Migalhas de Peso

A usucapião especial urbana individual por abandono do lar e seus contornos jurídicos

Ao se debruçar sobre o instituto da usucapião, não é incomum verificar que a doutrina dominante o coloca como um dos principais efeitos da posse.

20/10/2022

A expressão usucapião vem do latim, usucapio, significando tomar pelo uso, adquirir pelo uso. Segundo doutrina moderna, constitui situação de aquisição do domínio, ou mesmo de outro direito real, pela posse prolongada, sendo permitido, pela legislação, que determinada situação de fato, que se alongou por determinado intervalo de tempo, se transforme em uma situação jurídica.

Em sua essência, a usucapião acaba atendendo a função social da propriedade, uma vez que se garante a estabilidade da propriedade, após o decurso de determinado tempo, passando-se a não mais se questionar eventual ausência ou vícios no título de posse.

Percebe-se, de forma clara, que o instituto da usucapião, envolve, direta e indiretamente, direitos amplamente consagrados e garantidos no ordenamento jurídico brasileiro, tal como o direito à propriedade. A rigor, ao consagrar os direitos da pessoa humana, tidos como fundamentais, enuncia o art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes” (BRASIL,1988).

Como se não bastasse, além da previsão no caput do artigo referenciado, entendeu-se por prudente reiterar a proteção à propriedade por meio do inciso XXXIII, da Carta Magna, prevendo é garantido o direito de propriedade.

A partir daí, atribuindo a devida relevância a tal direito (propriedade), o próprio doutrinador originário pautou-se por estabelecer, no inciso XXIII, do mesmo artigo, a necessidade de a propriedade atender sua função social, ou seja, do dever de ser observado, pelo proprietário, não só os seus interesses particulares, mas também a compatibilização destes com os de outros cidadãos não proprietários que, em um regime democrático de direito, precisam de idêntico respeito e consideração por parte do sistema estabelecido para regulação da sociedade como um todo.

Voltando aos olhos para referida questão, o Supremo Tribunal Federal lançou importantes contornos sobre a função social da propriedade e existência de verdadeiro dever social, dizendo (BRASIL, 2004):

O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII) legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambientes constituem elementos de realização da função social da propriedade. (STF, ADI 2.213-MC, Rel. Ministro Celso de Mello, j. 04.04.202, DJ 23.04.2004). 

A ideia de hipoteca social estabelecida no entender do STF é, tanto do ponto de vista teórico quanto do prático, bastante interessante, pois demonstra claramente amplitude que a expressão “função social da propriedade” exercer na perspectiva civil-constitucional.

Na linha dos entendimentos apresentados, pode-se notar que o ordenamento jurídico garante uma ampla proteção da propriedade não somente no tocante aos interesses individuais do proprietário (como, por exemplo, na inviolabilidade domiciliar), mas também no que toca à proteção dos direitos da coletividade, o que também exprime muito bem o conteúdo de sua função social.

Tal premissa evidencia, também, que embora seja um direito tutelado pelo sistema jurídico, este não é absoluto. E, não sendo absoluto, necessário se faz a harmonização deste com outros existentes, inclusive, no âmbito coletivo.

Além disso, doutrina majoritária abre parêntese para incluir, ao lado da função social da propriedade, também necessidade de observância de sua função socioambiental, de modo a estabelecer o dever de se conciliar o exercício do direito de propriedade com a proteção do meio ambiente, ao passo que, condutas praticadas no exercício do direito de propriedade que contrariem a proteção ambiental, claramente se amoldam contrárias à sua função social (ou socioambiental).

Também no mesmo caminhar, a usucapião se coloca como mecanismo limitador do direito de propriedade, e mais, consagrando a função social estabelecida em nosso ordenamento jurídico. Tanto é assim que o legislador originário achou por bem incluí-la na CF/88, estando prevista nos arts.183 e 191. 

1 DIREITO À USUCAPIÃO E SUAS MODALIDADES QUANTO A BENS IMÓVEIS

Ao se debruçar sobre o instituto da usucapião, não é incomum verificar que a doutrina dominante o coloca como um dos principais efeitos da posse. O professor Lafayette Rodrigues Pereira, define a usucapião da seguinte forma (PEREIRA, 2004):

A prescrição aquisitiva (usucapio) é incontestavelmente um modo particular de adquirir o domínio. Em verdade ela cria para o prescribente direito que não preexistiam em seu patrimônio. Se esses direitos pudessem ser atribuídos a outra causa geradora, como à ocupação, testamento ou tradição; a prescrição ficaria sem objeto, porquanto o seu ofício é exatamente o de suprir a omissão ou a insuficiência de outros modos de adquirir. Neste sentido, definem os jurisconsultos: ‘modo de adquirir a propriedade pela posse continuada durante um certo lapso de tempo, com os requisitos estabelecidos em lei. 

