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H. L. A. Hart e o direito como a união de regras primárias e secundárias

O objetivo do texto é apresentar uma tese central da teoria positivista de H. L. A. Hart, qual seja, a tese do Direito como a união de regras primárias e secundárias.

20/10/2022

Hart dedicou três capítulos de seu livro O Conceito de Direito para apontar as deficiências supostamente1 contidas na Teoria Imperativista do Direito da forma como concebida por John Austin. Foi para, entre outras coisas, resolver essas deficiências que Hart concebeu uma tese central de seu pensamento: o Direito como a união de regras primárias e regras secundárias.2 Inclusive, para o autor, reside nessa combinação aquilo que Austin pensou ter descoberto a partir da noção de Direito como ordens coercitivas emanados do soberano, a saber, a chave para a Ciência do Direito.3

Aqui não será realizada uma análise detalhada das críticas que Hart fez a Austin. O que importa saber é que, segundo Hart, a Teoria Imperativista do Direito falha em sua explicação daquilo que é o Direito, e falha principalmente porque os elementos sobre os quais ela foi construída, isto é, as noções de ordens, obediência, hábitos e ameaças “[…] não incluem, e não podem originar, pela sua combinação, a ideia de uma regra, sem a qual não podemos esperar elucidar mesmo as formas elementares de direito”.4  Nesse sentido, Hart entendia ser necessário um novo começo, uma nova teoria, e foi exatamente isso o que ele buscou fazer ao introduzir na noção de sistema jurídico a ideia de regras secundárias.

Existem, pois, de acordo com Hart, basicamente duas espécies de regras quando falamos de um sistema jurídico: as regras primárias e as regras secundárias. As primeiras são regras de conduta, são regras que impõem um padrão de comportamento a ser seguido por aqueles a elas submetidos – a exemplo são as regras penais. As segundas, por sua vez, são parasitárias5 com relação às primeiras, sobretudo porque são responsáveis por regular o modo válido de criação e alteração de regras primárias. Com efeito, enquanto as regras primárias impõem obrigações, as regras secundárias outorgam poderes, públicos ou privados, a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, que então passam a possuir a competência para criar, modificar ou extinguir as regras primárias.6 Para entender melhor a importância dessa diferenciação, imperioso compreender como e por que as normas secundárias surgem.

Hart imagina uma sociedade primitiva, cujo sistema jurídico comporta somente as regras primárias de obrigação. Um sistema jurídico como esse apresenta três principais problemas. O primeiro deles é a incerteza no que se refere à identificação, conteúdo e alcance das regras existentes. Na medida em que os indivíduos não têm para onde recorrer para solucionar controvérsias em torno da validade e/ou da interpretação das regras de obrigação, já que a criação de um procedimento legislativo ou a atribuição de poderes a uma autoridade constituída dependem de uma espécie de regra diferente das contidas no sistema, o primeiro problema é a incerteza.7

O segundo problema é o caráter estático do sistema. Como existem apenas regras que estabelecem condutas obrigatórias a serem seguidas pelos indivíduos, não existe qualquer meio apto a introduzir modificações deliberadas no sistema, de forma a adaptá-lo às mudanças sociais, e isso porque a possibilidade de tais alterações pressupõe a existência de regras que confiram poderes legislativos a um órgão ou autoridade. O terceiro problema é a ineficácia. Como não existe uma instância responsável por resolver em definitivo as controvérsias geradas da aplicação das regras primárias aos casos concretos, as disputas para saber se uma determinada regra foi violada ou não, ou sela ela é válida ou não, são insolúveis.8

Para Hart, a solução para cada uma dessas deficiências é a introdução das regras secundárias no sistema, sendo que ele pensa em três regras secundárias, uma responsável por lidar com cada  deficiência: a) a regra de reconhecimento, para lidar com o problema da incerteza, que por ser de tamanha importância não só para a teoria de Hart, mas para o positivismo jurídico como um todo, será aprofundada em sequência; b) as regras de modificação, para lidar com o problema da estaticidade, que são as regras que atribuem a pessoas ou órgãos legislativos o poder de criar, extinguir e alterar as regras primárias e estabelecem os procedimentos que devem ser seguidos para tanto;      c) as regras de julgamento, responsáveis por lidar com o problema da ineficácia da pressão social para garantir a aplicação do Direito, que são as regras que conferem autoridade e o poder de decidir a determinados indivíduos, bem como estabelecem o procedimento que deve ser por eles seguido.9 

