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Um panorama dos atuais julgados do TJ/SP sobre o tema 796, do STF

A insegurança jurídica transmitida pelos Tribunais nos recentes julgamentos a respeito do tema 796 muito provavelmente fará com que o STF retome o julgamento atinente à “imunidade incondicionada” do ITBI.

27/10/2022

A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos municípios a competência para instituição do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), nos termos do seu art. 156, inciso II.

Em regra, a incidência tributária ocorre pela transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição, conforme também disposto nos incisos I, II e III do art. 35 do Código Tributário Nacional.

Dentre os atos onerosos de transmissão de propriedade de bem imóvel, que representam hipóteses de incidência do ITBI, encontra-se também a integralização de capital social de pessoa jurídica mediante bem imóvel.

A Constituição Federal prevê, ainda, hipóteses de imunidade do ITBI, dentre elas, a transferência de bens imóveis para a integralização do capital social de pessoa jurídica, quando a atividade não-preponderante da sociedade adquirente for a compra e venda, locação ou arrendamento mercantil (art. 156, §2º, inciso I, da Constituição Federal). No entanto, o intuito deste artigo é justamente analisar como a jurisprudência tem interpretado essa previsão constitucional.

Deste modo, antes do julgamento do Recurso Extraordinário 796.376/SC, que originou o Tema 796 do Supremo Tribunal Federal (STF), as Municipalidades, em geral, bem como os entendimentos da jurisprudência utilizavam da clássica interpretação sobre a preponderância ou não da atividade imobiliária para análise da imunidade do tributo, a qual é mais bem explicada nos parágrafos 1º e 2º, do art. 37, do CTN1.

Ou seja, para que uma sociedade pudesse se valer de uma norma de imunidade, ela estaria condicionada à comprovação de documentos contábeis ao Fisco Municipal, mediante abertura de um procedimento de fiscalização, submetendo cópias dos livros fiscais, os balanços patrimoniais, os demonstrativos de resultado do exercício (DRE) e outros documentos, com a finalidade de demonstrar que sua receita operacional não era preponderantemente imobiliária. Somente assim, teria direito à imunidade e devendo comprovar documentalmente esse fato por dois (ou três) exercícios seguintes2, nos termos dos §§ 1º e 2º, do art. 37, CTN, a depender da hipótese.

Por outro lado, com a edição do Tema 796, firmado pelo STF sob repercussão geral, e o seu respectivo julgamento, em agosto de 2020, restou decidido que "a imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

De acordo a fundamentação do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes, foi realizada uma distinção entre as imunidades para integralizações ("realização de capital") e fusão, cisão ou incorporação ("incorporação de bens").

O Ministro concluiu, em seu voto, que a hipótese de imunidade relativa à integralização de capital seria incondicionada, enquanto, na hipótese de fusão, cisão ou incorporação, a imunidade só seria aplicável caso a sociedade incorporadora do patrimônio imobiliário não desenvolvesse atividade preponderantemente imobiliária, conforme trechos abaixo do voto vencedor:

"Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso 'I — nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil' — revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão 'nesses casos' não alcança o 'outro caso' referido na primeira oração do inciso I, do §2º, do artigo 156 da CF. (...) Ou seja, a exceção prevista na parte final do inciso I, do §2º, do artigo 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte. (...) Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito"

Dessa forma, entendeu-se, em um primeiro momento, que o voto vencedor havia afastado a incidência do ITBI na integralização de imóveis ao capital social, na medida em que esta hipótese não seria, na interpretação dada ao inciso I, condicionada à análise da atividade preponderante da sociedade. Nesta perspectiva, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), no exercício de 2021 passou a fundamentar os acórdãos com base no Tema 796 do STF, sustentando que a integralização de capital social estaria sempre protegida pela imunidade, de modo incondicionado.