Tomando por empréstimo os dizeres do nobre jurista, consigne-se que, ao estabelecer que a usucapião supre omissão ou a insuficiência de se adquirir a propriedade de um bem por outro modo, tem-se necessariamente o estabelecimento de requisitos que, somente se presentes, garantirá a aquisição da propriedade por esse modo. Por conseguinte, sendo diferentes os requisitos para situações também distintas, par fins didáticos, achou-se por bem criar modalidades de usucapião, cada uma com suas especificidades.

Em relação à bens imóveis, o Código Civil consagrou as seguintes modalidades de usucapião: a) usucapião ordinária (art. 1.242 do CC); b) usucapião extraordinária (art. 1.238 do CC); c) usucapião especial rural (art. 1.239 do CC, com previsão também na Constituição Federal); d) usucapião especial urbana (art. 1.240 do CC, também com previsão no Texto Maior). Além destas, há também a usucapião indígena (Lei 6.001/73 – Estatuto do Índio) e a usucapião coletiva (lei 10.257/01 – Estatuto da Cidade).

Dentro das modalidades de usucapião acima descritas, há subclassificações criadas para regulamentar situações ainda mais específicas. O estudo presente se limitará à: 

Análise usucapião familiar ou usucapião por abandono do lar, sendo esta uma ramificação da usucapião especial urbana individual (pro misero) ou usucapião constitucional, a qual foi inserida no art. 1.240-A do Código Civil pela lei 12.424, de 16 de junho de 2011. 

2 USUCAPIÃO FAMILIAR OU USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR

Um sistema jurídico, para se manter efetivamente aplicável, necessariamente deve garantir concomitante atualização a fim de alcançar a manutenção da justiça aos casos cotidianos que, na mesma linha, se modernizam e se evoluem dia a dia.

Referida atualização jurídica, quando ocorrente, deve observar, dentre outros vieses, os princípios basilares do próprio ordenamento, afim de se manter a base central do sistema já estabelecido.

É justamente neste sentido que se observa a criação da nova modalidade de prescrição aquisitiva denominada de usucapião familiar ou por abandono do lar, no qual se coloca, como ponto principal, a solução de problemas sociais e financeiros decorrente do abono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiro. A tal respeito, a doutrinador Maria Helena (DINIZ, 2014) destaca que:

A novel usucapião, ao invadir a órbita do direito de família, atende à função social da propriedade por garantir a moradia daquele que exerce a posse do imóvel, protegendo a comunidade familiar, apesar de violar normas sobre propriedade e regime matrimonial de bens. 

Verifica-se, de forma clara, que o legislador, utilizando dos requisitos da especial urbana individual, instituiu nova sub-modalidade de tal instituto, entretanto, com viés direcionado à proteção da família, possuindo verdadeira intenção de salvaguardar o direito à moradia daquele cônjuge ou companheiro que permaneceu no imóvel e, ainda, de garantir proteção à família que foi abandonada.

Sobre o assunto, Mario Delgado, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM (USUCAPIÃO..., 2017), assim pontuou:

Na gênese, o instituto foi pensado para amparar mulheres de baixa renda, beneficiárias do Programa Minha Casa Minha Vida, abandonadas pelos respectivos parceiros conjugais, propiciando a aquisição da propriedade exclusiva do imóvel residencial por meio do instituto da usucapião.

Não restam dúvidas de que o objetivo do legislador foi justamente regularizar questões habitacionais, estabelecendo determinadas peculiaridades para situações em que, havendo separação de fato ou até divórcio, o cônjuge que se manteve residindo no imóvel abandonado polo seu ex-consorte possa pleitear a usucapião, desde de que comprove o preenchimento dos pressupostos necessários.

