdade, alegando nos autos do HC n° 699572/SP, ipssis verbis:

“Essa é a hipótese dos autos. Cuida-se de furto simples de dois refrigerantes, um refresco em pó e dois pacotes de macarrão instantâneo, bens avaliados em R$ 21,69, menos de 2% do salário mínimo, subtraídos, segundo a paciente, para saciar a fome, por estar desempregada e morando nas ruas há mais de dez anos. (BRASIL, Habeas Corpus 699.572/SP, 2021)”.

Deste modo, o ministro Ilan Paciornik trancou o inquérito policial da autora e concedeu o habeas corpus em virtude do estado de necessidade e de lesão ínfima ao bem jurídico.

No presente caso, o que se torna notável é que, até mesmo um órgão instituído com o objetivo de proteger a sociedade e ser, subsidiariamente, guardião da lei, tal como o Ministério Público, toma decisões gravosas contra a população pobre. Afinal, é uma aberração jurídica tentar recorrer de uma decisão que põe em liberdade uma mãe pobre que furtou para alimentar sua família.

Ora, nessa linha corrida dos procedimentos processuais penais, resta inaudível  o momento em que o Ministério Público deixou de enxergar o que conhecemos por ‘furto famélico’, isto é, a subtração de produtos decorrente de um anterior estado de necessidade. Surpreende mais ainda o fato de que a conduta supra exposta não é considerado um caso isolado  do Ministério Público, pode-se dizer que a criminalização da pobreza no país ocorre diariamente e é tão difundida no país quanto o racismo estrutural, uma vez que esta criminalização deriva dele.

Tal criminalização da pobreza etiqueta o negro e pobre como marginal, em consequência amedronta toda a sociedade, que passa a enxergar o indivíduo como um verdadeiro monstro, e a partir disso o Poder Público consegue agir acima desses indivíduos, como bem entende Diego Palhares Saul. 

“Diante desse discurso de medo injetado na população, o Estado legitima seu poder punitivo, com o escopo de eliminar a falsa sensação de perigo, caracterizada pelo combate àqueles inimigos públicos. Trata-se de verdadeira manobra política para que o poder punitivo seja exercido em prol dos interesses da classe dominante sem nenhum limite e contra quem se considera indesejável. (SAUL, 2018, p.72)”.

Deste modo, além do abandono estatal, a população pobre, sendo integrante da base da pirâmide social, sofre também com a estigmatização de sua existência, pois todos os outros constituintes superiores da referida pirâmide os classificam como delinquentes, conforme preceitua o sociólogo Jessé Souza:

“Como o negro e o excluído ocupam o degrau último na classificação social, todas as classes “acima” deles podem se distinguir socialmente e auferir uma sensação de superioridade, seja a partir do discurso fajuto do combate à corrupção, seja a partir da construção artificial do estereótipo do  delinquente. (SOUZA, 2021, p. 273)”

Assim, a respeito da referida estigmatização da população, como prevê Michel Foucault em sua obra “Vigiar e Punir”, (2014, p.89) ao ser estigmatizado como um monstro, a sociedade passa a desferir sentimentos de desumanização contra o indivíduo, de modo que o criminoso passa a ser considerado um inimigo comum.

Nesse hiato, a essa punição exacerbada podemos associar à Teoria do Direito Penal do Inimigo. De acordo com a referida teoria, os criminosos devem ser punidos de forma desmoderada e com leis aplicadas exclusivamente sobre esses “inimigos”, com vistas a extinguir tal inimigo.

Assim, embora o Direito Penal do inimigo seja, em tese, um conceito aplicado aos criminosos de alta periculosidade, resta nítido que o “inimigo” atual da sociedade brasileira raramente são indivíduos de fato perigosos, podendo citar como exemplo o caso supracitado de Rosângela Sibele, onde, embora não tenha praticado um delito de potencial perigo público, ainda assim esta foi classificada como um “perigo para ordem pública”.

