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Máxima excepcionalidade da prisão preventiva

Profissionais do Direito precisam atualizar suas bibliotecas: concordando ou não com isso, a lei 13.964/19 determinou mudança no raciocínio utilizado para decretação da prisão preventiva, para reforçar sua máxima excepcionalidade e reduzir os danos oriundos do discurso totalitário de segurança pública.

28/10/2022

Eduardo Galeano, um dos maiores pensadores da América Latina, em seu livro De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso, afirma que “o medo é a matéria prima das prósperas indústrias da segurança particular e do controle social” (2020, p. 107). Em outra passagem da mesma obra, também cuidando de descrever a indústria do medo, Galeano constata que “num mundo que prefere a segurança à justiça, há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança. [...] Cada vez que um delinquente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta” (2020, p. 81).

Introduzimos este texto com as citações de Galeano porque a indústria do medo e o totalitário discurso da segurança pública explicam satisfatoriamente o punitivismo (em especial o “prisionismo”) persistente, crônico, que acomete (adoece) o Poder Judiciário e o Ministério Público brasileiros.

A lei 13.964/19 é conhecida como “Lei anticrime” porque se originou do “Projeto anticrime”, mas sofreu significativas alterações durante o processo legislativo até a sua aprovação. De um projeto inicial integralmente recrudescente do sistema penal, passou-se a uma lei híbrida e até mesmo contraditória, pois encarceradora nos dispositivos de direito penal e execução penal, mas, no âmbito do direito processual penal, acabou por introduzir importantes mecanismos de contenção do poder punitivo.

No que diz respeito à prisão preventiva, a lei aprovada promove uma série de alterações positivas no Código de Processo Penal, a fim de limitar ao máximo a sua utilização.

Com Amilton Bueno de Carvalho (2018), compreendemos que o instituto da prisão preventiva é, talvez, o “que mais agride o pensamento jurídico-penal” (p. 133), principalmente considerando a deficiência das decisões judiciais que decretam essa forma de prisão, fartamente compostas de expressões vazias, abstratas, de “retórica insonsa oriunda do senso comum”, e, “de objetivo, de concreto, de direto a demonstrar a imperiosa necessidade do encarceramento antes do tempo – espetacular exceção no sistema – nada vem:

Prende-se com base na retórica vazia e mediante aplauso do vulgo” (2018, p. 133). 

À luz da Constituição Federal de 1988, a prisão preventiva sempre foi tida como medida cautelar excepcional, isto é, decretada apenas quando extremamente necessária e desde que preenchidos todos os requisitos legais para tanto.

O Código de Processo Penal (decreto-lei 3.689) é de 1941. Anterior, portanto, à Constituição Federal de 1988. Por isso, é uma “colcha de retalhos”, necessárias que foram diversas reformas para adaptá-lo aos novos auspícios constitucionais e ao almejado sistema acusatório.

No que tange à prisão preventiva e às medidas cautelares em geral, mudanças legislativas anteriores já buscavam restringir o uso da prisão preventiva, a fim de priorizar a utilização das outras medidas cautelares. Isso porque, a partir da Constituição Federal de 1988, pautada pelo princípio da presunção de inocência e tutela da liberdade, prevalece o entendimento segundo o qual a liberdade é a regra, enquanto que a prisão é a exceção.

Todavia, em um mundo tal como o descrito por Galeano, que prefere a segurança à justiça, e no qual o medo é a matéria prima da segurança, o discurso jurídico se adapta para transformar a exceção da prisão em regra.

Utilizando-se das normas processuais penais vigentes e uma interpretação particularmente punitivista dos requisitos legais previstos para a decretação de prisões preventivas, o Poder Judiciário colabora para encarcerar centenas de pessoas que não foram condenadas definitivamente.

Segundo o último levantamento de dados publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional, referente ao período de julho a dezembro de 20211, o Brasil conta com 670.714 pessoas integrantes do sistema prisional – presas ou não, pois o número inclui aqueles que cumprem pena em regime semiaberto e aberto. Mas esse número também contempla os presos provisórios, que são 196.830 pessoas.