Neste ponto, também há de considerar que, em determinadas situações, o abandono/desinteresse do cônjuge traz demasiado comprometimento quanto à regularização do imóvel adquirido pelo até então casal, em especial no tocante àqueles adquiridos pelo programa habitacional “minha casa minha vida”. Assim sendo, a usucapião familiar garante a resolução da situação e, de forma transversa, a função social da propriedade. 

2.1 Requisitos da usucapião familiar ou usucapião por abandono

Didaticamente, socorre-se ao teor do art. 1.240-A e parágrafo primeiro, do Código Civil, o qual prevê os requisitos necessários para a aquisição do direito à usucapião familiar (BRASIL, 2002), in verbis:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1.º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

Latente é a aproximação do instituto com a usucapião especial urbana. De início, cite-se a metragem de 250m², que é exatamente a mesma, visando o legislador em manter a uniformidade administrativa. Aqui também se segue a regra de que, em se tratando de imóvel em condomínio edilício, será descartado, para fins de apuração da metragem, a área comum do imóvel.

Observe-se também que o instituto somente poderá ser concedido uma única vez, e ainda, desde que o possuidor não tenha um outro imóvel urbano ou rural. Essa característica, inclusive, está prevista em todas as demais usucapiões que vise a moradia.

A novidade mais acintosa consiste na redução do prazo para singelos dois anos, o que torna, tal categoria de usucapião, a que possui menor prazo entre todas as modalidades existentes, inclusive a de bens móveis.

O abandono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros, caracterizada pela omissão ou desídia, é fator preponderante para a subsunção da norma, somado ao estabelecimento da moradia com posse direta. Neste ponto, sendo necessária a posse direta, não se permite que o cônjuge aproveite a posse de terceiro, bem como alugue ou ceda o bem outrem, caso contrário, estar-se-ia desvirtuando o real interesse da norma que é o de garantir a unidade familiar.

De igual modo, exige-se a norma que posse seja exclusiva pelo consorte, não sendo possível, portanto, que um terceiro que venha a residir no imóvel após o abandono, vala-se de tal instituto na figura de novo cônjuge ou novo companheiro. 

Outro ponto que merece destaque é para o fato de que, tal como os demais, a posse deve ser mansa e pacífica, não sendo garantido tal direito se o ex-cônjuge ou o ex-companheiro tenha requerido seus direitos de coproprietário. Neste sentido, vejamos o seguinte apontamento (MANJINSKY, 2013):

Tal como os demais, a posse deve ser mansa e pacífica, “sem litígio”, sem oposição, ou seja, somente será cabível se o ex-cônjuge não requereu seus direitos de coproprietário judicialmente (venda ou aluguéis), e se não foi realizada nenhuma ação possessória ou reivindicatória.

A co-propriedade com o ex-cônjuge ou ex-companheiro também é outro requisito indispensável, pois a simples posse não garante a modalidade ora estudada, possibilitando somente as outras espécies de usucapião. 

De forma prática, a usucapião familiar aproveita os contornos da usucapião urbana individual para garantir aplicabilidade social a imóvel pertencente ao cônjuge que continua nele morando após o abandono do lar praticado pelo outro cônjuge. Uma vez preenchido os requisitos acima destacados, será garantido ao indivíduo a propriedade integral do bem.

3. ASPECTOS PONTUAIS FRENTE AOS CONTORNOS CONTEMPORÂNEOS

Tomando por base os transtornos para a regularização imobiliária decorrente da ruptura do casamento ou da união estável, o legislador tratou por estabelecer uma saída política para fins de se dar legitimidade ao estado da posse dos imóveis abandonados.

Fundamentado no viés protecionista à figura da família como um todo, visando não só proteger a figura do cônjuge abandonado, mas também de eventuais filhos do casal que, diante da ruptura da relação até então existente entre os pais, já têm demasiados traumas decorrentes, constatou-se que a manutenção de certas situações, tal como a ausência do direito à propriedade por parte do ex-consorte, majorava ainda mais referida situação de precariedade.

Isto posto, diante do abandono do bem, em muitos casos, o outro cônjuge não regulariza a posse do consorte, seja lhe autorizando o comodato ou o cobrando pelo uso exclusivo, situação que enseja instabilidade ao consorte que permaneceu com a posse do imóvel, impedindo-o de o alienar, promover investimentos ou simplesmente regularizar uma situação de posse exclusiva.

