As amplas e bem-sucedidas campanhas de combate ao tabagismo desenvolvidas nos últimos anos em território brasileiro e a consequente redução dos usuários de tabaco posicionou as indústrias tabagistas num cenário mercantil de difícil resolução: a comercialização de um produto absolutamente estigmatizado para um mercado consumidor em grande parte consciente acerca dos danos e perigos decorrentes de seu uso.
O cigarro tradicional, antes vendido como a representação da beleza e da jovialidade, imagem, inclusive, reforçada em época pelas agências publicitárias, mostra-se hoje um produto velho, antiquado, incapaz de cativar e aderir com eficiência às novas gerações. Restou às indústrias tabagistas, portanto, a árdua tarefa de desassociar suas marcas dos estigmas profundamente ancorados através das campanhas antitabagistas, o que se mostrou possível por meio da atualização de seus catálogos, voltados, por sua vez, aos públicos mais jovens.
O resultado foi um sucesso implacável: os chamados “cigarros eletrônicos” ou “vaporizadores” reverberaram em meio aos jovens. Ao contrário dos pálidos cigarros tradicionalmente comercializados, os cigarros eletrônicos são acompanhados de cores vibrantes, diversificada cartela de sabores, não carregam o mau cheiro habitual da queima do tabaco e, acima de tudo, são vendidos como uma opção supostamente menos prejudicial se comparada ao conhecido maço de cigarro.
Muito embora não haja quaisquer dúvidas sobre a adesão destes novos produtos pelo público, há de se pensar quais são os reflexos jurídicos, mais precisamente penais e tributários, decorrentes da comercialização dos cigarros eletrônicos à luz do ordenamento jurídico brasileiro.
A comercialização de cigarros eletrônicos, tipicamente chamados de “vaporizadores”, bem como os seus acessórios, trazem diversas e importantes consequências fiscais para os estabelecimentos que exercem essa atividade.
Neste sentido, como a atividade de comercialização desta mercadoria é ainda considerada ilícita tendo em vista a manutenção da proibição veiculada pela Anvisa na RDC nº 46/2009, as empresas que comercializam os cigarros eletrônicos não conseguem alinhar suas atividades ao que a legislação tributária prescreve, adentrando na contramão da legislação para tornar possível a operacionalização do negócio.
A título de exemplo: qualquer empresa no Brasil possui, dentre suas obrigações fiscais (principais e acessórias/deveres instrumentais), a emissão obrigatória de notas fiscais, seja quanto à entrada de mercadorias (compra) ou quanto à saída (venda), bem como devem escriturar as informações constantes da operação nos documentos fiscais exigidos, sobretudo a descrição e classificação da mercadoria vendida.
Neste caso, muitas das empresas que comercializam cigarros eletrônicos e seus acessórios não emitem notas fiscais ou, quando emitem, inserem nestas declarações falsas da operação, haja vista que a mercadoria não pode ser objeto de comercialização, bem como as operações comerciais não poderiam sequer constar nos documentos fiscais a fim de evitar o escancaramento da atividade ilícita à fiscalização.
Surge, então, a possibilidade de se sustentar a configuração de eventual crime contra a ordem tributária, observados os tipos penais previstos pelo artigo 1, incisos III e V da lei 8.137/90, os quais definem:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Embora aparente inequívoca a prática dos delitos fiscais mencionados, não se pode olvidar a necessidade prevista pelo caput da efetiva supressão ou redução de tributos enquanto condição à prática do delito fiscal. Neste sentido, ainda que o empresário ou comerciante pratique os elementos objetivos do tipo (falsificar/alterar nota fiscal ou negar/deixar de fornecer nota fiscal), deve restar demonstrada a efetiva redução ou supressão dos tributos a serem recolhidos, caso contrário, restará violado o princípio da legalidade penal.
Mas vale dizer: as repercussões criminais referentes à comercialização de cigarros eletrônicos não se esgotam nos delitos fiscais. Ao lado destes últimos, há de se mencionar a possibilidade de caracterização do crime de contrabando na modalidade equiparada, previsto pelo artigo 334-A, §1º, inc. IV do Código Penal. In verbis:
Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida:
§1o Incorre na mesma pena quem:
IV - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira;
§ 2º - Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.