Então, quando Hart disse que na união das regras primárias e secundárias reside a chave para a Ciência do Direito, ele buscou chamar atenção para o fato de que a introdução no sistema das regras secundárias é capaz de elucidar os principais conceitos que constituem a estrutura do sistema jurídico.10  Inclusive, para o autor, a correção das deficiências de um sistema primitivo a partir da noção de regras secundárias é um dos passos que marcam a passagem do mundo pré-jurídico para o mundo jurídico, “[…] uma vez que cada um desses remédios [as regras de reconhecimento, de modificação e de julgamento] traz consigo muitos elementos que vão permear o direito: os três remédios em conjunto são sem dúvida o bastante para converter o regime de regras primárias naquilo que é indiscutivelmente um sistema jurídico”.11  Exatamente por isso é comum se dizer que para Hart “[...] o Direito não é composto apenas por regras que impõem deveres e por regras que conferem poderes, mas é, ele mesmo, fundado por elas”.12

A regra de reconhecimento,13 criada por Hart para solucionar o problema da incerteza do Direito, é, assim como as demais regras secundárias, uma metaregra, isto é, é uma regra sobre regras, mas em um sentido específico: a regra de reconhecimento define os critérios que devem ser satisfeitos pelas outras regras para que elas adquiram o caráter de juridicidade. Segundo Hart, “Onde quer que uma tal regra de reconhecimento seja aceita, tanto os cidadãos particulares como as autoridades dispõem de critérios dotados de autoridade para identificar as regras primárias de obrigação”.14

Tais critérios, contudo, não são necessariamente simples e/ou fáceis de serem identificados, especialmente nos sistemas jurídicos modernos: pode ser a referência a algum texto dotado de autoridade, como uma Constituição; pode ser a referência a algum ato praticado pelo legislativo, como a promulgação; pode ser, ainda, a referência a costumes ou a precedentes judiciais. Além disso, nada impede uma combinação entre critérios, tal como uma regra de reconhecimento que considera válida toda regra promulgada pelo Parlamento e compatível com o texto constitucional em vigor. Ademais, a regra de reconhecimento normalmente não é expressa enquanto tal. A sua existência fica demonstrada pela forma como as regras primárias são identificadas pelas autoridades do sistema, notadamente pelos tribunais.15

Com efeito, a existência de um sistema jurídico em uma dada comunidade depende diretamente do comportamento das autoridades perante a regra de reconhecimento; em particular, depende que elas a aceitem16  como um padrão vinculante a ser obrigatoriamente seguido na identificação das regras primárias de obrigação. O motivo pelo qual a regra de reconhecimento é aceita e aplicada é irrelevante – se por motivos morais, políticos, pessoais etc. O importante é que ela e as regras por ela validadas sejam observadas pelos oficiais do sistema.17

Ainda sobre a relação entre as autoridades do sistema e a regra de reconhecimento, afirma Kramer que não necessariamente existe uma regra de reconhecimento unívoca e reconhecida da mesma forma por todos os oficiais do sistema, até mesmo porque se a regra de reconhecimento pressupusesse uma consenso total por parte dos oficiais do sistema seríamos obrigados a concluir que nunca existiu e jamais vai existir um sistema jurídico. Em verdade, divergências quantos aos critérios que estão contidos na regra de reconhecimento, ou sobre qual deles deve prevalecer em caso de conflito, são comuns e inevitáveis. Ocorre que, para que essas divergências não coloquem em xeque a própria noção de regra de reconhecimento, elas devem recair sobre os critérios que se encontram na regra, e não sobre ela própria.18

Além de ser a norma última do sistema, visto sua existência não depender de nenhuma outra regra social ou jurídica, dentre os critérios que compõem a regra de conhecimento existe um que é superior aos demais. E ele é assim considerado em razão de as regras primárias identificadas por meio dele serem válidas ainda que conflitem com regras que foram identificadas a partir da referência a um outro critério. Por exemplo: imagine que em um determinado sistema a regra de reconhecimento possui como critério supremo a compatibilidade das regras com a Constituição. Nesse sistema, eventual conflito entre a promulgação da lei pelo Legislativo (um outro critério de validade) e a sua inconstitucionalidade será resolvido pela invalidação da lei, já que ela não foi validada pelo critério máximo presente na regra de reconhecimento, qual seja, a compatibilidade com o texto constitucional.19