De igual modo, àquele que ficou com a posse do bem, antes da edição da norma, não era possibilitado regularizar a situação, uma vez que não se pode adquirir, pelo uso, um bem que lhe pertence, embora em copropriedade, tal como ocorre, por exemplo, com o herdeiro, que tem que fazer o inventário e a partilha dos bens deixados pelo autor da herança, não podendo regularizar o bem pela usucapião, pois já é proprietário e não posseiro.

Foi nesse compasso em que se teve a instituição do art. 1.240-A, do Código Civil, prevendo a usucapião familiar, a qual possui, como base, a ocorrência de abandono por parte de ex-cônjuge ou ex-companheiro, tendo sido observados os demais requisitos atinentes à especial urbana individual.

De toda forma, ao passo que o legislador teve tal precaução, este deixou determinadas arestas que, diante dos casos concretos, necessitaram (e ainda necessitam) do auxílio interpretativo da doutrina e do judiciário a fim de se obter o melhor resultado quando da aplicação do instituto.

Conforme estudado, um dos requisitos para a concessão da usucapião familiar é a necessidade de o imóvel ter no máximo duzentos e cinquenta metros quadrados. Entretanto, a fixação da metragem realizada pela norma deixa de observar que, em muitos casos, estar-se-á diante da aplicação do instituto em imóveis de alto valor, o que foge do objetivo principal de tal modalidade de prescrição aquisitiva.

De todo modo, ao que parece, o legislador não se importou com tal situação, ainda que tenha flexibilizado o prazo para configuração do instituto, tendo mantido, seja qual for o padrão/valor do imóvel, a possibilidade de aplicação da usucapião familiar se o imóvel possuir até duzentos e cinquenta metros quadrados.

Inclusive, a própria questão da exiguidade do prazo bienal, porquanto bem inferior aos demais prazos de usucapião, tem sido objeto de questionamento por uma parte da doutrina a qual argumenta que tal previsão tem abalado o princípio da segurança jurídica, permitindo a perda da propriedade comum em um prazo muito curto, durante o qual poderia ocorrer, até mesmo, a reconciliação do casal.

Embora se tenha tal posicionamento doutrinário, também aqui o que se verifica é a manutenção de todos os aspectos do art. 1.240-A do Código Civil por parte da jurisprudência e da doutrina majoritária, inclusive, do prazo de 02 (dois) anos para a subsunção da norma. Aliás, o objetivo do legislador quando da emissão da norma justifica a definição de prazo inferior aos demais casos de usucapião, de forma que o embate dos fins sociais da propriedade e da proteção familiar torna-se superior à segurança jurídica que, neste caso, não é esquecida, sofrendo apenas uma mitigação.

A definição de aplicação dessa modalidade de usucapião estritamente para casos de imóveis urbanos é outro ponto que tem sido questionado pela doutrina, uma vez que exclui os moradores de áreas rurais, provavelmente os mais necessitados desse tipo de tutela protetiva. De toda forma, não houve qualquer alteração na legislação a respeito da inaplicabilidade desse instituto para imóveis rurais.

Outro ponto que gerou questionamento foi a possibilidade de aplicação do instituto em relações homoafetivas. De logo, considerando o avanço legislativo afim de reconhecimento das relações homoafetivas, doutrina majoritária manifesta entendimento no sentido da aplicabilidade do comando também a tais relações. A tal respeito, Flávio Tartuce assim nos ensina (TARTUCE, 2022):

O comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, equiparada à união estável. Fica claro que o instituto tem incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu âmbito de aplicação. Nesse sentido, precioso enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil, a saber: “A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas” (Enunciado n. 500). 

Enfatize-se, em outra análise, que em caso de existência de disputa, seja ela judicial ou extrajudicial, referente ao imóvel, descaracterizado restará a posse ad usucapionem, não sendo o caso de subsunção do preceito. Neste tocante, o cônjuge que tenha abandonado o lar, pode, ano a ano, promover notificação ao ex-consorte a fim de manter demonstrado o impasse relativo ao bem, afastando-se, assim, o cômputo do prazo.

Torna-se claro que a mera tolerância de que o outro cônjuge permaneça residindo no imóvel não induz a ocorrência de usucapião. A tal respeito, Cristiano Vieira Sobral assim enfatiza (PINTO, 2014):

Deve ficar esclarecido que aquele que sai do lar sem abandonar a família, não pode ser punido pelo instituto em comento. Assim, o cônjuge ou companheiro que saiu do lar e deixou o outro no imóvel urbano, acaba tolerando tal fato, aplicando-se a regra contida no art. 1.208 do CC, que dispõe: “Não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade”.