A questão que se coloca é:

As 196.830 pessoas presas provisoriamente precisariam realmente estar presas?

Mas não é essa a pergunta que a maioria dos juízes criminais costuma responder ao decretar as prisões preventivas, quando se limitam a verificar se estão ou não presentes os requisitos legais genéricos dessa modalidade de prisão processual?

Caracterizado o fumus comissi delicti e periculum libertatis, especialmente a bandeira da garantia da ordem pública, em grande parte das decisões judiciais pela decretação da prisão preventiva o discurso da segurança pública prevalece sobre as regras da liberdade e da presunção de inocência, de modo que a prisão preventiva passa a ser utilizada para produzir a sensação mencionada por Galeano:

“A sociedade sente um alívio na doença que a atormenta” (2020, p. 81). Embora o preso não seja entregue em sacrifício de sua vida ao poder punitivo, ocorre o sacrifício de sua liberdade e, assim, também a prisão tem um efeito farmacêutico:

“A palavra farmácia vem de phármakos, o nome que os gregos davam às vítimas humanas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos de crise" (GALEANO, 2020, p. 81).

Com o advento da lei 13.964/19, os dispositivos relacionados à prisão preventiva e medidas cautelares foram modificados e, de todas essas alterações, ressai a seguinte conclusão:

Atualmente, não basta demonstrar positivamente a presença dos requisitos e pressupostos legais da prisão preventiva; também é preciso indicar concreta e de forma individualizada a razão pela qual o risco de liberdade do suspeito não pode ser afastado pela imposição de medidas cautelares não detentivas. Tal exigência integra expressamente a legislação por meio do art. 282, §6º, do Código de Processo Penal:

Art. 282 § 6º. A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada.

Além de trazer um rol diversificado de medidas diversas da prisão no art. 319, o Código de Processo Penal prevê, no §1º do art. 282, que as medidas podem ser impostas cumulativamente, tudo para evitar o quanto possível a imposição de prisão.  

Note-se que o art. 282, §6º do Código de Processo Penal demanda que a fundamentação da decisão judicial seja de forma individualizada, isto é, faz-se necessário explicar o motivo pelo qual outra medida (ou outras medidas) não seria suficiente.

Evidentemente, não basta a referência genérica ao não cabimento das medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP. Será necessário dizer claramente o motivo pelo qual cada uma das possíveis medidas restritivas de liberdade pertinentes não seria adequada e suficiente para, no caso concreto, cumprir a finalidade que seria destinada à prisão.

Qualquer decisão judicial, proferida por juízo de primeiro grau ou por Tribunal que decretar pela primeira vez ou mantiver uma prisão preventiva, sem observar a essa condição legal imprescindível, não será uma decisão corretamente fundamentada.

Ademais, convém lembrar que todas as medidas cautelares no processo penal devem se decretadas a partir de uma necessidade e de sua adequação, tal como dispõe o próprio art. 282, incisos I e II, do Código de Processo Penal:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.     

A malfadada garantia da ordem pública, desde sempre criticada por tantos estudiosos do direito processual penal, deve sofrer limitações significativas – na lei e na prática judicial – a fim de que seus danos sejam ao menos minimizados.

Aliás, como afirma o Professor Paulo Silas Filho (2021, p. 210-211),

As leituras feitas sobre a ordem pública não prestam na ótica de um processo justo, igualitário e que garanta os direitos do indivíduo. Sob a égide constitucional, na qual se preza pela liberdade individual, respeita-se a presunção de inocência e se efetiva a todo e qualquer cidadão os seus direitos e garantias, de modo que, nesse contexto, a ‘ordem pública’ não sobrevive. Sequer deveria respirar, pois já nasceu viciada. Porém, segue sendo usada, aplicada e produzindo seus efeitos que insuflam o sistema prisional.