Agora, qual a natureza da regra de reconhecimento? Se, para Hart, existem basicamente duas espécies de regras, quais sejam, aquelas que impõem deveres e aquelas que conferem poderes, em qual dessas categorias está a regra de reconhecimento? Embora Hart não seja claro quanto a este ponto, a primeira hipótese parece ser a que mais se adequa ao seu pensamento, e isso porque caso pensarmos a regra de reconhecimento enquanto uma regra de confere poderes seríamos obrigados a concluir que ela é, em verdade, uma regra de alteração – ela confere poderes a pessoas ou grupo de pessoas, que passam então a possuir competência legislativa para modificar o sistema. Confirmando essa interpretação, afirma Neil MacCormick que a teoria de Hart sobre a existência de uma da regra de reconhecimento “[…] é uma teoria a respeito de uma regra sobre standards que os juízes são obrigados a observar”.20 Podemos dizer, então, que a regra de reconhecimento impõe ao oficiais do sistema o dever de aplicar todas e apenas as regras primárias de obrigação por ela validadas.

Em uma palavra final, a noção de regra de reconhecimento é importante não só para a compreensão da teoria do Hart, como também representa aquele que é o pilar básico do positivismo jurídico: a ideia de que existem testes “[...] convencionais, sobre os quais os funcionários de um sistema concordam, para a determinação de quais regras fazem parte do sistema jurídico e quais não fazem”.21  Essa afirmação, por sua vez, nos leva a uma outra tese fundamental do positivismo jurídico descritivo: não só é possível, mas também recomendado, que aquilo que o Direito é seja diferenciado daquilo que ele deve ser. Uma coisa é o Direito válido; outra coisa é a avaliação moral sobre esse Direito válido.

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1 Supostamente pois é objeto de controvérsias a fidelidade da descrição que Hart faz da teoria de Austin, o que acaba por prejudicar em certa medida a solidez e a justeza de suas críticas. Essa, contudo, é uma outra questão, que não será aqui analisada. Recomendamos conferir LOBBAN, Michael. John Austin. In.: SPAAK, Torben; MINDUS, Patricia. (Ed.) The Cambridge companion to legal positivism. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.

2 Para entrar em contato com algumas críticas a essa concepção e ao modo como ela é explorada por Hart, bem como com algumas propostas de correção/adaptação, ver MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Tradução de Cláudia Santana Martins. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 141-164.

3 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 91. 

4 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 90.

5 Em Hart, o termo parasita deve ser lido de uma forma técnica, no sentido de que o conteúdo das regras secundárias depende da existência de outras regras no sistema.

6 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 91.

7 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 102.

8 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 102-103.

9 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 104-108.

10 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 91-92.

11 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 103.

12 “[...] the law is not only composed of rules that impose duties as well as confer powers, but founded on them as well.” Em SCOTT, Shapiro. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 80.

Aqui, optamos por explorar o conceito de regra de reconhecimento fornecido por Hart em O Conceito de Direito. Tal noção, porém, sofreu profundas modificações com o passar dos anos, notadamente através do trabalho de positivistas jurídicos como Joseph Raz, Jules Coleman, Matthew Kramer e Schott Shapiro.

14 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 111.

15 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 111-113. 

16 Neste ponto, relevante chamar atenção para aquilo que Hart denominou de aspecto interno das regras que, em linhas gerais, consiste em uma atitude crítico-reflexiva de submissão assumida pelo indivíduo perante o comportamento exigido pela regra. Ver HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 65-70.

17 RAZ, Joseph. Practical reason and norms. New York: Oxford University Press, 1999, p. 146.

18 KRAMER, Matthew H. The Legal Positivism of H.L.A. Hart. University of Cambridge Faculty of Law Research Paper nº. 11/2019. Disponível em . Acesso em 03 jun. 2021, p. 16-17.

19 HART, H. L. A. O conceito de direito. Pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz e tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p. 117-121.

20 MACCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Tradução de Cláudia Santana Martins. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 157.

21 BIX, Brian H. Teoria do direito: fundamentos e contextos. Tradução de Gilberto Morbach. 1. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 66.

Bernardo Strobel Guimarães
Doutor em Direito. Professor da PUC/PR. Advogado

Lucas Sipioni Furtado de Medeiros
Especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito pela Academia Brasileira de Direito Constitucional - ABDConst

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