Partindo de tal premissa, considerando inclusive a relevância do instituto e os impactos dele provenientes, a análise interpretativa a respeito do abandono do lar deve ser objetiva e cautelosa. A respeito de tal precaução, o enunciado n.º 499, aprovado na V Jornada de Direito Civil, em 2011 (V JORNADA…, 2012), evidenciou claramente tal rigor:

A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito ‘abandono do lar’ deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais,tais como assistência material e dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião.

A partir daí, parece claro que não se pode admitir a aplicação dessa nova modalidade de usucapião nas situações que se tem evidente ocorrência de atos de violência praticados por um dos cônjuges ou companheiros com a finalidade de retirar o outro do lar conjugal, não sendo, neste caso, possível se visualizar a figura do abandono/descumprimento dos deveres conjugais necessários para a subsunção da norma. 

Além disso, também não há qualquer debate no tocante à culpa pelo afastamento domiciliar para fins de influência quanto a usucapião a favor de um ou de outro consorte. Deveras, nos termos da ementa doutrinária, o requisito do abandono do lar deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somando à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável.

No que concerne o tópico relativo ao direito intertemporal, doutrina majoritária enfatiza que, por se tratar de uma nova modalidade de usucapião, a contagem do prazo estabelecido (2 anos) deve ocorrer a partir da vigência de tal instituto, exercendo, nesta situação, direta proteção ao direto adquirido, previsto no art. 5, inciso XXXVI, da CF/88 e no art. 6 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Foi exatamente neste contesto que se aprovou o enunciado n.º 498, da V Jornada de Direito Civil (V JORNADA…, 2012), prevendo que “A fluência do prazo de 2 anos, previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada, tem início com a entrada em vigor da lei 12.424/11”. 

E é nesta mesma linha o entendimento jurisprudencial de nossos tribunais, os quais contribuem em demasia para a compreensão do instituto face aos vários casos concretos que desembarcam no judiciário, conforme se vê (V JORNADA…, 2012):

Direito de família. Divórcio litigioso. Apelação. Usucapião familiar. Art. 1.240-A do Código Civil. Aplicação retroativa. Impossibilidade. Recurso desprovido. O art. 1.240-A do Código Civil não possui aplicação retroativa, porque comprometeria a estabilidade das relações jurídicas. (TJMG, Apelação Cível 1.0702.11.079218-2/001, Rel. Des. José Carlos Moreira Diniz, j. 11.07.2013, DJEMG 16.07.2013).

Apelação cível. Divórcio. Justiça gratuita. (...). Usucapião de bem familiar. Exegese do art. 1.240-A do Código Civil, incluído pela lei 12.424, de 2011. Contagem do prazo de dois anos anterior à vigência da lei. Impossibilidade. (...). 2 O termo inicial da contagem do prazo de dois anos para aplicação da usucapião por abandono familiar e patrimonial do imóvel comum é a data do início da vigência da lei que instituiu essa nova modalidade de aquisição dominial. (...). (TJSC, Apelação Cível 2013.008829-3, Itajaí, 2.ª Câmara de Direito Civil, Rel. Des. José Trindade dos Santos, j. 31.05.2013, DJSC 07.06.2013, p. 191).

Ao que se percebe, não restam dúvidas de que a apuração do prazo para a garantia do direito à usucapião deve considerar o início de vigência da norma, qual seja, 16 de junho de 2011, observando, neste caso, o direito adquirido.

Além de tais pontos, outro detalhe surgido a respeito do texto do art. 1.240-A do Código Civil foi a respeito do termo “ex-cônjuge” e “ex-companheiro”, o qual denotaria uma interpretação de que somente seria possível a aplicação do instituto no caso de formalização de divórcio ou de dissolução de união estável. A tal respeito, necessário foi a adição do enunciado 501, também da V Jornada de Direito Civil (V JORNADA…, 2012), o qual compreendeu que “As expressões ‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro’, contidas no art. 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio”.

Desta forma, apenas a separação de fato já é o bastante para subsunção da norma. Com tal entendimento, privilegia-se situações fatídicas nas quais os cônjuges, embora desvencilhados de qualquer obrigação conjugal, deixam de promover a devida formalização por meio do divórcio ou da dissolução da união estável existente. Neste ponto, novamente é possível verificar a prevalência pelo atingimento da função social da propriedade, tão consagrada em nosso ordenamento jurídico.

