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O “orçamento secreto” e “orçamento PIX” – Análise histórica, jurídica e política

A análise jurídica nos leva a uma prospecção de ordem política no sentido de que as emendas de relator devem ser mantidas nas próximas Leis de Diretrizes Orçamentárias e Leis Orçamentárias Anuais, com uma certa tendência de perpetuação no âmbito de nossa sociedade, independentemente do Presidente que venha a ser eleito.

19/10/2022

Introdução

No dia 24 de setembro de 2022 foi realizado debate entre os candidatos à Presidência da República. Um dos assuntos que foi repetidamente citado entre os participantes foi o “orçamento secreto”. Poucas horas após, o assunto era um dos mais pesquisados na internet, e ainda assim permanece sendo efetivamente pouco conhecido e entendido  pela população brasileira.

Já tendo transcorrido três anos da aprovação das emendas impositivas (EC 100 - 2019) e praticamente dois anos da aprovação daquilo que se acostumou chamar de “orçamento secreto” (Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO de 2021), se percebe a existência de um vultoso volume de recursos sendo destinado pelos parlamentares a vários Municípios do Brasil. Um volume também vultoso de recursos acabou não sendo efetivamente apropriado pelos Municípios em decorrência da incapacidade destes entes de cumprir os requisitos formais para o efetivo recebimento e apropriação destes recursos.

O parlamento brasileiro, se apercebendo desta dificuldade de cumprimento dos requisitos formais aprovou então a Emenda Constitucional 105 de 2019, a qual inseriu no ordenamento jurídico uma nova espécie de emenda, a qual vem sendo popularmente chamada de “emendas pix”, por permitir o repasse de recursos financeiros diretamente ao ente federado beneficiado, independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere, sendo que estes recursos pertencerão ao ente federado no ato da efetiva transferência financeira. Nesta modalidade o dinheiro chega ao ente sem a necessidade de projetos ou o  cumprimento de maiores formalidades burocráticas

Se percebe, portanto, que o assunto é central no atual contexto político e também da administração pública.

Ao mesmo tempo em que o assunto encerra toda esta importância e centralidade no contexto social e político, o fato de os entes não conseguirem cumprir os requisitos formais para efetivamente se apropriarem dos recursos financeiros é elemento suficiente, por si só, para demonstrar o quão complexa é a legislação orçamentária.

Não apenas a comunidade como um todo, mas mais em específico também a comunidade jurídica não consegue compreender: (a) a exata extensão de cada qual dos conceitos anteriormente arrolados; (b) os reflexos recíprocos causados entre eles; (c) a repercussão política da utilização destes instrumentos. 

Uma série de outras questões também se coloca, e podemos arrolar algumas, as quais nos propomos a responder ao longo deste artigo, segundo o nosso ponto de vista, mas com o devido abalizamento técnico-jurídico. São elas:

  1. (a) historicamente houve, no Brasil, algum outro episódio semelhante onde o parlamento tivesse tamanhos poderes em relação ao orçamento público?
  2. se o “orçamento secreto” é tão pernicioso, como o Supremo Tribunal Federal ainda não adotou nenhuma providência para fazer cessar este mal para a sociedade como um todo?  
  3. o “orçamento secreto” rouba recursos de áreas como saúde e educação? 
  4. os recursos repassados através do “orçamento secreto” não podem ser objeto de auditoria? 
  5. na eventual eleição de Lula como Presidente da República, o “orçamento secreto” tende a ser revogado? 

O presente artigo tem, portanto, o objetivo de abordar todo este ferramental do orçamento público, mas com o declarado intuito de fazer, ao final da leitura, que qualquer cidadão compreenda razoavelmente a importância destes instrumentos na atividade política e também como os parlamentares exercem influência por meio desta, também na sua vida quotidiana. É igualmente objetivo deste artigo responder aos questionamentos anteriormente arrolados, de maneira a trazer conhecimento para a comunidade jurídica e também aos demais cidadãos neste importante momento da história do país.

