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Da impropriedade do reconhecimento da sucessão empresarial presumida na ação executiva

A presunção do trespasse fraudulento, a fim de legitimar outra empresa como executada, desafia as garantias fundamentais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

17/10/2022

Nos tribunais brasileiros, não é raro encontrar situações nas quais os devedores, por intermédio de meios fraudulentos, furtam-se de sua obrigação de pagar. Isso gerou, e gera, em parte do judiciário, a dedicação sobejante em auxiliar os credores na satisfação dos créditos perseguidos nas execuções e nos cumprimentos de sentença.

Contudo, constatam-se situações nas quais os julgadores almejam tanto viabilizar a satisfação do crédito, que garantias constitucionais fundamentais são negligenciadas.

É o caso da comum decisão proferida inaudita altera pars, no processo de execução, que reconhece a sucessão empresarial irregular por presunção. Isto é, considera, presumidamente, que uma terceira empresa sucedeu irregularmente a empresa executada em suas atividades, incluindo-a como nova executada na ação, citando-a para pagar o crédito em 3 dias (art. 827, §1º, CPC), sem ao menos dar a ela um meio ou a oportunidade de defesa preliminar.

Tal situação é deveras preocupante, na medida em que, além de haver a limitação do contraditório e da ampla defesa da empresa supostamente sucessora, também configura a inadequação da decisão proferida, que analisa questão de mérito dentro do processo de execução, o que não é permitido pelo ordenamento jurídico pátrio.

Constitucionalmente falando, quando da provocação do Estado-juiz, o desenvolvimento de qualquer atividade jurisdicional deve respeitar impreterivelmente o devido processo legal, a fim de garantir aos interessados na solução judiciária a utilização de todas as alternativas de ataques e meios de defesa (art. 5, LIV, CF)1.

Nesse sentido, o contraditório e a ampla defesa são tidos como garantias fundamentais previstas na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 5, LV, CF), compondo os princípios norteadores do Direito Processual Civil brasileiro, conforme se nota nos arts. 9 e 10 do Código de Processo Civil, sendo que este último assim dispõe: 

"O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício2.

Sendo assim, é mister rever posições adotadas em desrespeito às garantias fundamentais supramencionadas.

Isso é dito porque, recentemente, o E. STJ no AgInt no REsp 1.837.435/ julgou como correto o reconhecimento presumido de sucessão empresarial irregular no processo de execução, inaduta altera pars, ainda em primeiro grau, amparando-se na existência de indícios suficientes para tanto:

“PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ART. 941, § 3º, DO CPC. RELEVÂNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO VENCIDO. SUCESSÃO EMPRESARIAL IRREGULAR. ELEMENTOS CONTUNDENTES CONSTANTES DAS DECISÕES DA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. AFASTAMENTO DA SÚMULA 7 DO STJ. REVALORAÇÃO DOS FATOS. [...] 2. A caracterização da sucessão empresarial não exige a comprovação formal da transferência de bens, direitos e obrigações à nova sociedade, admitindo-se sua presunção quando os elementos indiquem que houve o prosseguimento na exploração da mesma atividade econômica, no mesmo endereço e com o mesmo objeto social. Precedentes. 3. Na instância primeva, foi asseverada a ocorrência da sucessão empresarial "de fato" sem interrupção, ante a comprovação da continuidade, pela adquirente, da mesma atividade empresarial exercida pela sociedade alienante, no mesmo endereço e utilizando-se da mesma mão de obra e de todas as máquinas e equipamentos aesta pertencentes, em decorrência de um nada crível instrumento particular de comodato, registrando, ainda, o encerramento das atividades da sucedida e a incorporação de sua clientela pela sucessora"3.

O julgado supracitado tem origem na ação de execução de título extrajudicial 0019524-20.2005.8.26.0127 do E. TJ/SP, no qual foi deferida pelo Juízo de 1º grau, inaduta altera pars, a inclusão de uma terceira empresa no polo passivo da execução ante a presunção da ocorrência de sucessão empresarial irregular, aplicando-se o art. 779, II, CPC:

“A execução pode ser promovida contra: [...] os sucessores do devedor”.

