Todo ‘term of art’ tem uma história fascinante e eu sempre faço questão de investigar a fundo cada verbete (coisa de linguista, lógico). Term of art é como nós nos referimos aos termos específicos de uma área de conhecimento. No nosso caso, terms de art serão os termos da área do direito: ‘legal terms of art’.
Quando estamos estudando Legal English a fundo uma das primeiras palavras que escutamos são ‘bar and bench’, que é como nos referimos à totalidade dos profissionais do direito. É lógico que a tradução direta não cabe de jeito nenhum (‘barra e banco’ não dá).
Bench é um termo metonímico para se referir aos magistrados em geral pois ele se senta, desde a idade média, em bancos (como esse1) ‘to hear the cases’ (para ouvir os casos). É por isso que vocês escuta nas audiências o advogado perguntar ‘may I approach the bench?’ para as vezes que quer tratar de algo diretamente com o juiz do caso. Ou, ao contrário, quando o juízo pede para que os advogados das partes (os ‘couselors’) que se aprocheguem ao tribuno: “please approach the bench”.
‘Bar’ também é uma metonímia, pois também lá na idade média, havia uma ‘barra’, de madeira mesmo, separando quem fazia parte e quem não fazia parte da ‘court hearing’ (audiência). Portanto, uma vez que você passa para o lado de dentro da ‘barra’, você pode participar do trial (julgamento), o que era uma maneira prática de se separar quem é partícipe da sessão da horda de curiosos de plantão (lembrando que os julgamentos itinerantes eram realizados, literalmente, aonde dava).
Agora, imagine você a quantidade de regras de ‘demeanor and deference’ (postura e conduta) que deveriam (e devem) ser respeitadas perante a solenidade do trial, especialmente em se tratando de um país fundado por tradições milenares. Começando pelo fato de que lá os juízes são tratados como “my lord/my lady”.
Até hoje ‘OAB’ nos Estados Unidos é a ‘American Bar Association’. Veja ali a palavra ‘bar’ da qual tratamos. Nenhuma relação com o bar que você vai depois do expediente, muito embora tenham a mesma etimologia (é lógico, pois quando você se prontifica frente a um bar, há sempre uma barreira física que o separa do barman), portanto se há conexão, nada mais justo que tenhamos muito mais liberdade etílica nesse tocante.
No sistema inglês-galês, a instituição que administra e gerencia do trabalho dos barristers é ‘The Bar Coucil2’, novamente sem qualquer óbice para as piadinhas corriqueiras e já não mais engraçadas (a título de comparação, imagine o seu ‘tio do pavê’ fazendo todos os dias a mesma leviandade).
Quando você entra no site do Bar Council, você lê o seguinte ‘barristers work from their chambers within their circuits’. Vamos ao segundo term of art dessa colocação (já que trabalhamos sobre a palavra ‘chambers’ no artigo Harry Potter and the Chamber of Barristers3) com o importantíssimo verbete ‘circuit’. Um circuit é o território judicial sobre o qual um tribunal tem competência para conhecer dos casos.
A origem desse termo é do longínquo século XII. O rei da Inglaterra Henry II, que nasceu e faleceu no local onde hoje chamamos de ‘França’. Henry II foi o primeiro rei da dinastia dos plantagenetas da Inglaterra, e, por razões históricas, tinha mais motivos para ter amor a sua terra continental do que à ilha dos Anglos, que, à época, era habitada por, pelo menos, uma dezena de diferentes povos falantes de diferentes línguas teutônicas e célticas: eram vikings desregrados, saxões desterrados, anglos aventureiros, pictos resilientes e celtas orgulhosos. Era uma terra recém conquistada à força pela nobreza normanda4 e que, por óbvio, carecia de certa organização judicial.
Henry II instituiu o costume de enviar seus poucos judges para dar uma volta pelo reino ‘trying cases on behalf of the King’ (‘julgando os casos em nome do Rei’), mesmo porque, relembremos, o Rei era também uma instância judicante. Ou seja, de tempos em tempo, o rei criava uma comitiva judicante que peregrinava pelo reino aos moldes dos pretores romanos.
Então o ‘peasantry’ (o campesinato, o povaréu, o povo que andava a pé, em uma tradução etimológica) não precisava se dirigir até Londres, incomodando a corte com seus pedidos inoportunos (ao Rei). O caminho que esses judges percorriam foram batizados de ‘circuits’, e eram sempre decididos na antessala da saída da comitiva judicial; geralmente esses circuits percorriam as mesmas estradas que já haviam sido desbravadas pelos romanos que lá estiveram mil anos antes (veja-se: ‘street’ e ‘estrada’ tem a mesma raiz latina).