Cita-se, como exemplo, o julgamento do agravo de instrumento 2042850-06.2021.8.26.0000 de lavra do Desembargador Relator Kleber Leyser de Aquino, da 14ª Câmara de Direito Público do TJSP, interposto em mandado de segurança, no qual, o contribuinte requereu que fosse concedida a antecipação da tutela recursal, a fim de obstar a incidência de ITBI sobre a conferência de bem imóvel a título de integralização de capital social, sob o fundamento que a imunidade em questão seria incondicionada, neste caso.

O v. acórdão mencionado deu provimento ao agravo de instrumento do contribuinte, concedendo a liminar, em mandado de segurança, para afastar a incidência de ITBI, reconhecendo, de fato, a imunidade incondicionada. Em sua fundamentação, o E. Tribunal de Justiça decidiu, em abril de 2021, que a análise a respeito da existência, ou não, de atividade preponderantemente imobiliária da sociedade deveria ocorrer somente nas hipóteses de imunidade para atos de fusão, incorporação ou cisão. Segundo o referido acórdão, ainda, a imunidade seria incondicionada nos casos de integralização de capital, de acordo com o Tema 796 do STF.

No mesmo sentido, houve outras decisões similares no TJSP durante o ano de 2021.

Em contrapartida, no transcorrer do exercício de 2022, houve uma mudança de entendimento jurisprudencial no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Os Desembargadores(as) das Câmaras de Direito Público compreenderam que o Tema 796, do STF, na verdade, não teve o condão de atribuir uma imunidade incondicionada à integralização de capital, mas somente teve por objeto estabelecer que, caso um imóvel seja integralizado a uma sociedade por valor superior ao valor do capital social, gerando excesso de capital, sobre esse excesso (reserva de capital) deverá incidir o ITBI, mesmo que haja hipótese de imunidade do ITBI na integralização do referido imóvel.  

O fundamento para isso decorreu da conclusão de que a fundamentação dada pelo Ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, a respeito da suposta imunidade incondicionada conferida à integralização de capital não foi replicada na parte dispositiva e nem tampouco na tese firmada pelo Tema 796.

Verifica-se, portanto, que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo retomou o entendimento anterior, qual seja, o de determinar se o sujeito passivo exerce atividade econômica preponderantemente imobiliária ou não para fins de admitir a imunidade do ITBI na realização de capital.

No agravo de instrumento 2031375-19.2022.8.26.0000, julgado em 23 de junho de 2022, a Relatora Tania Mara, da 15ª Câmara de Direito Público entendeu que a imunidade prevista no art. 156 da Constituição Federal não é incondicionada, devendo ser analisada a atividade econômica preponderante da pessoa jurídica tributada. No caso em concreto, o sujeito passivo omitiu-se em responder à fiscalização do ente tributante, de forma que esta interpretou ter havido presunção de legitimidade da tributação, diante da omissão. Especificamente sobre a inaplicabilidade do Tema 796, do STF, a Desembargadora justificou da seguinte forma:

“(...) Não há efeito vinculante na fundamentação expendida pelo E. Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 796.376/SC, sede em que fixado o Tema 796 de Repercussão Geral. Isso porque, a menção de que o art. 156, § 2º, I da Constituição Federal estabeleceria duas hipóteses de imunidade do ITBI, uma incondicionada (para os casos de mera integralização de quotas sociais através de bem imóvel), e outra condicionada (para as hipóteses de cisão, fusão, incorporação e extinção de pessoa jurídica, desde que sua atividade preponderante não recaísse sobre compra e venda dos bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil), se consubstanciou em mera questão obter dicta (argumento de passagem, em nada relacionado ao objeto da causa). Ademais, essa questão não se relacionava à matéria afetada ao Tema 796 de Repercussão Geral, tampouco à tese fixada (...).”

