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Práticas ASG e uma nova abordagem jurídica da empresa

Presente artigo visa analisar a empresa, como fenômeno evolutivo social, promovendo uma reflexão sobre a sociedade contemporânea, e seus reflexos na atividade mercantil, em especial diante da consagração das práticas ASG.

8/11/2022

O surgimento das sociedades mercantis e a sua evolução nas sociedades contemporâneas representa e corresponde ao próprio processo evolutivo do ser humano.

Conforme sintetizado por Sérgio André R. G. da Silva, nos estágios iniciais “da evolução humana, como nos dias atuais, não tinha o homem meios para produzir todos os bens de que necessitava, de modo que procedia à troca dos bens que produzia pelos bens produzidos por outras pessoas. Esta era a chamada economia de escambo (...). Após esse estágio mais primitivo, com a evolução da humanidade e a criação de padrões monetários, representativos de valor, o sistema de trocas foi sendo deixado de lado, passando-se então à fase da economia de mercado. A partir dessa fase, face à evolução do comércio, cada vez mais se mostrava necessária uma regulamentação da atividade comercial (...)”1.

Não obstante contemporaneamente faça-se referência aos diversos perfis atribuídos ao conceito empresa2, cabe valer-nos aqui do perfil objetivo da empresa, assim considerada no artigo 966 do Código Civil como a atividade econômica organizada, exercida profissionalmente, para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.3

Assim, se nas fases primitivas o comércio era atividade voltada a satisfazer as necessidades mais básicas humanas, permitindo a sua sobrevivência, na sociedade contemporânea, cuja política econômica vigente é o capitalismo, o consumismo passou a ser um estilo de vida, orientado para o crescente consumo de bens ou serviços, em geral supérfluos.

Diante desta nova realidade, nesta verdadeira cultura pós-revolução industrial, de consumismo desenfreado, causador de poluição, escassez de recursos naturais essenciais à vida humana, e até mesmo de mudanças climáticas – em especial pela emissão de gases na atmosfera, como o dióxido de carbono (CO2), causador do efeito estufa -, houve uma acentuada preocupação com o meio-ambiente, de modo que passou a ser objeto de busca universal o desenvolvimento de atividades sustentáveis, reformulando a própria ideia de função social da empresa, como tradicionalmente conhecida.4

Ainda na sociedade contemporânea, a globalização e a intensificação da comunicação mudou até mesmo o perfil orgânico das empresas, que não são apenas sociedades de pessoas, passando a ganhar destaque as chamadas sociedades de capital, em especial aquelas cuja participação societária é negociada no mercado de capitais. Neste contexto, para além da sustentabilidade (que gera agregação de valor aos produtos e serviços da empresa), surge a necessidade, diante da grande circulação de capital de terceiros, da criação de uma governança corporativa transparente, sob pena de não atrair o tão almejado capital para o desenvolvimento da atividade comercial. Não é difícil perceber que o incremento de segurança aos investidores inegavelmente agregará valor aos produtos e serviços da empresa.

Outro aspecto da sociedade contemporânea, que ganhou relevo, em especial com o fim da segunda guerra mundial, e que representa um atual reflexo nas empresas, são as preocupações de ordem social, como as políticas de redução de desigualdade social e dos processos históricos de discriminação. Assim, a empresa passa a ser vista não só como uma instituição jurídica com uma função social, mas como verdadeiro instrumento de mudança social, de evolução e melhoramento da sociedade, de busca igualdade material no âmbito privado, por meio da adoção de ações sociais, que visam a emancipação de grupos historicamente excluídos e vulneráveis. Numa sociedade contemporânea, comprometida com valores democráticos, não é difícil perceber que a empresa estará agregando valor a seus produtos e serviços com aludido comportamento.

Observa-se que este três pilares agregam maior ênfase à função social da empresa. Mas, além disto, em comum, os três pilares agregam valor aos produtos e serviços fornecidos no mercado de consumo. Mostra-se, com isto, ser necessário que a empresa passe a adotar práticas sustentáveis, sociais, e boas práticas de governança, para que subsista no mercado de consumo atual.