Também se debruçou a respeito da consagração do termo “posse direta”, prevista no art. 1240-A do Código Civil, sob o argumento de que se seria esta a mesma compreendida no art. 1.197 do mesmo Diploma.

Como se sabe, o art. 1.197 do Código Civil (BRASIL, 2002) prevê que “a posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto”.

Passando pelo dispositivo transcrito, doutrina majoritária tem entendido pela não observância deste no caso da usucapião familiar sob o argumento de que o imóvel pode ser ocupado por pessoa da família do ex-cônjuge ou ex-companheiro e, neste caso, ainda assim seria possível a usucapião, o que restaria em conflito, caso se observasse o teor do art. 1.197 do código civil. A tal respeito, Flávio Tartuce assim descreve (TARTUCE, 2019):

Na mesma V Jornada de Direito Civil concluiu-se que “o conceito de posse direta do art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código” (Enunciado 502 da V Jornada de Direito Civil). Isso porque o imóvel pode ser ocupado por uma pessoa da família do ex-cônjuge ou ex-companheiro que pleiteia a usucapião, caso de seu filho, conforme consta do próprio dispositivo. Em casos tais, pelo teor do enunciado e na minha opinião doutrinária, a usucapião é viável juridicamente.

Já nos direcionando ao término do estudo dos aspectos pontuais sobre a usucapião familiar, resta ainda tecer comentário a respeito da competência para julgamento de tal pedido. Em razão da proximidade do instituto da usucapião familiar com o próprio direito de família, questionamentos surgiram a respeito da competência para apreciação de tal modalidade de usucapião, havendo um verdadeiro conflito de entendimentos, ora defendo ser a Vara Cível tal análise, ora afirmando ser da Vara de Família.

A doutrina tem caminhado no sentido de entender ser competência da Vara de Registro Públicos ou da Vara Cível a apreciação de tais pedidos, ainda pelo fato de ser comum, nesses tipos de processo, a alegação da presença não só de uma das modalidades de usucapião. Flávio Tartuce é salutar ao definir tal questão (TARTUCE, 2019):

Assim, é usual que a parte alegue não só a usucapião familiar, mas também a usucapião ordinária e a extraordinária, pela presença de requisitos cumulativos, de uma ou outra categoria. A configuração ou não de seus elementos é melhor apreciada pelo Juízo Cível do que pelo Juízo da Família, na minha opinião.

Na jurisprudência, tal situação já vem sendo objeto de apreço, conforme se pode verificar (SÃO PAULO, 2013):

Sucessões da Comarca. Processamento de pedido de ‘Usucapião Familiar’ (art. 1.240-A do Código Civil). Instituto que visa à legitimação de domínio de imóvel. Ação real. Existência de instituição familiar que é apenas um dos requisitos cumulativos previstos em lei. Questão que não refere ao estado das pessoas. Efeitos registrários. Arts. 34 e 37 do Código Judiciário de SP. Varas da Família e Sucessões que detêm hipóteses de competência restritas. Tutela de caráter exclusivamente patrimonial, afastando a competência do Juízo Especializado. Conflito julgado procedente, para declarar a competência do MM. Juízo da Vara Cível. (TJSP, Conflito de Competência 0180277-60.2013.8.26.0000, Franca, Câmara Especial, Rel.ª Claudia Grieco Tabosa Pessoa, j. 09.12.2013, Data de registro: 12.12.2013).

De toda forma, quanto a este último ponto elevado, é importante enfatizar que não se trata de entendimento pacífico, existindo decisões judiciais em sentido contrário, tal como nas situações em que a usucapião é alegada como matéria de defesa em ações de divórcio ou dissolução de união estável. Ou, ainda, nas hipóteses concretas em que se diverge sobre a presença ou não de união estável, a quali nfluenciará na resolução de pedido de usucapião, situações que trarão a competência para Vara de Família.

Verdade é que diversos pontos conflitantes merecem ser analisados e, quiçá, regulamentados pelo legislador. A existência de pontos conflitantes, muitas vezes, depende do árduo trabalho doutrinário e da compreensão do julgador a luz dos princípios basilares de nosso ordenamento jurídico, garantindo, não só a função social da propriedade e o direito à moradia, como também a garantia da dignidade da pessoa humana.

