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Critérios para fixação fática das premissas que autorizam o pedido de reequilíbrio econômico-financeiro

Considerando a grande dificuldade de empresas e órgãos da Administração Pública em avaliar as condições autorizativas para a concessão de reequilíbrio econômico-financeiro, é preciso fixar balizas tanto para os requerentes dos pedidos quanto para os órgãos que vão avaliar estes pedidos.

26/10/2022

Introdução

Se há uma constante no mercado que não pode ser ignorada é a do aumento de preços. Todos os estudos e métricas em qualquer recorte de tempo apresentarão exatamente a mesma constante: os preços sobem continuamente.

Isso significa dizer que o valor de um bem ou serviço de hoje será inexoravelmente mais caro ano que vem. Quando tal fato não ocorre é que se está diante de excepcionalidade digna de ser amplamente noticiada.

Exatamente partindo de tal premissa que a legislação administrativa prevê a figura do reajuste contratual, que nada mais é do que a recomposição inflacionária do contrato por meio de índices oficiais que medem regularmente essa variação de preços. Essa alteração é automática e independente de qualquer outro fator que não seja o implemento do tempo contratual (normalmente 12 meses).

Se a variação pelo índice escolhido contratualmente for ligeiramente inferior do que a variação sentida pelo fornecedor da Administração, não há absolutamente nada a fazer, pois essa diferença ingressa na margem de risco do negócio. Assim, neste cenário, o fornecedor terá de suportar esta diferença e a Administração não tem obrigação de lhe recompor eventual redução da margem de lucro.

Por sua vez, se a diferença entre a variação inflacionária e os custos reais do contrato for sensivelmente diferente, causada por elementos extraordinários e alheios à conduta dos contratantes, abre-se a possibilidade de discussão sobre reequilíbrio contratual. A situação do reequilíbrio não depende do fator tempo e pode ser avaliada a qualquer momento, desde que se verifique a ocorrência de circunstância externa extraordinária que impacte de forma insuportável a viabilidade do contrato.

Ocorre que conceitualmente é muito simples estabelecer esta diferença. A complexidade da matéria se verifica em termos pragmáticos, quando um fornecedor precisa materializar esta diferença perante a Administração Pública ou quando a Administração precisa avaliar e decidir um pedido desta natureza apresentado por um fornecedor. E são essas balizas que se pretende tratar no presente artigo.

Das premissas fáticas para o reequilíbrio

A análise primária da viabilidade de um reequilíbrio econômico-financeiro está na análise da variação concreta do custo, de modo que é preciso destacar a metodologia de cálculo de avaliação de uma variação de preço de mercado.

Assim, a variação de mercado é realizada, em regra, por meio do sistema de probabilidade teorizado por Gauss, que criou o mecanismo de desvio padrão. Gauss, nas suas experimentações, conseguiu demonstrar que existe uma métrica de análise de desvios padrão.

A premissa, de forma relativamente simplificada, é de que praticamente todos os movimentos e variações estatísticos são não lineares, ou seja, não obedecem a uma progressão rígida ou aritmética. Por sua vez, apesar da não linearidade, as variações estatísticas permitem criar padrões previsíveis de comportamento não linear, constituindo-se um espectro padrão de variação considerado “normal”.

Este espectro constitui a Curva de Gauss, que pode assim ser demonstrada:

(Imagem: Divulgação)

De regra, qualquer variação não linear normal será observável dentro da Curva de Gauss, que significa estar abaixo da linha de variação no ponto zero ao ponto um (-4a a +4a). Veja-se que dentro da curva, compreende-se, de regra, mais de 99% dos cenários possíveis de uma variável. 

A falha da Curva de Gauss é que ela despreza os 0,006% de resultados que estão “fora da curva”, menosprezando-os para garantir a concentração e previsibilidade dos resultados. Neste sentido, a curva Gaussiana acima seria disposta graficamente assim:

(Imagem: Divulgação)

Conforme se observa, o ponto fora da curva (outlier) é desconsiderado para a formatação da variável.

