As ideias do presidente Bukele se mostraram audaciosas, especialmente no que diz respeito à quebra de paradigmas, a fim de incluir a população no sistema financeiro. No entanto, inserir moeda digital como moeda de curso legal no país não é tão simples assim, especialmente quando os agentes econômicos são obrigados a aceitar a moeda como forma de pagamento em quaisquer transações financeiras (ALVAREZ Et. Al., 2022).
A experiência Salvadorenha até aqui apresentou diversos obstáculos, de ordem tecnológica, informacional, operacional, cultural, e relativa ao meio ambiente. Para melhor discutir esses desafios, eles são elencados em itens individuais.
Desafio #1:
Informação, meio de pagamento e ausência de suporte técnico
O primeiro desafio diz respeito ao tipo de carteira digital oferecida pelo governo – Chivo Wallet (carteira oficial do país). Essa carteira permite que os usuários negociem digitalmente bitcoin e dólares sem qualquer taxa de transação. Como forma de incentivo, os cidadãos que baixarem o aplicativo recebem do governo um bônus de US$ 30 em bitcoin. No entanto, foram relatadas inúmeras falhas técnicas na tentativa de uso da moeda digital. Uma das reclamações foi em razão da forma de acesso – os usuários possuem uma chave pública e outra privada, e se perderem a privada, por exemplo, não recuperam mais seu bitcoin (BRIGIDA, SCHWARZ, 2022).
Ao contrário das demais carteiras digitais, a Chivo não permite que seus usuários tenham a chave de seus bitcoins, o que torna uma carteira de custódia. Ao realizar as transações, os usuários devem informar seus dados pessoais, tornando as informações pessoais, públicas. Outras reclamações feitas entre os usuários da Chivo Wallet foram:
Cobranças não autorizadas no aplicativo, contas que foram bloqueadas, falhas nas transferências para outras carteiras e até mesmo roubo de identidade (ALVAREZ, ET. AL., 2022).
Ao que tudo indica, além da Chivo Wallet demonstrar falhas técnicas no sistema, parece caminhar contra os princípios básicos do bitcoin – sua descentralização. Isto porque o governo tem autonomia para congelar os fundos, se entender que for preciso. Ou seja, isso exclui a liberdade dos usuários em lidar com suas quantias e tornando-a centralizada (KALASHNIKOV, 2021).
À vista disso, os principais aspectos negativos encontrados nesse primeiro desafio são:
Inclusão financeira, uma vez que a maior parte da população não é bancarizada, e os custos decorrentes da utilização do meio de pagamento. Recentemente, numa pesquisa realizada por Alvarez, Argente e Patten (2022), os autores encontraram dados relacionados ao objeto em discussão:“Only one-third of the adult population in El Salvador owned a bank account at a financial institution in 2017 (CNIEF, 2020). This aligns with the results of our survey. We find that most transactions in the country are paid in cash—in fact, over 50% of people use only cash to pay for their expenditures. We also document that more than 70% of respondents are unbanked, and almost 90% of them do not use mobile banking. Figure 1 reports both findings. Users of Chivo Wallet are not required to own a bank account or a card, however, a pre-requisite to adopt chivo is to have access to a mobile phone and the internet. While the Population Census and Household Surveys in El Salvador ask households about cell phone ownership and access to internet separately, we surveyed respondents on whether they have access to a mobile phone with an internet connection. We find 64.6% of Salvadoreans have access to a mobile phone with internet” (ALVAREZ, Et. Al., 2022, p. 10)1.
Desafio #2:
Transparência na gestão dos recursos
O segundo desafio encontrado é a ausência de transparência na gestão dos recursos para a compra de bitcoins, fator que contribuiu para a baixa adesão à moeda (INVESTING, 2021). O banco Mundial também não mostrou interesse no projeto de implementação de bitcoin como moeda legal, em razão da falta de planejamento e ausência de transparência no projeto (MANCINI, Blocknews, 2021).
Dessa forma, a inexistência das informações em torno da “cibersegurança” e das questões financeiras do país, como por exemplo, “onde os fundos estão armazenados ou quem possui as chaves privadas do bitcoin” geram um cenário econômico negativo. E tendem a afastar o interesse não só dos salvadorenhos na adesão da moeda, mas dos investidores estrangeiros e mercados internacionais no investimento no país (PEREIRA, Decrypt, 2022, n.p).
Desafio #3:
Impactos no meio ambiente
Outro fator negativo são os impactos ambientais que a criptomoeda gera. A mineração de bitcoins é uma atividade que consome muita energia elétrica. A título exemplificativo, para verificar as transações realizadas pelos usuários, o sistema produz milhares de cálculos, e por consequência disso há um enorme consumo energético, o que resulta no aumento da emissão de carbono (ALMEIDA, 2021).
Importante acrescentar a informação obtida por Gabriel Silva dos Santos, em recente pesquisa acerca da ausência de regulamentação e normatização contábil de criptomoedas no Brasil:
“apenas a rede bitcoin consome um volume de energia maior que a de países inteiros como Argentina e Países Baixos. Conforme a pesquisa, a rede bitcoin consome 112,57 TWh (Terawatts-hora) por ano, um consumo maior que o consumo doméstico das Filipinas, país do sudeste asiático que consome que 93,35 TWh por ano, e também maior que os Países Baixos que consome 110,6 TWh (Terawatts-hora) por ano (DOS SANTOS, 2022, Apud CAMBRIDGE BITCOIN ELECTRICITY CONSUMPTION INDEX, 2021, p. 07).