Histórico das emendas impositivas e do orçamento secreto

Do artigo “As emendas parlamentares como novo mecanismo de captura do Orçamento.” (Hartung, P., Mendes, M., & Giambiagi, F. (2021). Revista Conjuntura Econômica, 75(09), 20-22) podemos extrair um histórico da aprovação destes instrumentos orçamentários:

  1. em março de 2015, foi aprovada a Emenda Constitucional (EC) 86, que fixou uma cota mínima obrigatória de emendas individuais. Desde então, um valor correspondente a 1,2% da receita corrente líquida (RCL) da União passou a ser destinado a uma cota de emendas, a ser distribuída entre os parlamentares. A efetiva execução dessas despesas, que antes dependia de disponibilidade de recursos, passou a ser obrigatória. Ainda que a Emenda 95, do teto de gastos, aprovada posteriormente, tenha abrandado a indexação dessas emendas (mudando de percentual da receita para correção pelo IPCA), a obrigatoriedade permaneceu; 
  2. em junho de 2019, a Emenda Constitucional 100 aumentou a dose de emendas obrigatórias, ao conferir esse status às emendas de bancadas estaduais. Agora, mais uma parcela, correspondente a 1% da RCL, se tornaria obrigatoriamente gasta nessas emendas. A indexação proposta será mantida até 2022, ano em que o reajuste anual do valor passará a ser feito pelo IPCA;
  3. em dezembro de 2019, a Emenda Constitucional 105 permitiu o uso de emendas individuais para transferir dinheiro diretamente para estados ou municípios, sem vinculação a projeto ou atividade alguma;
  4. a LDO que ditou as regras para o Orçamento de 2020 agravou substancialmente a captura do Orçamento por interesses privados-paroquiais, ao ressuscitar a “emenda de relator”, usada na época dos tristemente famosos “anões do Orçamento”, objeto de um rumoroso escândalo no já longínquo ano de 1993. O relator voltou a ter poder para alterar parcela grande das dotações, o que é um enorme retrocesso; e, finalmente, 
  5. a LDO que fixou as regras para o Orçamento de 2021 veio a ampliar a prática da transferência direta. Pela Emenda Constitucional 100, somente as emendas individuais poderiam ser alocadas para transferências diretas. Agora, também as de bancada poderão dar origem a tais transferências.

Foram criadas dotações genéricas, que são distribuídas de forma pouco transparente entre os parlamentares da coalizão política dos dirigentes do Congresso. Torna-se então muito difícil acompanhar quem indicou qual despesa. O procedimento foi apelidado pela imprensa de “orçamento secreto”.

Nos últimos anos, foram feitas quatro emendas à Constituição Federal - a emenda 86 de 2015 e as emendas 100, 102 e 105. Com estas mudanças na Constituição as emendas individuais, de comissão e de bancadas se tornaram impositivas, ou seja, de pagamento obrigatório. Foi neste momento, ou seja, quando o orçamento se tornou impositivo que as emendas do relator passaram a receber o aporte de um maior volume de recursos.

Nas leis de Diretrizes Orçamentárias de 2016 a 2018 foram veiculadas novas regras de impositividade, dessa vez para as emendas de bancada estadual (tipo de emenda onde o conjunto de parlamentares de cada Estado decide a destinação de recursos de forma conjunta).

“.....na análise da LDO 2020 (Lei Federal Nº 13.898/2019), o relator-geral do orçamento formulou um projeto substitutivo incluiu as emendas de comissão permanente (marcador RP8) e de relator geral (marcador RP9). Embora aprovados os dispositivos pelo Congresso Nacional, após o envio ao Presidente da República, vetou parcialmente (Veto Nº 43/2019). Depois, os marcadores R8 e R9 foram restabelecidos após votação de projeto de lei da Presidência da República (Lei Nº 13.957/2019) (NOGUEIRA, 2021, p.60).”1

Como problema identificado em relação às emendas, podemos mencionar:

No caso das emendas individuais, de comissão e de bancada, o site SIGA Brasil, do Senado Federal, disponibiliza um painel para acompanhamento. É possível saber quem fez, qual o valor, o objetivo e se as emendas já foram pagas.

Já nas emendas do relator não há essa possibilidade de controle público.2

Arrolado, portanto, o histórico da construção do ferramental orçamentário que atualmente se encontra em vigor, e também o diagnóstico que leva à adjetivação do mesmo como sendo um “orçamento secreto”.