O problema desta premissa é que não raro o ponto fora da curva não só não pode ser desconsiderado, como é o ponto responsável por alterar todo o cenário da variável inteira, ressignificando toda a cadeia de valor dos outros 99,994% dos itens. É neste cenário que se enquadra o reequilíbrio econômico e financeiro dos contratos administrativos.

A curva de Gauss, apesar desta ineficiência, é a única capaz de representar os elementos previsíveis, deixando o analista com a clareza de que é possível a existência de um único ponto fora da curva capaz de alterar absolutamente todo o cenário. Para que esta absoluta imprevisibilidade não elimine por completo a segurança jurídica dos contratos, a lei prevê o direito/dever de reequilíbrio dos contratos no momento em que este ponto fora da curva se fizer presente em uma relação contratual administrativa.

Da variação “fora da curva” de preços (outlier): análise concreta do caso do leite

A pandemia da Covid-19 é reconhecida como o fato mais extraordinário e imprevisível da contemporaneidade. O avanço da medicina e dos padrões sanitários mundiais tornava absolutamente leviano o pensamento de que haveria uma doença capaz de paralisar o mundo. Pois bem, a chance de 0,000001% de incidência de uma pandemia se implementou, derrubando todas as previsões então vigentes e superando, em resultados negativos, até os mais pessimistas padrões de análise. absolutamente leviano o pensamento de que haveria uma doença capaz de paralisar o mundo. Pois bem, a chance de 0,000001% de incidência de uma pandemia se implementou, derrubando todas as previsões então vigentes e superando, em resultados negativos, até os mais pessimistas padrões de análise.

A partir da sua instalação, os efeitos, dado o nível de peculiaridade da situação, foram absolutamente imprevisíveis, de tal modo que, mesmo depois de declarada formalmente a situação de emergência pública em saúde, não era possível saber os efeitos disso em quaisquer dos setores da sociedade. Alguns setores, como o de tecnologia, se beneficiaram amplamente.

O setor de alimentação, visto como essencial, tinha uma previsão de impacto relativo. Entretanto, o que se viu foi a instalação de uma impactação na cadeia produtiva de alimentos não documentada no ocidente nos últimos 500 anos.

Para exemplificar o cenário que se está tratando no presente texto, serão utilizados os dados da variação dos preços do leite e sua diferenciação na quadra histórica em questão. Os dados apresentados foram produzidos pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), que é parte do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo (USP). O referido centro tem amplo e detalhado estudo sobre diversos itens, dentre eles o leite1.

Da análise dos dados do referido Centro de pesquisa, extrai-se o seguinte gráfico de dispersão:

(Imagem: Divulgação)

No gráfico, estão representados, por cada ponto, os preços médios semestrais do litro do leite no Brasil entre janeiro de 2012 e julho de 2022. Ou seja, o cenário abarca uma projeção de variação não linear de 10 anos e 6 meses.

O último ponto, o ponto fora da curva (outlier), representa o semestre de janeiro/2022 a julho/2022.

Conforme se verifica, o período em questão impôs uma variação absolutamente fora da curva de variação normal para o setor. Logo, referida variação não era sequer minimamente passível de se incluir no espectro de previsibilidade Gaussiana e, por isso, não pode ser exigido do fornecedor da Administração Pública que suporte este nível de variação imprevisível.

A representação gráfica dos dados evidencia que houve uma alteração de cenário absolutamente desproporcional e que, exatamente por isso, impacta a normalidade e a previsibilidade da execução do contrato. O primeiro elemento de sustentação da viabilidade de um pedido de reequilíbrio econômico-financeiro para os agentes deste setor está implementado.

Aplicação contratual pragmática:

Com a evidência dos elementos que caracterizam a situação extraordinária, é preciso aplicar este cenário à realidade do fornecedor que pleiteia o reequilíbrio. Isto porque, como destacado acima, o cenário extraordinário pode ser extremamente desfavorável ou extremamente favorável a depende do objeto que se analise.

Tal aplicação concreta se dá, como destacado no início, com a análise do custo operacional básico do fornecedor, como insumos, matéria prima, custo de transporte, importação, mão de obra, etc. Retomando o exemplo do leite, veja-se um recorte de cenário para análise de um item específico (leite em pó integral) dentro do item macro (leite).

