O desconhecimento da Constituição pode levar ao aniquilamento da própria Constituição. Nos tempos atuais existem movimentos sociais que acusam órgãos de desrespeitar a Constituição, mas ao mesmo tempo pedem intervenção militar (!). Em suas lições preliminares do Direito o jurista e professor Miguel Reale já alertava sobre a necessária “consciência constitucional”1 sem a qual nada vale a letra da lei, pois acertadamente segundo ele o que importa na lei não é a sua letra, mas sim o seu espírito. Em outras palavras o prestígio do intérprete deve ser direcionado não à voluntas legistoris (vontade do legislador), e sim à voluntas legis/mens legis (sentido/vontade da lei) que prevaleceu com o advento do Estado Social onde os juízes deixaram de ser bouche de loi (boca da lei) e passaram a ter uma postura desvinculada do legislador2.
A reafirmação dos limites (ou balizamentos) à interpretação jurídica é tarefa urgente para subsistência de uma hermenêutica constitucional que se preze adequada e compatível com as regras e princípios constitucionais a fim de que a mens legis não seja descartada dando lugar a anseios populares inconstitucionais tais como pedidos de intervenção militar (!). E pior, pedidos estes embasados numa suposta defesa da Constituição. Essa reflexão tão óbvia parece não fazer sentido para muitos. Sendo, inclusive, rechaçada.
Eis o fenômeno do pedido de respeito à Constituição que, em si, já desrespeita à Constituição. Paradoxalmente há quem diz defendê-la, mas clama por intervenção militar. E, ironicamente, alegando que é para sua defesa. Ou pede-se intervenção militar, ou respeita-se a Constituição. Àrdua tarefa é explicar que os fins não justificam os meios. Não sob a égide da Constituição de 1988.
Embora há quem defenda uma possibilidade de interpretação constitucional pela sociedade como o renomado jurista alemão, Peter Häberle3, que criou a famosa teoria da sociedade aberta dos intérpretes, entendo que no contexto atual com pedidos preocupantes de intervenção militar é necessário questionar até onde vai essa possibilidade de interpretação pela sociedade4. Estamos diante de mais uma razão da necessária inserção de noções constitucionais nas grades curriculares. Contudo, o conhecimento da Constituição ficou reservado aos acadêmicos e operadores do Direito.
Ab initio, importa dizer categoricamente que não há na Constituição possibilidade de intervenção militar. Que intervenção militar não é intervenção federal. Intervenção militar implica numa ruptura da ordem jurídico-constitucional. Representa uma atividade ex officio das Forças Armadas. Uma insubordinação. Um golpe propriamente dito. Isto é, um ato sem qualquer validade jurídica, sem qualquer chancela dos Poderes constituídos. É, ainda, uma conduta tipificada no art. 359-M do Código Penal. Ainda, intervenção federal não é instrumento correto para contestar resultado de eleições como querem muitos. Além de que a intervenção federal não pode ser decretada fora do rol taxativo do art. 34. Ironicamente a intervenção federal pode ser decretada contra movimentos que pedem intervenção militar caso venham a abalar a integridade nacional. Dessa maneira é possível dizer que as hipóteses de intervenção federal do artigo mencionado constituem numerus clausus, isto é, não há possibilidade de intervenção federal quando não houver nenhuma das situações permitidas pela Constituição.
Nesse sentido, já é possível perceber que não existe possibilidade de intervenção federal para contestar, por exemplo, segurança de urnas eletrônicas, destituir governo ou Poder da República.
No julgamento do Mandado de Injunção n° 7.311/DF de relatoria do Ministro Barroso enfatizou-se que “Nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao art. 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica”5
O pluralismo político como valor fundante da República permite que em nossa sociedade democrática convivam conservadores, liberais e progressistas. Idéias divergentes devem estar em contínuo convívio, o que não significa que devam estar em plena ausência de inconformismo. Afinal, a democracia é o regime das diferenças, desde que a idéia divergente em sua essência não implique em violação de direitos e garantias.
Não se pode – ou pelo menos não deveria – chamar de constitucional aquilo que vai de encontro com a Constituição. Não se pode injuriar, difamar ou caluniar alguém alegando estar exercendo liberdade de expressão, pois como é sabido por acadêmicos e operadores do Direito, não existem direitos absolutos. Ou defender execução provisória da pena (prisão em segunda instância), quando diz o texto constitucional que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”(art. 5°, LVII, CF/88). Curiosamente, neste último caso, muitos queriam que o Supremo Tribunal Federal admitisse a prisão em segunda instância sem saber (ou não) que estavam pedindo para o Supremo julgar contra a Constituição (!).