Tal entendimento não é isolado, como se nota nos seguintes julgamentos (em datas longínquas e também em datas pretéritas):

TJ/SP, AI 2004980-34.2015.8.26.000, Rel. Des. Gilberto dos Santos, Julgamento: 28/04/16 e TJDFT, AI 20130020008062, Rel. Des. José Divino de Oliveira; AI 1106211620138260000, Rel. Des. Mario de Oliveira.

Porém, trata-se de questão complexa que desafia o devido processo legal, sendo sua aplicação digna de ressalvas.

Seguindo a linha dos julgados acima citados, a conclusão seria de que o contraditório e a ampla defesa seriam garantidos ao novo executado (sucessor) de maneira diferida por meio da possibilidade da oposição dos embargos à execução (art. 914, CPC).

Contudo, o executado incluído de inopino na execução, ou seja, o sucessor, não tem qualquer oportunidade de defesa prévia, sendo citado somente para pagar o valor executado no prazo de 3 (três) dias, sob pena de constrição patrimonial, só podendo exercer o contraditório com efeito suspensivo a partir da garantia do juízo (art. 919, §1º, CPC), ou seja, por meio de disposição de parte de seu patrimônio.

Tal consideração é de extrema gravidade, porque se está diante da situação na qual se permite a inclusão no polo passivo de um novo executado alheio ao título, por meio de decisão de mérito, dentro do processo executivo, fundamentada em uma presunção, dando ao executado a oportunidade de exercer seu direito fundamental ao contraditório e ampla defesa (embargos à execução) somente mediante disposição de parte de seu patrimônio, ainda que momentaneamente.

Guardando entendimento sobre as garantias fundamentais alhures mencionadas, aplicáveis ao caso em pauta, o Ministro Gilmar Mendes, no ARE nº 1.160.361/SP, defendeu ser essencial a participação das partes na fase de conhecimento para o reconhecimento de que determinada empresa deva compor ou não grupo econômico executado, ou seja, se é parte legítima para compor o polo passivo da execução, como assim prevê o art. 513, §5º, CPC.

Trazendo tal decisão ao tema em análise, por mais que o processo de execução (art. 771 e seguintes, CPC) não se confunda com o processo de conhecimento (art. 318 e seguintes, CPC), a decisão que reconhece (ou não) a sucessão empresarial irregular não conversa com a legalidade ao ser proferida dentro do processo de execução, ao passo que neste somente se analisa a regularidade do título executivo, citando os executados constantes no título para pagamento, não havendo possibilidade de prolação de decisão declaratória, reconhecendo legitimidade passiva em decorrência de sucessão empresaria irregular, pois essa é matéria que se confunde com o mérito.

Desta feita, a irregularidade da sucessão empresarial deveria, na verdade, ser discutida em incidente autônomo (desconsideração da personalidade jurídica inversa – art. 50, CC) ou por meio do processo de conhecimento (art. 785, CPC), oportunidade em que se instaura o contraditório e se permite a ampla defesa sem barreiras financeiras e patrimoniais, ou seja, limitadoras e prejudiciais ao possível executado.

Em suma, percebe-se a tendência dos tribunais brasileiros em reconhecer inaudita altera pars e presumidamente, mesmo no processo de execução, o trespasse irregular de empresa, atribuindo legitimidade passiva à terceira empresa considerada supostamente como sucessora. Porém, certamente existe importante discussão constitucional e processual sobre tal reconhecimento, notadamente sobre o respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, garantias constitucionais fundamentais, devendo os tribunais superiores voltarem os olhos com mais atenção ao tema.

____________

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 15 de agosto de 2022.

2 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 15 de agosto de 2022.

3 STJ, AgInt no REsp n. 1.837.435/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 7/6/2022.

Felipe Negreti de Paula Ferreira
Advogado no escritório Pádua Faria Sociedade de Advogados. Especialista em Direito Processual Civil pela USP e em Direito da Família e Sucessão pelo CERS.

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