Da Constituição Federal de 1946

Mesmo tendo realizado a reconstrução histórica, se mostra oportuna a análise do contexto existente na Constituição Federal de 1946 para traçar uma correlação com o atual momento. A CF de 1946 foi editada após o período denominado de “Estado Novo”, ditadura comandada por Getúlio Vargas no período compreendido entre 1937 e 1946.

A Constituição de 46 forneceu os instrumentos para uma atuação independente do Congresso na política orçamentária e os parlamentares se organizaram para fazer valer esta autonomia.4

Se percebe que o momento político anterior (1937/1946) influenciou fortemente a formação da Constituição de 1946. Neste mesmo artigo o autor ainda menciona: “a não ser que o legislativo se tornasse um locus efetivo de exercício do Poder, a perspectiva dos grupos localizados ao centro e à centro-direita do espectro ideológico era a de incorrer em perdas relevantes no que diz respeito ao processo decisório da República”. Analisando então a distribuição de responsabilidades entre o Executivo (que tinha a prerrogativa de iniciativa legislativa) e o Legislativo no que diz respeito ao processo orçamentário, arrola as características seguintes:

  1. Em primeiro lugar, a tramitação da lei orçamental orçamentária era bicameral, iniciando-se na Câmara, ao contrário do que ocorre hoje em dia, com tramitação unicameral em comissão mista e votação no Congresso.
  2. Em segundo lugar, não havia a figura do contingenciamento as despesas podiam ser automáticas e provocadas.
  3. Em terceiro lugar, os legisladores podiam evitar, recorrendo a vários instrumentos procedimentais, a manipulação dos prazos por parte do presidente para impor suas preferências ao Congresso.
  4. Em quarto lugar, durante o regime de 1946-1964 os legisladores mantinham considerável poder de criação de despesas.
  5. Finalmente, não era permitido ao presidente vetar parcialmente a lei orçamentária.5

A correlação que se pode estabelecer entre aquele momento da história do Brasil, com as características anteriormente delineadas, e o presente momento é no sentido de que quando o Parlamento entende que está tendo a sua importância diminuída em relação ao Poder Executivo, acaba por adotar medidas que permitam fazer com que a influência política junto à sociedade fique um pouco mais equilibrada, restabelecendo-se assim o equilíbrio de forças políticas entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

Por fim, o estudo demonstra também os impactos trazidos por este quadrante histórico, os quais têm também importância para a análise da questão posta neste artigo:

É conhecida a tese segundo a qual o Legislativo na república de 1946 se tornara um verdadeiro “engenho da inflação” dada a sua propensão a produzir gastos sem a correspondente preocupação em financiar a despesa.5

A análise da história recente também é útil para demonstrar que existiram sim outros momentos onde o Parlamento já teve maior influência na elaboração da legislação orçamentária, tal como está a ocorrer na atualidade. Respondido então o primeiro dos questionamentos (a - historicamente houve algum outro episódio semelhante onde o parlamento tivesse tamanhos poderes em relação ao orçamento público?).

O posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação ao assunto

Imprescindível para a elaboração de um contexto correto e adequado do assunto é a análise do posicionamento do Supremo Tribunal Federal em relação a estes instrumentos orçamentários que vêm sendo denominados de “orçamento secreto”. Isto porque a Corte tem o poder de suspender a validade e eficácia das leis e dos atos normativos regulamentadores destas caso entenda que os mesmos não estão de acordo para com o texto constitucional.

A questão chegou ao STF através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 854. Nesta ADPF a Ministra Rosa Weber concedeu efeito suspensivo para os fins de determinar, quanto ao orçamento dos exercícios de 2020 e de 2021, que seja dada ampla publicidade aos documentos encaminhados aos Órgãos e entidades federais que embasaram as demandas e/ou resultaram na distribuição de recursos das emendas de relator-geral (as RP-9), bem como, quanto ao orçamento do exercício de 2021, a suspensão da execução dos recursos orçamentários oriundos da rubrica orçamentária RP 9, até o final julgamento da  ADPF.