Na prática judicial brasileira, inclusive com assento na jurisprudência dos tribunais superiores, as diversas significações dadas à garantia da ordem pública como fundamento da prisão preventiva são “incoerentes e não passíveis de comprovação no curso processual, sendo decretadas com alicerces retóricos” (PRADO; SANTOS, 2018, p. 226).

Logo, é fundamental que se observe rigorosamente o disposto no art. 282, §6º do Código de Processo Penal, para tentar limitar o uso indiscriminado da prisão preventiva, especialmente quando justificada pela garantia da ordem pública, que nada mais é do que o discurso do medo e da segurança pública sobrepondo-se à presunção de inocência e tutela da liberdade.

O raciocínio tradicionalmente utilizado em muitas decisões deve ser invertido:

Não se deve aplicar a medida cautelar diversa da prisão preventiva quando não atendidos os requisitos legais desta última. Ao contrário, devem estar presentes todos os requisitos e fundamentos, de modo que a prisão só será utilizada quando outras medidas cautelares forem consideradas insuficientes e inadequadas. Em qualquer caso, como afirmado anteriormente, deverá o juiz justificar expressa e individualmente a inadequação e insuficiência de tais medidas. 

Assim explica Aury Lopes Junior (2021):

[...] A medida alternativa somente deverá ser utilizada quando cabível a prisão preventiva, mas, em razão da proporcionalidade, houver outra restrição menos onerosa que sirva para tutelar aquela situação.

Porém, conquanto vigente desde 2020, parece que alguns juízes e promotores ainda hoje (em 2022) não se atentaram para essa mudança tão expressiva da legislação processual penal. Verifica-se que muitos promotores continuam requisitando prisões preventivas e outros tantos juízes persistem em decretá-las, com base no antigo e defasado raciocínio do “se estão presentes os requisitos e fundamentos, é possível decretar”. 

Nesse contexto, não é incomum encontrar referências a livros e jurisprudência de Tribunais Superiores desatualizados, nos quais não consta ainda qualquer referência ao §6º do art. 282 do CPP.

A exigência inserida pela Lei “anticrime” para decretação de prisões preventivas ainda há de ser reconhecida pelos Tribunais Superiores, mas isso demanda, em primeiro lugar, que a discussão seja levada até suas instâncias. Por outro lado, juízes e promotores não precisariam esperar até que os Tribunais Superiores formassem jurisprudência nesse sentido, pois bastaria que eles, desde o primeiro grau, aplicassem a legislação vigente, inclusive com base na doutrina processual penal devidamente atualizada, considerando que a produção científica é mais célere, ao menos nesse caso, do que a produção de precedentes.

Por fim, não é demais indagar:

Diante da determinação legal para transformar o raciocínio empregado nas decretações de medidas cautelares, a fim de evitar ao máximo a prisão, porque há ainda promotores e juízes que insistem em manter a antiga forma de pensar e decidir pela prisão preventiva? 

Na realidade, a prisão preventiva ainda serve artificiosamente como uma antecipação de punição, já que existe uma verdadeira crença generalizada de que “a causa geradora da criminalidade (real ou imaginária) é a impunidade!” (CARVALHO, 2018, p. 81) e o senso comum vincula a liberdade da pessoa que responde a um processo criminal, ou figura como investigada em um inquérito policial, a uma condição de impunidade.

E no plano da crença, como se sabe, é difícil manter o argumento racional. 

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1 - Vide em: https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen

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CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM, 2020.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2021.

PRADO, Luiz Regis; SANTOS, Diego Prezzi. Prisão preventiva: a contramão da modernidade. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

SILAS FILHO, Paulo. A ordem pública como fundamento para a prisão preventiva no processo penal. Florianópolis: Habitus, 2021.

 

Rita de Cássia Maciel Franco
Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS. Curso completo de Tribunal do Júri pela Escola de Criminalistas- RS. Advogada Criminalista no Escritório Franco & Franco Advogadas.

Bruna Azevedo de Castro
Doutora em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Mestra em Direito Penal pela Universidade Estadual de Maringá - área de concentração: tutela de interesses supraindividuais.

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