Nesta mesma perspectiva, a Desembargadora Adriana Carvalho, da 14ª Câmara de Direito Público, na apelação 1057676-89.2021.8.26.0053, julgada em 03 de junho 2022, fundamentou que, para fins de imunidade tributária, prevalecerá a análise da atividade preponderante, ou seja, aquela demonstrada e exercida em um período considerável para apuração da incidência do tributo.

Na apelação 1074275-06.2021.8.26.0053, julgada em 27 de junho de 2022, o Desembargador Burza Neto, da 18ª Câmara de Direito Público constatou que o sujeito passivo possuía intenção de burlar o sistema tributário, visto que o seu objeto social constituía em comercialização de bens próprios, locação de bens e participação em outras sociedades nacionais ou estrangeiras, na qualidade de sócia, acionista ou quotista, não havendo que se falar em concessão de imunidade, ante a preponderância da atividade imobiliária. Logo, o Tema 796 do STF não foi aplicado.

Diante disso, observamos que, atualmente, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem consolidado entendimento no sentido de que as sociedades possuem o direito à imunidade do ITBI desde que comprovem a não-preponderância de suas receitas operacionais, conforme já se entendia antes do julgamento do Tema 796 do STF.

Porém, havendo integralização de bem cujo valor exceda o valor da própria integralização, o excesso que não se destinou à integralização do capital deverá ser tributado e somente este ato (integralização) é imune, desde que comprovado que a receita da empresa não é preponderantemente imobiliária. A título exemplificativo, caso a sociedade “A” possua um capital de R$ 100 mil a integralizar e o sócio integralize um imóvel no valor de R$ 120 mil, deixando R$ 20 mil como reserva de capital, mesmo que ela comprove a não preponderância, deverá recolher ITBI sobre os R$ 20 mil, conforme entendimento atual da jurisprudência.

Diante deste “novo” panorama jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, adentra-se em uma sinuosa insegurança jurídica sobre o tema.

De acordo com Eduardo Cambi (2001), é comum a existência da chamada “jurisprudência ziguezague”, o que acaba por comprometer a credibilidade do Poder Judiciário, tornando-o um sistema de “loteria”, comprometendo assim o princípio da segurança jurídica e, por conseguinte, o Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, recorda-se que o art. 926 do Código de Processo Civil impõe, expressamente, que os tribunais uniformizem a sua jurisprudência e que a mantenham estável, íntegra e coerente. Deste modo, a insegurança jurídica transmitida pelos Tribunais nos recentes julgamentos a respeito do Tema 796 muito provavelmente fará com que o STF, futuramente, retome o julgamento atinente à “imunidade incondicionada” do ITBI, mencionada na fundamentação do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes.

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1 “Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

 

§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

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BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE 796.376/SC. Relator: Marco Aurélio. Relator do Acordão: Alexandre de Moraes (voto vencedor), 05 ago. 2020, publicado em 25 ago. 2020. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=753582490.

BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo 2042850-06.2021.8.26.0000. Relator: Kleber Leyser de Aquino. 23 abr. 2021. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=14565681&cdForo=0.

BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento 2031375-19.2022.8.26.0000. Relatora: Tania Mara Ahualli. 23 jun. 2022. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=15790709&cdForo=0.

BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1074275-06.2021.8.26.0053. Relator: Burza Neto. 27 jun. 2022. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=15797360&cdForo=0.

BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1057676-89.2021.8.26.0053. Relatora: Adriana Carvalho. 03 jun. 2022. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=15735365&cdForo=0.

CAMBI, Eduardo. Jurisprudência Lotérica. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, ano 90, v. 786, p. 108-128, abr. 2001.

Cristiano Padial Fogaça
Sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Advogado. Mestre em Direito Comercial pela PUC-SP. Professor no curso de especialização do COGEAE/PUC-SP.

Matheus Lira
Advogado e sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Gustavo Rocco Corrêa
Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU; Pós-graduado em Processo Civil - EBRADI; Pós-graduando em Direito do Consumidor pela Universidade Candido Mendes.

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