A concessão da liminar foi fundamentada no entendimento da aplicabilidade à situação do conceito de “estado de coisas inconstitucional”, ou seja, situação que demonstra a existência de relevantes falhas estruturais e ausência de políticas públicas eficientes, a exigir a adoção de medidas amplas pelos Poderes do Estado. Pinçamos alguns dos trechos principais que abalizaram a concessão da liminar:

15. A controvérsia posta diz com a análise da compatibilidade dos procedimentos legislativos e executivos pertinentes às emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual com os ideais republicanos da transparência e do controle social dos gastos públicos.

.......

Até o exercício financeiro de 2019, as despesas oriundas de emendas do relator não possuíam indicador de classificação orçamentária próprio, de modo que as despesas incluídas no projeto de lei orçamentária por esse instrumento passavam a integrar a lei orçamentária sem que houvesse qualquer elemento individualizador capaz de distinguir essa específica modalidade de despesa das demais categorias de programação.

.......

Somente no exercício financeiro de 2020, a lei orçamentária anual passou a contar com identificador de despesa próprio para as emendas do relator, em conformidade com o disposto na Lei nº 13.898/2019 (LDO 2020), que, inovando quanto a esse aspecto, instituiu o código de classificação orçamentária RP 9, por meio do qual são especificadas as dotações pertinentes às emendas de relator.

.......

Os resultados desse exame foram revelados pelo Tribunal de Contas da União no julgamento do TC 014.922/2021-5, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, j. 30.6.2021, em cujo âmbito foi aprovado o parecer prévio sobre as contas do Presidente da República referentes ao exercício de 2020.

.......

Outro aspecto enfatizado pelo Tribunal de Contas da União foi o comprometimento do regime de transparência na realização de despesas públicas ante a ausência de instrumentos de accountability sobre as emendas do relator:

.......

Nesse cenário de ausência de divulgação dos critérios objetivos e de instrumento centralizado de monitoramento das demandas voltadas para a distribuição das emendas de relator-geral (RP-9), fica comprometida a transparência da alocação de montante expressivo do orçamento da União.

.......

A distribuição de emendas parlamentares por dezenas de ofícios e planilhas não se demonstra compatível com o arcabouço jurídico-constitucional. Não é razoável supor que emendas parlamentares sejam alocadas – no ente central que deve ser exemplo para toda a Federação – a partir de dezenas de ofícios, sem que sejam assegurados dados abertos em sistema de registro centralizado que permitam a transparência ativa, a comparabilidade e a rastreabilidade por qualquer cidadão e órgãos de controle. A realidade identificada não reflete os princípios constitucionais, as regras de transparência e a noção de accountability, razão pela qual deve ser objeto de recomendação.”

.......

21. Os fatos apurados pelo Tribunal de Contas da União revelam o descaso sistemático do Congresso Nacional e dos órgãos centrais do Sistema de Orçamento e Administração Financeira do Governo Federal com os princípios orientadores da atuação da Administração Pública, com as diretrizes da governança, do controle interno e da transparência das ações governamentais e com a participação social ativa na promoção da eficiência da gestão pública e do combate à corrupção.

.......

As emendas do relator, após aprovadas, passam a integrar o orçamento como uma dotação conglobada ou complessiva, na qual todas as despesas previstas nessa dotação estão atribuídas, indiscriminadamente, ao próprio relator-geral do orçamento, muito embora a alocação de despesas nessa rubrica orçamentária resulte, na realidade, de acordos parlamentares celebrados entre diversos membros do Congresso Nacional.

Diferentemente do sistema existente para as emendas individuais e de bancada, a definição de onde serão aplicados os recursos ocorre internamente, sem possibilidade de controle por meio das plataformas e  sistemas de transparência da União na internet.

.......

25. Em suma, há uma duplicidade de regimes de execução das emendas parlamentares: o regime transparente próprio às emendas individuais e de bancada e o sistema anônimo de execução das despesas decorrentes de emendas do relator.

.......

Por essa razão, as emendas do relator, conforme noticiam as matérias jornalísticas produzidas nos autos, receberam a denominação de “orçamento secreto”, “orçamento paralelo” ou “superpoderes do relator”, considerado estarem sujeitas a regime operacional sem transparência e de reduzida capacidade de fiscalização institucional e popular.