Esses ‘pre-set circuits’ deram a origem ao ‘circuit’ de hoje em dia. É por isso que se atribui ao rei Henry II a instituição da judicatura na Inglaterra (considerado inclusive o pai do sistema jurídico inglês), a fim de que se aplicasse aquilo que ele mesmo cunhou de ‘common law’ (uma lei para todos). O nome, contagiante como um hit dos Beatles, caiu na boca do povo do medievo: “a law common to all” (‘uma lei comum a todos’).
Hoje em dia existem seis circuits no sistema inglês-galês: Northern, North Eastern, Wales and Chester, Midlands, South Eastern, Western. Cada um deles forma uma circunscrição individual. Vamos nos valer desse conhecimento quando formos tratar da estrutura do poder judiciário nos Estados Unidos, pois as doze regiões de jurisdição federal também levam o nome de circuit courts5.
Dito isso, voltemos à questão do ‘sistema dúplice’ inglês-galês, que dispõe de duas profissões distintas ao profissional que chamamos genericamente de lawyer.
Os barristers têm desfrutado de maior prestígio na sociedade inglesa do que os solicitors, e dizem que o status mais elevado dos barristers – como um grupo distinto em relação aos solicitors – é justificado porque as atividades dos barristers envolvem “greater skill and responsibility” (“maior habilidade e responsabilidade”), visto que atuam nas cortes criminais (como já explicado no artigo Barristers, togas e perucas6) e são compreendidos como profissionais de referência teórica em casos de maior complexidade hermenêutica.
Por conta da distinção legal e formal entre barristers e solicitors, uma barreira artificial é colocada entre os dois grupos. Esse ‘rebaixamento’ do status de um segmento da profissão ocorreu muito embora a formação jurídica do solicitors seja, por vezes, mais exigente do que a do barrister. Ainda, parece óbvio ter que mencionar, mas não há evidências de que os barristers sejam mais competentes ou mais capazes do que os solicitors. Certamente são mais garbosos por conta da peruca, fora isso todo o resto é especulação.
A distinção absoluta entre barristers e solicitors é uma questão de acidente histórico, e não é tão antiga como muitas vezes se pensa. Os barristers provinham dos “serjeants-at-law” que era uma ordem de elite de advogados que tinha o privilégio exclusivo de argumentar perante a “Court of Common Pleas” (predecessora das varas cíveis) e de onde provinham os juízes tanto para as “Common Pleas” quanto para a “King's Bench” (até hoje um tribunal de apelações). Em suma, a boca para pedir em juízo se consubstanciava na boca do barrister, e, em seguida apenas os barristers de tornavam juízes dentro daquele sistema.
Por seis séculos a partir de 1300, os serjeants-at-law ficaram acima de todos os outros advogados do reino: eram considerados a nata da nata da advocacia. Apenas mil e duzentos homens foram promovidos à comenda de serjeants-at-law, o último deles morreu em 1921. Ou seja, anteontem em termos ingleses (percebe-se que é um povo difícil de se desgarrar da tradição).
Eram os mais exaltados do reino, pagos pela Coroa e, uma vez admitidos a exercer a advocacy (‘ser a voz do cliente’) perante o juízo, pertenciam a uma sociedade fechada que tinha um poder significativo. Ou seja, a sua maneira reptiliana, a Coroa mantinha o controle inclusive sobre o processo dentro das cortes (tripartição de poder é coisa de continentais, lembremos). À época, nenhum outro profissional detinha tamanho status quanto os serjeants-at-law. Nem a peruca, diga-se de passagem.
Os serjeants-at-law tinham ainda um antecedente nos advogados do século XIII conhecidos como “countors”, um termo do francês (por óbvio) que significa “contadores de histórias”. Como se o autor da causa (‘plaintiff’, apesar de hoje em dia os ingleses preferirem o termo ‘claimant’) precisasse de um auxílio jurídico-linguístico, pois tratava-se de um mundo ocupado por transeuntes basicamente iletrados.
Os countors ajudavam a formular as iniciais (‘the initial claim’) dos autores. Esse trabalho preparatório era chamado “counting”. No século XIV, seu papel evoluiu e se tornou uma profissão. Os countors tornaram-se ‘servientes ad legem’, ou melhor, os serjeants-at-law. Assim, tem-se uma ‘evolução’ clara para esse profissional que auxiliava como a boca dos requerentes.
Mais sobre essas cortes você vai ler quando tratarmos da estrutura da common law inglesa, mas, por ora, tenha em mente que os contours deram origem aos poderesos serjeants-at-law, que por sua vez fundaram os clubinhos das chambers, de onde provem os barristers e, mais ainda, por um longo período da história, apenas barristers se tornavam juízes, especialmente nas cortes superiores. Visualmente há uma alteração da peruca e da toga do sujeito, enquanto o prestígio só se inflava.