Grosso modo, a prática do delito de contrabando equiparado previsto pelo art. 334-A, §1º, inc. IV do Código Penal consiste na utilização de mercadoria proibida em proveito próprio ou alheio, no curso de atividade comercial ou industrial, equiparada a estas últimas qualquer forma de comércio irregular, clandestino e exercido em âmbito residencial, conforme art. 334-A, §2º do Código Penal.
Uma vez proibida a comercialização de cigarros eletrônicos por meio da RDC nº 46/2009 editada pela Anvisa, restaria preenchida a norma penal em branco prevista pelo tipo penal em análise (“mercadoria proibida”) e, consequentemente, a inserção desta sorte de mercadoria no exercício de atividade comercial ou industrial para obtenção de eventual proveito conduziria à clara configuração do crime de contrabando equiparado.
Não devem escapar também desta discussão os efeitos propriamente tributários, isto é, os impostos e multas que deverão ser pagos em razão do não pagamento (total ou parcial) de tributos sobre a atividade para aquelas empresas que não emitem os documentos fiscais necessários à operacionalização do negócio ou, ainda, àquelas que emitem de forma inidônea.
Neste ponto, embora trate-se de mercadoria ilícita, há de se lembrar que no Direito Tributário vigora o princípio do pecunia non olet, de modo que a tributação é capaz de alcançar fatos jurídicos tributários ainda que considerados ilícitos. Não se deve confundir aqui, e é importante alertar, com o critério material de incidência, pois este sempre incide sobre fato lícito e obedece a conceituação de tributo prescrita no art. 3º do Código Tributário Nacional.
A tributação nesses casos é devida, portanto, pela subsunção do fato à norma. Isto é, o fato de vender mercadorias subsume-se à regra-matriz de incidência do ICMS, bem como o fato auferir lucro subsume-se à regra-matriz de incidência do IRPJ. Nota-se que o fato gerador de riqueza é ilegal, mas o fato imponível de vender mercadorias e auferir lucro é totalmente lícito.
Apresentado de outra forma, se numa eventual fiscalização conclua-se que o faturamento da empresa é maior do que apontam os documentos fiscais (inidôneos) apresentados, poderá ser lavrado auto de infração com o objetivo de recolher o montante faltante dos tributos devidos e a imposição da multa pertinente ao caso concreto.
É nesta esteira que merece ser trazida à baila o art. 75-A, §1º, alínea ‘c’, da lei 7.000/01, do Estado do Espírito Santo, o qual prescreve que nas faltas relativas ao recolhimento do imposto (ICMS), no todo ou em parte, além da obrigatoriedade de recolher o montante faltante, também será devida multa de 100% sobre o valor do imposto.
Ato contínuo, o §3º do mesmo dispositivo legal, no que tange às obrigações relativas à documentação fiscal, dentre os diversos cenários possíveis, poderá ser lavrado em auto de infração em face do contribuinte: i) multa de 30% sobre o valor da operação quando deixado de emitir o documento fiscal na forma da legislação; ii) multa de 50% sobre o efetivo valor da operação quando presente valor diverso da operação nos documentos fiscais; iii) multa de 50% sobre o valor da operação quando presente adulteração, vício ou falsificação de documento fiscal ou nele inserir elementos falsos ou inexatos.
Verifica-se, portanto, um emaranhado de consequências fiscais para os estabelecimentos que comercializam cigarros eletrônicos e congêneres, problemas que, inclusive, iniciam-se desde a formalização da empresa, pois como o objeto de mercancia é proibido, tais estabelecimentos, ao formalizarem a pessoa jurídica, inserem informações inexatas e fraudulentas quanto à atividade desenvolvida (CNAE), fornecendo informações falsas ou inexatas desde sua formalização até sua operação, ensejando uma constelação de diferentes ilícitos, sejam estes de natureza tributária ou até, em último caso, de ordem criminal.