Em que se assenta este paradoxo? No desconhecimento da Constituição? Ou na má interpretação? Como dizer que as Forças Armadas são um Poder Moderador quando diz a Constituição que “destinam-se à defesa da Pátria” e “à garantia dos poderes constitucionais” (art. 142), bem como subordina elas aos poderes? É necessário destacar que é somente por iniciativa de um dos 03 (três) Poderes que as Forças Armadas podem atuar. De todo modo, uma conclusão é certa, intervenção federal não é intervenção militar. Muito menos nos moldes da intervenção de 1964. Aliás, intervenção militar é um termo que sequer existe na Constituição Federal. Os Legisladores Constituintes prevendo possíveis situações de anormalidade positivaram no texto constitucional mecanismos excepcionalíssimos para conter esses acontecimentos. São eles: Estado de Defesa, Estado de Sítio e Intervenção Federal.
Em suma, o Estado de Defesa disciplinado no art. 136 destina-se a “preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. O Presidente da República ouvirá o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional antes do decreto que, posteriormente, será enviado ao Congresso que deliberará a fim de rejeitar ou não o ato normativo. Ter-se-ia, portanto, supervisão do Congresso Nacional.
Já o Estado de Sítio tem por finalidade solucionar situações de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa” ou “declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira” (art. 137, incisos I e II). O Presidente deverá solicitar ao Congresso Nacional esta modalidade de Estado de exceção. Há, novamente, um controle do Congresso Nacional.
Percebe-se uma atuação harmônica entre o Executivo e Legislativo mesmo em um Estado de exceção prestigiando o sistema checks and balances (freios e contrapesos), em que a despeito de os Poderes serem independentes, são vinculados uns aos outros nos moldes pensados por Barão de La Brède (Montesquieu) e positivados no caput do art. 2°. Numa intervenção militar isto não é respeitado.
Veja-se, aliás, o teor autoritário de trechos do preâmbulo do Ato Institucional n° 1, de 09 de abril de 1964 que instituiu a revolução assim denominada no ato: “
O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade (...) Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.” Passou-se a hipervalorizar a atuação do Presidente da República em detrimento do equilíbrio com o Congresso e Judiciário degringolando para um aumento progressivo da atuação anti-republicana (leia-se autoritária) do Chefe do Executivo, pois com a outorga da Constituição de 1967 preponderou-se a absurdidade da amplitude dos poderes do Presidente permitindo-o, por exemplo, que convocasse o Congresso com alto grau de discricionariedade, possibilidade de suspensão de direitos, imunização da apreciação judicial de seus atos dentre outros. As Forças Armadas com apoio popular romperam com a ordem constitucional da época em evidente ato de insubordinação, porquanto foi relegado norma constitucional expressa segundo a qual preconizava que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei.”(art. 176, caput, CF/46).
A tão falada intervenção federal do art. 34 é um mecanismo (constitucional) para garantir o federalismo. As hipóteses que permitem essa intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal são as seguintes:
(i) manter a integridade nacional;
(ii) repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
(iii) pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
(iv) garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação e
(v) reorganizar as finanças da unidade da Federação. É, portanto, um rol taxativo.
Por fim, cumpre repetir que não cabe quaisquer métodos de interpretação (teleológico, histórico, sistemático, literal etc) que visem a autorizar uma intervenção fora dessas hipóteses. Não há falar que ao povo é dada a legitimidade para decidir sobre uma eventual intervenção, pois sabendo que muitas vezes a maioria decide mal é que o Constituinte atribuiu ao Supremo a função contramajoritária no exercício da jurisdição constitucional, sobretudo do controle concentrado de constitucionalidade, de proteção de minorias. Eis a noção de flexibilidade da democracia em que não há possibilidade de cogitar radicalismo.
Não há na ordem constitucional espaço para atividade que vá além do permissivo constitucional. Não há sequer compatibilidade entre defender um ato revolucionário e alegar constitucionalidade nisto. Do contrário estará em risco o próprio Estado Democrático de Direito, bem como nossa dignidade.
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1 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. Ed. 2002. Saraiva.
2 FERNANDES, Bernardo Gonçalves et al. Interpretação constitucional, relfexões sobre (a nova) hermenêutica. Ed. 2010. Juspodivm.
3 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. Saraiva.
4 Cavalcante Filho, João Trindade. Direito constitucional objetivo. Ed. 2013. Alumnus.
5 (STF. MI 7.311. Min. Roberto Barroso. J. 10/06/2020)