.......

Cuida-se de uma rubrica orçamentária envergonhada de si mesma, instituída com o propósito de esconder por detrás da autoridade da figura do relator-geral do orçamento uma coletividade de parlamentares desconhecida, favorecida pelo privilégio pessoal de poder exceder os limites de gastos a que estão sujeitos no tocante às emendas individuais, em manifesto desrespeito aos postulados da execução equitativa, da igualdade entre os parlamentares, da observância de critérios objetivos e imparciais na elaboração orçamentária e, acima de tudo, ao primado do ideal republicano e do postulado da transparência no gasto de recursos públicos.

Desta forma, por entender que o modelo de execução financeira e orçamentária das despesas decorrentes de emendas do relator viola o princípio republicano e transgride os postulados informadores do regime de transparência no uso dos recursos financeiros do Estado a Ministra Rosa Weber, como já foi dito, concedeu efeito suspensivo determinando a suspensão da execução dos recursos orçamentários oriundos da rubrica orçamentária RP 9.

Entre a data da concessão da liminar e a deliberação pelo colegiado do STF sucedeu-se então a edição, pelo Congresso Nacional, do Ato Conjunto nº 01/2021 e a Resolução nº 02/2021-CN, dispondo sobre procedimentos para assegurar maior publicidade e transparência à execução orçamentária das despesas classificadas com o indicador RP 9 (despesas decorrentes de emendas do relator). Houve também a edição do Decreto nº 10.888/2021 por parte do Poder Executivo da União, por meio do qual se busca dar cumprimento à decisão do STF, criando instrumentos para assegurar a publicidade e a transparência das comunicações realizadas entre os órgãos, fundos e entidades do Poder Executivo federal e o Relator-Geral do orçamento sobre a execução de recursos decorrentes de emendas parlamentares.

Toda a instrução processual trouxe à baila também informações por parte do Presidente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, onde estes asseveraram: (a) ter adotado todas as medidas possíveis, no âmbito de suas respectivas esferas de competências, para dar cumprimento à publicidade determinada pela decisão de deferimento de liminar. Estas autoridades ressaltaram ainda que (b) que a decisão acabou por ocasionar a paralisação de diversas obras e serviços públicos, fruto da programação financeiro-orçamentária aprovada em lei pelo Congresso Nacional, embaralhando o planejamento da ação estatal e a implementação de políticas públicas, em prejuízo dos destinatários finais dos gastos públicos, in casu, os cidadãos, e em prejuízo para as empresas fornecedoras de equipamentos ou obras já contratados com recursos do RP-9, dentre outras repercussões.

Editados, portanto, estes novos atos normativos, e também com estas novas informações, o processo foi então submetido à análise colegiada por parte do STF. Com este novo cenário, a decisão proferida pelo Plenário da Corte está posta então nos termos seguintes:

14. Por ora, entendo acolhível o requerimento formulado pelos Senhores Presidentes das Casas do Congresso Nacional apenas para afastar a suspensão da execução orçamentária do indicador RP (item “c” da decisão cautelar), considerado o potencial risco à continuidade dos serviços públicos essenciais à população, especialmente nas áreas voltadas à saúde e educação, conforme explicitado na Nota Técnica Conjunta 8/21.6

Assim, seja por: (a) entender que as providências adotadas tanto pelo Poder Legislativo quanto pelo Poder Executivo no sentido de dar uma razoável publicidade às emendas do relator atendem os princípios orientadores da atuação da Administração Pública, com as diretrizes da governança, do controle interno e da transparência das ações governamentais e com a participação social ativa na promoção da eficiência da gestão pública e do combate à corrupção; (b) por considerar o vulto dos valores empenhados e a essencialidade das ações governamentais financiadas por essas dotações, entendeu por bem o STF em  revogar a medida cautelar anteriormente concedida, permitindo a continuidade da execução dos recursos orçamentários identificados como RP 9 (emendas do relator-geral do orçamento). 

É, portanto, com base nestes atos normativos e na decisão do STF que se seguiu que, o “orçamento secreto”, “orçamento paralelo” ou mesmo os “superpoderes do relator” continuam vigorando no contexto normativo brasileiro.