Sob essa perspectiva, apesar da referida teoria ser um termo recente, estudiosos afirmam que, ainda na época da escravidão, esse conceito já era observado na prática e no cotidiano da sociedade escravocrata, conforme preceitua Campello:

“Evidente que, para o Estado imperial brasileiro, o escravo não era apenas mais um infrator. Era considerado um inimigo, visto como umproblema de segurança pública nacional. [...] O medo de uma grande conflagração escrava não era uma “teoria da conspiração”, era um problema real que assombrava a aristocracia brasileira e de modo intenso os políticos que estavam ligados às atividades urbanas e rurais. (CAMPELLO, 2018, p.217)”.

Desta maneira, o medo de uma possível rebelião de escravos contra seus senhores provocou o legislador da época a criar uma série de normas com punições demasiadamente cruéis para os escravos, podendo citar como exemplo a lei 04 de 10 de junho de 1835, onde determinava as punições aos escravos que ferissem, de qualquer forma, os senhores de engenhos.

E, logicamente, partindo para os dias contemporâneos, os indivíduos classificados como inimigos, em sua maioria, são pobres e negros, não sendo muito diferente do “inimigo” da época do Brasil Império, em virtude da falta de políticas públicas para essa população, como menciona a Revista Brasileira de Segurança Pública:

“Há uma transição do tratamento social da pobreza pelo Estado, para um tratamento penal do pobre, com a promoção do encarceramento coletivo dos pobres e negros, para sua vigilância, adestramento e neutralização.(BARBOSA; COELHO, 2017, p. 171)”.

Posto isso, o racismo institucional, isto é, a prática discriminatória contra determinadas etnias dentro de órgãos – públicos ou privados - bem como a criminalização da pobreza, desde os primórdios do país, gera como consequências graves o encarceramento em massa da população pobre e negra.

Deste modo, diante dos pontos exibidos, a criminalização da pobreza demonstra o que há de mais cruel e incivilizado na essência dos poderes públicos contra a população pobre e negra, pois “considerar um homem como uma coisa: pode haver uma fórmula mais expressiva da incivilidade? No entanto, é isso que acontece, infelizmente, de nove em cada dez vezes nos processos criminais” (CARNELUTTI, 2009, p.9-10).

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IBGE. (2019). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, IBGE. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 08 out.2022.

SAUL, Diego Palhares; GUIMARÃES, Sergio Chastinet Duarte. Seletividade penal, caso Rafael Braga e a condenação fundamentada exclusivamente no testemunho policial. In. Dornelles, João Ricardo W.; Pedrinha, Roberta Duboc; Sobrinho, Sergio Francisco C. Graziano (Orgs). Seletividade do Sistema Penal: O caso Rafael Braga. Rio de Janeiro: Revan, 2018, 304 p. ISBN ISBN 9788571066229.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 699.572/SP, da 6° Turma do STJ. Brasília, 08 de outubro de 2021.

SOUZA, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021. 304 p. ISBN 9786557330104.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 42. ed. atual. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 302 p. ISBN 9788532605085.

CAMPELLO, André Barreto. Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil. 1 ed. Jundiaí, SP: Paco, 2018. 351 p. ISBN 978-85-4621-208-8. Disponível em: file:///C:/Users/Victoria/Downloads/Manual%20Jur%C3%ADdico%20da%20Escravid%C3%A3o%20-%20Imp%C3%A9rio%20do%20Brasil.pdf. Acesso em: 16 out. 2022.

BARBOSA, Kelly de Souza; COELHO, Nuno Manuel Morgadinho dos Santos. A questão étnico-racial do sonho americano: o encarceramento dos pobres e negros no Estado policial. São Paulo: Revista brasileira de segurança pública, 2017. 164-184 p.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. Carlos Eduardo Trevelin Millan. São Paulo: Editora Pilares, 2009.

Victória C. Gomes
Acadêmica de Direito da Instituição ESAMC/Santos - 10° semestre . Estagiária da Procuradoria Seccional da União/Santos - Advocacia-Geral da União. Certificada em Gestão de Conflitos e Negociação pela Escola Nacional da Administração Pública. Amplo interesse na área dos Direitos Humanos e Relações étnico-raciais.

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