O gráfico abaixo demonstra a evolução dos custos do insumo do leite em pó integral no período compreendido entre o primeiro trimestre de 2021 e terceiro trimestre de 2022:

(Imagem: Divulgação)

Aplicando esses mesmos dados concretos, agora com um produto específico, é possível chegar a um gráfico de dispersão deste produto, com o seguinte resultado:

(Imagem: Divulgação)

Veja-se que promovendo uma análise comparativa entre o ambiente macroeconômico destacado no início e a realidade microeconômica de um fornecedor de leite em pó integral, tem-se um retrato fiel do ponto fora da curva gaussiana. Logo, de forma documental e gráfica, é possível observar a concretude da implementação do fato extraordinário e absolutamente destacado de qualquer margem de probabilidade “normal” que autoriza a conclusão pela necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro de qualquer contrato deste segmento.

A partir da visualização dos dados concretos, é possível fazer a conexão com a fundamentação jurídica, tal como previsto no ordenamento administrativo. É a demonstração destes elementos que configuram a denominada “álea econômica extraordinária e extracontratual” prevista no art. 65, II, “d” da lei 8.666/93.

A nova lei de licitações, lei 14.133/21, traz um refinamento deste instituto, ao tratar da matriz de riscos e sua alocação (art. 103). Entretanto, o mesmo dispositivo deixa claro que a matriz de riscos trata dos riscos contratuais previstos e presumíveis, retomando todo o cenário contratual de equilíbrio para o ponto inicial.

Ou seja, a álea contratual sobre o não previsto e não presumível permanece em aberto e não há como ser diferente, dado que está a se tratar exatamente daquilo que não é possível prever. Fosse possível, estaria alocada na matriz de riscos. Não por outra razão, o art. 129, II, “d”, da nova lei, traz também a previsão de reequilíbrio contratual para os eventos não cobertos na matriz de alocação de riscos contratuais.

Assim, o cenário para a demonstração, pedido e julgamento de pedidos de reequilíbrio na nova lei permanece com as mesmas premissas atuais, complementando-se apenas pela superação da identificação da matriz de riscos nos novos contratos que já a contemplem.

Conclusão

A álea contratual é uma constante nas relações jurídicas e com a Administração Pública não seria diferente. Exatamente por isso, o ordenamento deve promover instrumentos que forneçam reforço da segurança jurídica dos contratos, tanto para a Administração quanto para o fornecedor.

Interessa à Administração que os contratos sejam cumpridos e interessa ao fornecedor obter lucro com o cumprimento do seu contrato. Ainda que o empreendedor tenha por característica a assunção do risco do negócio, tal responsabilidade não pode ser elevada ao máximo grau de lhe impor todo o risco do contrato, ainda mais quando se trata de fator externo.

Até porque, fosse assim, a Administração careceria de fornecedores que seriam incentivados a migrar para atividades de menor risco contratual. Logo, em última instância, a figura do reequilíbrio econômico-financeiro é um instrumento de proteção da própria Administração Pública e, por isso, deve ser tratada com a maior seriedade.

A complexidade que deve ser superada pelos agentes envolvidos é a de evitar a mera repetição da previsão jurídica do instituto e ser capaz de demonstrar, em termos pragmáticos, a sua implementação fática. Para isso, é preciso assumir que o direito só se concretiza com dados e eles devem ser apresentados para a Administração Pública com a devida clareza.

O critério acima demonstrado não é único, mas um caminho que pode servir de baliza segura para a abordagem do tema, fugindo do mero parafraseamento legal para a demonstração sustentável de dados. Com isso, o fornecedor tem a segurança da qualidade do pedido e a Administração tem o ferramental para a devida fundamentação sobre a concessão ou negativa no momento de decidir sobre o reequilíbrio econômico-financeiro solicitado pelo fornecedor.

___________________

1 Os dados utilizados estão disponibilizados em: https://cepea.esalq.usp.br/br/indicador/leite.aspx

Hudson de Oliveira Cambraia
Advogado, mestre em Direito Público, formado em Privacidade de Dados e Sistemas de Segurança da Informação pela Privacy Academy/IBM, com certificação Internacional em Segurança da Informação e Proteção de Dados pela EXIN.

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