Logo, podemos afirmar então que o STF analisou a questão, e assentou entendimento de que: (a) o “orçamento secreto” não está de acordo com os postulados informadores de um Estado Democrático de Direito, mas que as medidas adotadas pelos Poderes Executivo e Legislativo posteriormente à concessão de liminar na ADPF 854 trazem a situação a um patamar de atendimento mínimo à necessidade de publicização da informação; e (b) que atualmente suprimir as emendas do relator traria mais prejuízos à sociedade do que mantê-las, com as adequações que foram efetuadas (item anterior).

Respondida, portanto, a questão inicialmente delineada (se o “orçamento secreto” é tão pernicioso, como o Supremo Tribunal Federal ainda não adotou nenhuma providência para fazer cessar este mal para a sociedade como um todo?)

Onde são alocados os recursos do Orçamento Secreto

(c) o “orçamento secreto” rouba recursos de áreas como saúde e educação?

Como se viu anteriormente, os Poderes Executivo e Legislativo adotaram providências no sentido de dar publicidade à destinação de recursos por meio das emendas do relator-geral do orçamento. Estas foram, como já demonstramos, consideradas ao menos razoáveis por parte do Supremo Tribunal Federal. Logo, podemos então investigar se o “orçamento secreto” rouba (ou não) recursos de áreas tais como a educação e/ou saúde.

De uma breve análise das destinações, pode se verificar que saúde e educação são área que têm sido bastante prestigiadas pelas destinações orçamentárias, de maneira que destas informações podemos então responder que as emendas do Relator-Geral do orçamento, coloquialmente denominadas de “orçamento secreto” não roubam recursos da saúde e/ou da educação. Ao contrário, as emendas têm sido utilizadas como instrumento de destinação de recursos para estas áreas.

É fato público e notório que já houve a divulgação de vários desvios de recursos levados a efeito com valores oriundos do “orçamento secreto”, e isso nos leva, no ponto imediatamente seguinte, a outro questionamento, qual seja: os recursos repassados através do “orçamento secreto” podem (ou não) ser objeto de auditoria?

Por ora, apenas para fecharmos este tópico, é apenas de se registrar que outra fonte de informações acerca das destinações dadas às emendas que pode ser utilizada é o painel disponibilizado pelo Ministério da Economia e denominado de “Painel Parlamentar Brasil”7, onde podem ser identificadas as informações relacionadas às emendas, incluindo aquelas emendas do Relator-Geral do orçamento.

Os recursos repassados através do “orçamento secreto” não podem ser objeto de auditoria?

De início, conforme foi ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 854, o mecanismo das emendas do Relator-Geral do orçamento sofria de sérios problemas relacionados à possibilidade de as informações serem auditadas.

Após a aprovação de atos normativos e a adoção de providências tendentes a sanear, ao menos em parte, estas deficiências, é possível se afirmar que o “orçamento secreto” atende a patamares mínimos de publicidade, de onde se extrai, por consequência, a possibilidade de o mesmo vir a ser auditado.

Entretanto, a questão que merece ser registrada é a de que sob a ótica do ente que recebe os recursos, a emenda é uma dotação orçamentária que é incluída no orçamento deste ente (destinatário do recurso) por sugestão de um parlamentar.

Logo, este ente público deverá executar a despesa (compra de material ou de equipamento, por exemplo), de acordo com as normas vigentes relacionadas à necessidade de licitação e contratação. Esta atividade é totalmente passível tanto de controle interno (o próprio Órgão) quanto de controle externo, seja pelo Tribunal de Contas do Estado, seja pelo Ministério Público, ou ainda por meio de ação popular (qualquer cidadão).

Assim, ainda que na origem dos recursos exista um mecanismo de publicidade que atende apenas ao mínimo essencial no que diz respeito a critérios de publicidade e de auditabilidade (accountability), é de se ver que “na outra ponta”, ou seja, no endereço do ente destinatário dos recursos, não existe nenhuma concessão por parte da legislação em relação a estes critérios.