Surge nesta nova realidade social a chamada agenda ASG – ambiental, social e governança das empresas. Segundo Fernando Guedes Ferreira Filho “o ESG (Enviromental, Social and Governance), mencionado a primeira vez na publicação Who Cares Wins, de 2004, traz preceitos da atuação da empresa em três pilares de atuação: meio ambiente, social e de governança corporativa”.5

Destaca o autor ainda que, “no mundo, cada vez mais, empresas são avaliadas sobre esses critérios, sobre como atuam com comunidade, as ações de preservação do meio ambiente sustentável, como tratam com diversidade de gênero, cor ou raça, como aplicam as leis trabalhistas e garantem trabalho digno a seus colaboradores e qual a força de sua governança e a observância de valores e princípios de integridade para a prevenção de desvios éticos e de corrupção, bem como para evitar o uso indevido de dados de seus clientes, fornecedores e colaboradores”.6

A celeuma da atualidade, contudo, diante do caráter multifacetado da agenda ASG, é apontar a métrica, os parâmetros, para definir quando uma empresa está atendendo a agenda ASG. Vladimir Passos de Freitas destacou que, “para avaliar as práticas ASG, tem sido utilizadas no Brasil as normas GRI – Global Reporting Initiative (Standards)7, que representa as melhores práticas globais”8. Aponta o autor ainda como referência os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS9.

Analisando os três pilares das práticas ASG, observa-se que muitas destas práticas são obrigatórias, pois eleitas pelo legislador como o mínimo exigível dentro do exercício da atividade comercial. Porém, considerando as práticas internacionais já reportadas, em especial em relação aos pilares sociais e de governança, nem todas as práticas da ASG são legalmente obrigatórias, o que torna a adesão às práticas da ASG, ainda que parcialmente, facultativas, mas de inegável proveito econômico, pela inevitável agregação de valor aos produtos e serviços. Façamos uma análise exemplificativa10.

No primeiro pilar (ambiental), podemos citar: i) a utilização de energia renovável (atualmente, medida facultativa, geralmente por meio da atividade administrativa de fomento do Estado, diante do quadro de crise energética); ii) diminuição de resíduos sólidos e a política de logística reserva (a primeira, como objetivo da Política Nacional de Resíduos Sólidos – artigo 7º, inciso II, Lei nº 12.305/10; a segunda, como dever jurídico a certos seguimentos, na forma do artigo 31, inciso III c.c. artigo 33, da lei 12.305/10); iii) não poluição do solo, ar, água, e demais recursos naturais (como dever jurídico, passível de sancionamento no âmbito cível, administrativo e criminal – artigo 3, inciso IV, lei 6.938/81 c.c. artigo 3º, Lei 9.605/98); iv) uso racional dos recursos naturais (entrando aqui o poder de polícia do Estado, na outorga do direito de utilização dos recursos naturais, como água – artigo 5º, inciso III, lei 9.433/97); v) não degradação da fauna (Lei nº 5.197/67), bem como da flora – desmatamento -, respeitando e protegendo os espaços territoriais especialmente protegidos (na forma estabelecida pelo Código Florestal – lei 12.651/12 -, em especial no que se refere às APPs e reserva legal, e, na forma da lei 9.985/00, que estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação); vi) adoção de medidas mitigadoras, quanto à emissão de gases do efeito estufa, em que pese a emissão ocorra dentro dos limites fixados e permitidos pela legislação e órgãos de controle11; dentre outros medidas12.

Já o segundo pilar (social), poderia ser citado: i) a obrigação legal de contratação de pessoas com deficiência (artigo 93, lei 8.213/91); ii) vedação legal à discriminação racial quando  da contratação de empregados, sob pena de responsabilização, inclusive criminal (artigo 4º, da lei 7.716/89); iii) vedação legal à discriminação da mulher, pelos mais diversos meios, como a exigência de atestado de gravidez ou esterilização no ato de contratação (Lei nº 9.029/95), bem como as diferenças salariais (artigo 461, do decreto-lei 5.452/43 – CLT), etc.; iv) a adesão facultativa da empresa ao programa empresa cidadã, instituído pela lei 11.770/089, permitindo uma prorrogação dos períodos de licenças-maternidade e paternidade, possibilitando maior período de convivência familiar da criança; v) ações afirmativas no âmbito privado (artigo 1º, lei 12.288/10 – Estatuto da Igualdade Racial); vi) outras medidas que permitam maior diversidade no ambiente de trabalho, em especial de grupos vulneráveis e historicamente excluídos; vii) investimento em ações sociais para a comunidade; viii) privacidade e segurança de dados (lei 13.709/18 – lei Geral de Proteção de Dados); dentre outras.