De todo modo, nem de longe pode se desconsiderar a relevância que essa nova modalidade de usucapião apresentou ao ordenamento jurídico. Situações que antes se desenrolavam por anos a fio, agora, passam a ser solucionadas após 02 anos, desde que presentes os demais requisitos previstos na lei. Tal permissivo legal garante vantagens não só à figura do cônjuge abandonado, mas também dos filhos do casal, os quais já sofrem as mazelas da separação dos pais, satisfazendo, também neste ponto, de maneira cristalina, a função social da propriedade.

4. CONCLUSÃO

Frente ao estudo realizado, é possível verificar que a nova modalidade de usucapião inserida no ordenamento jurídico por meio da lei 12.424/11, denominada de usucapião familiar, trouxe verdadeira estabilidade às dinâmicas familiares nas quais é imputado a um dos cônjuges, em razão do abandono promovido pelo outro, as obrigações decorrentes do convívio familiar.

Analisando os contornos da lei e da própria intenção do legislador, torna-se claro que o instituto objetiva a promoção da dignidade das pessoas, assegurando-lhes o mínimo existencial, quando privilegia a função social da propriedade o direito à moradia daquele que foi compelido a assumir, em caráter exclusivo, os deveres de assistência material e imaterial da entidade familiar, os quais, pela própria previsão normativa vigente, deveriam ser objeto de partilha por ambos os cônjuges ou companheiros.

Conforme se percebe, na maioria absoluta dos casos o instituto se insere em cotidianos de famílias de baixa renda, surtindo relevante efeito garantidor do direito à moradia e da dignidade de pessoal humana. 

De todo modo, ao passo em que o legislador cria tal proteção jurídica, ele também traz à tona diversas discussões jurídicas e, por conseguinte, considerável instabilidade e insegurança, uma vez que a aplicação do instituto, por descrever conceitos abstratos, chancela diferentes compreensões. 

Discussão inicial a respeito da possibilidade de aplicação do instituto em relações homoafetivas foi, a posteriori, afastada frente ao reconhecimento de todos os direitos e garantias inerentes a relação conjugal e de união estável a casais do mesmo sexo. 

No mesmo trilhar, ponto importante ficou a cargo da configuração do “abandono do lar”, requisito indispensável para a subsunção da norma. Também neste ponto, por obra da doutrina e da jurisprudência, entendeu-se pena necessidade de se ter verdadeira conduta omissiva ou desidiosa por parte do cônjuge que se retirou da vida familiar. Neste ponto, é claro, ficará a cargo do judiciário analisar se, naquele caso concreto, houve ou não conduta incuriosa por parte do ex-consorte. 

De toda forma, mesmo diante de tal subjetividade jurisdicional, tem-se que algumas situações colocam por fim qualquer discussão a respeito do abandono do lar, tal como a notificação realizada pelo ex-consorte, o ajuizamento de ação de divórcio, partilha de bens e alimentos e o ajuizamento de ação de dissolução da união estável até então existente.

Outro detalhe surgido a partir da norma foi a discussão a respeito do foro competente para sua apreciação. Dada a familiaridade do instituto em comento com o próprio direito de família, questionamentos surgiram a respeito da competência para sua apreciação, ora se defendo ser competente a Vara Cível, ora se afirmando ser a Vara de Família.

Como visto, entendimento dominante na doutrina é de ser competência da Vara de Registro Públicos ou da Vara Cível a apreciação de tais pedidos, ainda pelo fato de ser comum, nesses tipos de processo, a alegação da presença não só de uma das modalidades de usucapião. A exceção fica a cargo da cumulação de tal pedido com outros pedidos de direito de família, tal como divórcio, alimentos, guarda, etc. Neste último caso, a competência fica com a Vara da família. 

Certo é que, com as análises casuísticas promovidas pelo judiciário ao passar dos anos, cada vez mais se verificará entendimentos sedimentados a respeito dos questionamentos interpretativos havido em razão da norma, delimitando-se a forma com que essa modalidade de usucapião irá se configurar, e como os seus requisitos serão, de fato, preenchidos, afastando-se a insegurança jurídica que possa existir a tal respeito.

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Diego Fabriny Siqueira Sabino
Servidor Público do Estado de Minas Gerais - Especialista em Políticas e Gestão de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde. Sócio da Sabino Advogados.

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