Nesse sentido, GLATZ (2021) ressalta que “estudos recentes mostram que a queda de produtividade como consequência da crise climática é um dos fatores que faz como que milhares de salvadorenhos tenham passado a viver na precariedade e sido forçados a migrar” (GLATZ, 2021, n.p).
Dessa forma, a função do bitcoin como meio de pagamento, devido ao intensivo uso do poder computacional para validar as transações, demanda muita energia elétrica (fontes decorrem de carvão), gerando para a população uma externalidade negativa. Isso porque, a emissão de CO2 da atmosfera tende a ser maior com o uso do BTC do que seria se fosse utilizada uma moeda fiduciária.
Consequentemente, isso vai na contramão da agenda climática da COP (Conference of the parties), especialmente do compromisso que os países e empresas assumiram no intuito de redução da emissão de carbono na atmosfera. Por isso, o uso massificado de bitcoin como meio de pagamento pode exacerbar o impacto das mudanças climáticas.
Desafio #4:
Volatilidade da cotação da moeda
O quarto desafio é a instabilidade da moeda. De um modo geral, a volatilidade retrata as altas e baixas do mercado financeiro, ou seja, a variação dos preços. O desvio padrão é uma das formas mais usadas para quantificar a média de um ativo financeiro. Se hoje utilizarmos essa medida para cálculo de risco total, o bitcoin tem uma “volatilidade anual de 55%”, ou seja, é um ativo muito instável (PORTILHO, Exame, 2022, n.p).
Esse ativo financeiro faz parte de um mercado que ainda está em constante processo de maturação, por isso sofre influências externas em razão de causas tradicionais, tais como “oferta e demanda” (BRIGO, Prensa, 2021, n.p).
Esse ambiente de incertezas já restou comprovado, três dias após a entrada em vigor da lei do BTC. Os US$ 30 que o governo concedeu à população residente, como forma de incentivo no uso do aplicativo (Chivo Wallet), desvalorizou e chegou ao valor de US$ 26. Por isso, a volatilidade do bitcoin ainda é um impeditivo para a população utilizar a moeda (BRIGO, Prensa, 2021).
Diante desse cenário, “não há uma autoridade institucional/estatal para realizar sua emissão nem para garantir sua confiabilidade, sustentabilidade e estabilidade. Tudo isso é feito em uma combinação de energia, tecnologia e matemática”. (BRANCO, Jota, 2021, n.p).
Acrescido a isso, a população está isenta em relação à cobrança de impostos sobre os ganhos de capital auferidos através da moeda digital. No entanto, essa ausência de tributação poderá incentivar mais o uso da moeda para atividades criminosas, ou seja, lavagem de dinheiro. Tendo em vista que é muito mais fácil rastrear dinheiro do que moeda digital, e especialmente nesse caso, em que não há declaração dos informes recebidos e/ou repassados.
Considerações finais
O bitcoin, apesar de existir há quase quinze anos e ser dominante no mercado de criptomoedas, ainda é pouco utilizado como meio de pagamento. Para avaliar se a moeda digital poderia ser adotada massivamente caso governos a considerassem moeda de curso legal, este artigo avaliou as evidências do experimento recente de El Salvador na adoção de bitcoin como meio de pagamento no país.
Em geral, as informações disponíveis indicam que a adesão da moeda digital pela população salvadorenha é baixa – menos de 60% da população baixou o aplicativo; e somente 20% continuou a usar a Chivo Wallet, após gastarem o bônus de inscrição (ALVAREZ, Et. Al., 2022). Dentre as barreiras encontradas, destacam-se:
A má funcionalidade do sistema, carência de informações relativas ao uso e funcionamento da moeda digital, despesas relacionadas à aquisição da carteira, ausência de transparência nos recursos públicos, degradação ambiental e a alta volatilidade da moeda.
Se a mesma medida (moeda digital de curso legal) fosse aplicada no Brasil, teríamos, provavelmente, uma resposta similar ao que aconteceu em El Salvador. Isso porque também há alto grau de desbancarização na população, além de desafios com uso de tecnologia. Ainda, o investidor brasileiro tem um perfil conservador, tendo em vista que o investimento financeiro que os brasileiros mais fazem é a poupança. Finalmente, a moeda permanece apresentando volatilidade elevada, a despeito de ter cada vez mais adoção por investidores de varejo, instituições, empresas e governos.
Ao final, acredita-se que a melhor proposta para o uso das moedas digitais é a sua regulação, podendo vir a ser utilizadas como alternativas de meio de pagamento. No Brasil e em outros países, propostas Legislativas encontram-se em andamento, e a maioria visa a coibição de práticas ilegais, gestão de riscos e práticas de governança. A fim de garantir a maior eficiência dessas operações.
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1 Tradução livre da autora: “Apenas um terço da população adulta de El Salvador possuía uma conta bancária em uma instituição financeira em 2017 (CNIEF, 2020). Isso está de acordo com os resultados da nossa pesquisa. Descobrimos que a maioria das transações no país é paga em dinheiro – na verdade, mais de 50% das pessoas usam apenas dinheiro para pagar suas despesas. Também documentamos que mais de 70% dos entrevistados não são bancários e quase 90% deles não usam o mobile banking. A Figura 1 relata as descobertas. Os utilizadores da Chivo Wallet não são obrigados a possuir uma conta bancária ou cartão, no entanto, um pré-requisito para adotar o chivo é ter acesso a um telemóvel e à internet. Enquanto o Censo Populacional e as Pesquisas Domiciliares em El Salvador perguntam às famílias sobre a posse de telefone celular e o acesso à internet separadamente, nós pesquisamos se os entrevistados têm acesso a um telefone celular com conexão à internet. Constatamos que 64,6% dos salvadorenhos têm acesso a um celular com internet”.
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