Assim, o bom funcionamento do sistema como um todo, incluídos aí os Tribunais de Contas e Órgãos do Ministério Público serve, ou, pelo menos, deveria servir, de instrumento de controle de eventuais ímpetos no sentido de levar a efeito uma má aplicação de recursos públicos.

Logo, a resposta ao questionamento colocado é afirmativa, ou seja, os recursos oriundos do “orçamento secreto” podem (devem) sim ser auditados, se não na origem, ao menos junto ao ente destinatário.

Na hipótese da eventual eleição de Lula como Presidente da República, o “orçamento secreto” tende a ser revogado?

Neste ponto é imprescindível fazer uma ressalva no sentido de que a abordagem é mais política e menos jurídica. Todavia, esta apreciação deflui quase que naturalmente da conjugação de todos os elementos informativos que foram trazidos à baila até o presente momento.

O estudo das características da Constituição Federal de 1946 e também o das alterações legislativas que vêm ocorrendo nos últimos anos no que tange à produção do orçamento público demonstra que o Congresso Nacional atua com forte espírito de corpo com o intuito de buscar preservar a sua importância política em paralelo ao Poder Executivo. O processo orçamentário é, sem dúvidas, uma das formas pelas quais este poder político se manifesta.

Dadas estas características, seja com a manutenção de Jair Bolsonaro como Presidente da República, seja com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para esta função, é pouco provável que o Congresso Nacional aceite, de maneira passiva, uma significativa diminuição na sua força política que é demonstrada à sociedade e à comunidade política através da alocação de recursos orçamentários, os quais podem ser direcionados às bases eleitorais de cada parlamentar.

Atualmente já é possível se afirmar que esta situação decorre menos da orientação política do candidato (e posteriormente Presidente) e mais da própria dinâmica da relação entre os Poderes da República. Mesmo o Supremo Tribunal Federal, que de início havia suspendido os efeitos do “orçamento secreto” recrudesceu nesta iniciativa, e admite, até os presentes dias, a utilização do instrumento. 

Assim, a análise jurídica nos leva a uma prospecção de ordem política no sentido de que as emendas de relator devem ser mantidas nas próximas leis de Diretrizes Orçamentárias e leis Orçamentárias Anuais, com uma certa tendência de perpetuação no âmbito de nossa sociedade, independentemente do Presidente que venha a ser eleito.

Conclusão

Apresentadas todas estas informações históricas, jurídicas e também políticas, esperamos ter trazido um pouco de conhecimento à comunidade brasileira como um todo. Esperamos que tanto para os operadores do Direito quanto os demais cidadãos tenham se aprofundado um pouco em relação a este tema (“orçamento secreto”), o qual tem tido papel de protagonismo no atual momento histórico pelo qual o País vem passando.

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1 RIBEIRO, Ana Carolina Cardoso Lobo. O orçamento republicano e as emendas parlamentares. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 150, p. 57-78, 2022.

2 Acessível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/05/12/tratoraco-entenda-o-suposto-orcamento-secreto-de-bolsonaro-que-devera-ser-investigado-pelo-tcu.htm 

3 Santos, Fabiano. A república de 46: separação de poderes e política alocativa. Carlos Ranulfo Melo, Manuel Alcántara Sáez. (Organizadores). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, pg. 41

4 Santos, Fabiano. A república de 46: separação de poderes e política alocativa. Carlos Ranulfo Melo, Manuel Alcántara Sáez. (Organizadores). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, pgs. 51/53

5 Santos, Fabiano. A república de 46: separação de poderes e política alocativa. Carlos Ranulfo Melo, Manuel Alcántara Sáez. (Organizadores). A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, pg. 66

6 Decisão proferida na ADPF 854 – Supremo Tribunal Federal – em 14/12/2021

7 Acessível em https://painelparlamentar.economia.gov.br/extensions/painel-parlamentar/painel-parlamentar.html

Marcelo Alberto Gorski Borges
Procurador Federal, Especialista em Direito Socioambiental pela PUC-PR, mestrando em Gestão Pública pela FGV-RJ, Ex-Presidente da Comissão de Advocacia Pública da OAB-PR e Procurador-Chefe da Procuradoria Federal no Estado do Paraná

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