Por fim, o terceiro pilar (governança), podem ser citados, para além das obrigações legais previstas na lei de S/A, as seguintes hipóteses: i) adoção de gestão transparente; ii) criação de procedimentos de integridade, com a finalidade de identificar práticas de corrupção, assédio moral e sexual, dentre outras mazelas, dentro da empresa, contribuindo para o bem-estar dos colaboradores e investidores; iii) existência de conselho fiscal e de administração independentes, e cuja representação das cadeiras represente a diversidade, com que compõe o capital social da empresa, permitindo a sindicabilidade; dentre outras medidas. Especificamente quanto às boas práticas de governança, promovidas as devidas adequações necessárias ao ambiente privado, um bom norte podem ser as disposições do estatuto das estatais (lei 13.303/16), em especial as normas que tratam do Controle pelo Conselho Fiscal e demais órgãos, Código de Conduta e Integridade, Auditorias, etc.13

Assim, observamos que, dentro do atual quadro, nem todas as práticas supracitadas são impostas pelo legislador, e nem todas são obrigatórias. Contudo, como são práticas que agregam valor econômico aos bens e serviços da empresa, as práticas que compõem a agenda ASG vem apresentando um inegável processo de superação dos antigos parâmetros simplistas da atividade econômica e da função social da empresa (lucro e geração de empregos), de modo que hoje podemos apresentar um novo conceito de empresa, que não represente a mera produção e circulação de produtos e serviços.

Desta forma, no cenário atual de consolidação das práticas da agenda ASG (o que pode ser feito também, gradativamente, por meio da atividade legislativa), dentro do seu perfil objetivo, a empresa pode ser conceituada hoje como: atividade econômica organizada, exercida profissionalmente, de forma socialmente responsável, para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, de modo ambientalmente sustentável, por meio de governança transparente e ética do capital social, dividendos e demais recursos essenciais ao exercício da atividade econômica.

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1 SILVA, Sérgio André R. G. Teoria da Empresa - Um Retorno ao Critério Subjetivo. Editora Revista dos Tribunais, Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, vol. 1, p. 275 – 310, Dez / 2010.

2 ASQUINI, Alberto. "Perfis da empresa". Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 104.

3 Disponível em: L10406compilada (planalto.gov.br). Acessado dia 01/11/2022.

4 Não basta mais a mera produção de riquezas, fomento à economia, com a arrecadação de tributos e geração de empregos, pois a empresa, como atividade, não deve gerar o esgotamento e a poluição dos recursos naturais essenciais à vida humana.

5 FERREIRA FILHO, Fernando Guedes. ESG e o Jurídico. CBIC. Disponível em: Artigo - ESG e o Jurídico - CBIC – Câmara Brasileira da Industria da Construção. Acessado em 02/11/2022.

6 Ibidem. Disponível em: Artigo - ESG e o Jurídico - CBIC – Câmara Brasileira da Industria da Construção. Acessado em 02/11/2022.

7 GRI Resource Center. A short Introduction to the GRI Standards. Disponível em: https://www.globalreporting.org/media/wtaf14tw/a-short-introduction-to-the-gri-standards.pdf. Acessado dia 02/11/2022.

8 PASSOS DE FREITAS, Vladimir. La Introducción y colaboración de la política ASG em Las Empresas como Forma de Proteção del Medio Ambiente. Revista Iberoamericana de Derecho, Cultura y Ambiente. Edición 1, junio de 2022.

9 Disponível em: www.nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030. Acessado dia 02/11/2022.

10 Para outros exemplos, incluindo a análise e abordagem de casos concretos, vide: ANBIMA. Guia ASG – Incorporação dos aspectos ASG nas análises de investimento. Disponível em: https://www.anbima.com.br/data/files/1A/50/EE/31/BFDEF610CA9C4DF69B2BA2A8/ANBIMA-Guia-ASG-2019.pdf. Acessado em 05/11/2022.

11 Neste caso, podem ser utilizados como parâmetros o Acordo de Paris, formulado na ONU, com o objetivo de reduzir o aquecimento do planeta em 1,5ºC até o fim deste século. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acordodeparis. Acessado em 05/11/2022.

12 Ainda quanto às medidas de combate às mudanças climáticas, podemos indicar como parâmetro as disposições normativas da Lei nº 12.187/09, que estabelece a Política Nacional sobre mudanças Climáticas, com regulamentação recentemente reeditada no Decreto 9.578/18.

13 Com especial ênfase neste pilar da governança, e do pilar da sustentabilidade, vide análise efetuada pela CVM sobre as práticas de ASG no mercado de capitais. Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/a-agenda-asg-e-o-mercado-de-capitais.pdf. Acessado em 05/11/2022.

Maicon Natan Volpi
Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMPSP (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Advogado. Atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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