Imagine você sendo a Mel B. do filme “Hackers no Controle” (Netflix, 2022): em um belo dia você acorda como uma hacker ética (ethical hacker), e, no outro, é procurada por um deepfake de um crime que jamais cometeu.
Parece estranho? Pois “o grande irmão está te olhando”, como diria George Orwell em 1984. Sim, o Black Mirror é real. Como diz ainda o livro de ORWELL, já prevendo o cenário improvável de Minority Report, o filme:
“Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro.” “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado.” “A massa mantém a marca, a marca mantém a mídia e a mídia controla a massa.” “O pensamento-crime não acarreta a morte: o pensamento-crime é a morte”.
Mas o que são deepfake e shallowfake?
Enquanto o último dá a ideia de raso/oco, preservando características do personagem original que te permitam perceber que o uso indevido da biometria ocorreu, no deepfake o mergulho é tão profundo que já não se distingue realidade e fantasia, e aí mora todo o perigo.
Em ambos os casos, a imagem, voz, etc., de uma pessoa são alterados sem parcimônia por aplicativos muitas vezes gratuitos e a um clique de distância. Um grande exemplo de confecção de tais materiais é o jornalista Bruno Sartori.
Tendo em vista que, no Brasil, o deepfake ganhou popularidade a partir de aplicativos e de conteúdos criados pelo jornalista, humorista e influenciador digital, considerado um dos pioneiros na criação de sátiras utilizando a técnica, que explora os memes trazidos pela nossa política, não poupando os lados.
Como ele aborda em algumas entrevistas, ele afirma que, visualmente, era notável ser montagem, apesar de dar um efeito muito legal, e isso fez com que ele se aprofundasse no tema. Fez um vídeo que viralizou em maio de 2018, que era o Bolsonaro de Chapolin Colorado. Conta que, a partir dali, percebeu que de fato os indivíduos acreditam ser o atual presidente da república (por mais absurdo que pareça).
A deepfake de fato faz a pessoa ver o indivíduo exatamente como ele é, o que leva ao questionamento de que não haveria possibilidade de ser montagem. Ao perceber que as pessoas de fato acreditam nesse tipo de conteúdo e ver que o primeiro contato do público brasileiro com o cenário se deu com o Bruno Sartori, a popularização se deu quando celulares passaram a oferecer ferramentas que faziam isso.
“Quando é deepfake, se usa uma técnica de síntese de mídia digital, você cria uma mídia digital com inteligência artificial, uma mídia sintética. Então, precisa dessa inteligência artificial para fabricar essa mídia sintética. Além disso, não é qualquer pessoa que faz um deepfake. Não basta editar um vídeo e tirá-lo de contexto para ser um deepfake. Isso, na verdade, é um shallowfake, que são vídeos tirados do contexto por material tanto auditivo quanto visual”, compara Sartori.
Mas voltando ao filme que mencionamos: o que você faria se, da noite para o dia, seus dados biométricos (íris, composição fácil, etc) fossem utilizados contra você e você tivesse que fazer uma prova negativa e diabólica contra si mesmo e provar que nada fez? E se isso envolvesse uma nação e um incidente diplomático de proporções catastróficas, como no caso do filme? Em quem você confiaria? Como reverteria a situação?
Importante lembrar a máxima de que “não existe almoço grátis”. Se alguém está coletando a sua biometria, definitivamente não é você que está ganhando com isso. E como diz o documentário Coded Bias da Netflix, normalmente os abusos à privacidade começam com as pessoas de menor potencial econômico, em lugares suburbanos onde a afronta aos direitos fundamentais não é tão sentida.
E aí mora justamente o perigo. O bom é que, como a própria mensagem do filme passa, “o código nunca mente”. É dizer: sempre dá pra provar que você não está envolvido com algo, se você chegar perto o suficiente. Porém, esperamos que ninguém chegue perto de sacrificar a vida, como sugere o filme.
Aliás (alerta de spoiler): o filme trata de uma justiceira ética que se utiliza do hacking do bem para desmascarar grandes esquemas de corrupção. Mel Bandison (Brood) é uma das maiores hackers da Holanda e atua como uma espécie de “Robin Hood”, que tira dos ricos para dar para os pobres. No entanto, a protagonista acaba descobrindo um escândalo envolvendo uma multinacional chinesa que está desenvolvendo um ônibus autônomo.
Só que Mel, sem saber de quem se tratava, envia um cavalo de tróia para a empresa, visando parar a atividade ilegal. E aí começa uma verdadeira "caça" à hacker, cuja vida, integridade corporal, reputação, etc, é colocada em risco. Mel então precisa provar que é inocente, superando todos os seus limites, enquanto é procurada pela INTERPOL e não pode confiar em praticamente ninguém.
A questão é: vivemos em um mundo digital. A famosa frase do matemático britânico Clive Humby: "Dados são o novo petróleo" (Data is the new oil), bem como a publicação da The Economist: "O recurso mais valioso do mundo não é mais o petróleo, mas dados" (The world’s most valuable resource is no longer oil, but data) têm sido muito citadas pelo mercado e executivos mundo afora, apontando que aqueles que possuírem dados terão um recurso muito valioso em mãos.
É importante dizer, inclusive com o cenário do filme, que estamos vulneráveis a todo momento, e privacidade é um direito humano fundamental que pertence a todos os indivíduos e que não se pode fechar os olhos para isso.
Portanto, os dados devem ser sempre divididos, analisados para que tenham valor, ou seja, assim como o petróleo deve ser refinado, os dados precisam receber um tratamento correto para estarem prontos para sua utilização em seu total potencial.