Embora os barristers descendam dos primeiros advogados que estavam principalmente associados à “courtroom” (o ambiente físico do julgamento), eles não eram claramente distintos de outros profissionais semelhantes chamados de ‘attorneys’. Até meados do século XIX, dizia-se que attorneys, serjeants-at-law e barristers atuavam no mesmo negócio e a divisão não era tão estanque quanto hoje.
A exclusão inequívoca causada pelo fortalecimento dos lnns of Court não foi totalmente cumprida até um passado relativamente recente. Os papéis dos antigos attorneys e solicitors foram praticamente fundidos em 1749, embora muitos deles não receberam a notícia de bom grado.
A divisão histórica entre barristers e solicitors provavelmente começou efetivamente em um ponto (não se sabe ao certo) em que os tribunais simplesmente negaram aos solicitors o direito de audiência perante eles (“the right of audience”). Uma política de exclusão explicita e proposital; por óbvio por uma clara questão de poder: como boca dos requerentes, os barristers detinham o poder mágico do controle da legalidade na common law. Um poder e tanto.
A pergunta que resta é: qual foi a participação dos solicitors quando dessa negativa? Não sabemos se houve algum tipo de acordo entre os barristers e os solicitors da época.7
Pode ser que a negação do right of audience tenha sido trocada pelo direito de lidar diretamente com os clientes. Há, claramente, certa vantagem aos olhos do solicitor em monopolizar todo e qualquer tipo de transação privada em um tempo de expansão comercial (pensemos em uma Inglaterra em plena revolução industrial e expansão marítima), e, ao mesmo tempo, uma vantagem estratégica do barrister em monopolizar o acesso direto aos tribunais.
Quaisquer que sejam os fatos, se houve um acordo negociado ou simplesmente um exercício de poder bruto, os barristers criaram um monopólio e, juntamente com seus co-irmãos, os juízes, efetivamente expulsaram a concorrência na advocacia em tribunais superiores.
Por fim, para trazer mais clareza à função sociológica da duplicidade e em regresso ao nosso termo ‘circuit court’, eu te convido a fazer uma reflexão: imagine um juiz saindo de Londres, em pleno século XV, para se debruçar sobre casos lá no cafundó das Midlands. O juiz – nobre senhor, comensal do próprio Rei – sai com uma comitiva de 20 carroças, com comida, mead (‘hidromel’), uma mini guarda armada, parentes, parças e ‘esquires’. A carroça anda pelo caminho enlameado e, após chuva, vento frio, tosse comprida e pouca higiene, chegam ao local dos hearings and trials.
O peasantry se anima, visto que suas querelas (“quarrels”) serão resolvidas e seus pedidos atendidos. Há certo alvoroço no vilarejo, tanto é que a guarda real tinha que dispor de uma tábua de madeira para separar a gentarada. A barra de madeira separava o povo da corte com o auxílio de um ‘bailiff’ (o ‘porteiro’ do evento, o nosso ‘meirinho’).
Não era qualquer um que poderia se dirigir ao magistrado (ou a corte). Apenas aqueles com instrução e o mínimo de civilidade poderiam fazer as súplicas (‘pleas’) ao juízo; por essa razão nada mais natural que barristers acompanhassem o cortejo para servirem de porta-voz dos líderes do campesinato.
Imagine o alívio que essa organização da corte trazia ao juiz da causa em meio ao caos Tudoriano. Era a maneira mais simples de se traduzir a súplica em pedidos e, consequentemente, o despacho em ordem. O cortejo judicante, representando a coroa, não poderia ser tratado como um pub (‘public houses’), afinal era como se o próprio Rei estivesse ali, sentadinho no bench.
De quando em vez recebemos vídeos de despautérios acontecidos em juízos no Brasil e indagamos quanto ao real valor de se separar advogados ‘de mesa’ dos advogados ‘de palco’. Uma questão bastante interessante para o seu papo do bar nessa semana (é pavê?).
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1 https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/ee/Bokrijk%2C_Ancien_R%C3%A9gime_lawcourt.jpg
2 https://www.barcouncil.org.uk/
3 https://www.migalhas.com.br/depeso/374999/harry-potter-and-the-chamber-of-barristers
4 Henry II se tornara rei por meio de sua mãe, Matilda, ‘imperatriz’ da Inglaterra por seu casamento com o então rei Stephen, que não deixou filhos por conta da maior tragédia naval da história medieval inglesa. Stephen, por sua vez, era o quarto filho do famoso William the Conqueror, o duque da Normandia que invadiu a Inglaterra para ter um trono para chamar de seu em 1066
5 Disponível aqui https://www.uscourts.gov/about-federal-courts/court-role-and-structure/about-us-courts-appeals
6 https://www.migalhas.com.br/depeso/373423/barristers-togas-e-perucass
7 Mais sobre esse tema https://lawcat.berkeley.edu/record/333414