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A atual discussão sobre prestação de serviços no processo do trabalho: um convite à má-fé

O entendimento majoritário na seara trabalhista reconhece a “atração” do ônus da prova em desfavor do réu quando este discute a existência de alguma prestação de serviço.

11/10/2022

Nos mais diversos aspectos da vida cotidiana, existe uma máxima que é do conhecimento da grande maioria das pessoas: quem alega, tem que provar. No campo jurídico não poderia ser diferente; e àquilo se dá o nome de ônus da prova.

No direito do trabalho, sobretudo no processo do trabalho, aquela regra é estampada no art. 818, da CLT. Em sua redação original, esse dispositivo era bastante direto quando prescrevia: “a prova das alegações incumbe à parte que as fizer”.

Atualmente, vigora a redação dada pela lei 13.467/17, que, além de manter a objetividade do referido artigo, conferiu-lhe maior clareza: “O ônus da prova incumbe: I - ao reclamante, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao reclamado, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do reclamante. Foram inseridas, ainda, normas para a distribuição dinâmica do ônus da prova.

Com efeito, existe uma situação muito peculiar, embora comum, na qual a atribuição daquele ônus é feita de forma, no mínimo, ilógica. Para ilustrá-la, tomemos a seguinte situação hipotética.

Um reclamante ingressa com uma demanda trabalhista e alega que trabalhou por determinado tempo para o reclamado, sem, contudo, receber as verbas que lhe seriam devidas (no valor total de XYZ, por exemplo). Tendo alegado que trabalhou, como empregado, para o reclamado, o reclamante deverá produzir provas para comprovar a existência do vínculo empregatício (fato constitutivo de seu alegado direito à percepção das verbas trabalhistas não recebidas).

Devidamente notificado, o reclamado poderá apresentar sua contestação. Nela, deverá se manifestar sobretudo o que o reclamante narrou – princípio da impugnação especificada (CPC, art. 341 c/c CLT, art. 769) – e apresentar todas as matérias pertinentes para a sua defesa – princípio da eventualidade (CPC, art. 336 c/c CLT, art. 769)1. 

Aqui, chegamos ao ponto de inflexão desse exemplo. Vamos supor, e isto é o que realmente teria acontecido no mundo dos fatos, que aquele reclamante prestou mesmo serviços para o reclamado, que, por sua vez, não pagou tudo o que fora acordado verbalmente entre eles.

Independente dos serviços prestados, três coisas são certas aqui: houve a prestação de serviços; algum(ns) elemento(s) da relação de emprego não estava(m) presente(s) na relação jurídica; o reclamado pagou menos do que fora acordado entre eles (se era YZ, pagou Z, por exemplo).

De boa-fé, como todos devem se portar no processo judicial, o reclamado, em sua defesa, diz que o reclamante prestou, sim, serviços a si. Porém, afirmou que ele não trabalhou como empregado, mas como prestador de serviços – uma relação meramente civil –, sendo que ele, reclamado, estava devendo apenas Z (valor muito inferior ao XYZ apontado pelo reclamante).

O que acontece agora?

Segundo a jurisprudência dominante nos tribunais trabalhistas brasileiros2, haveria ali uma espécie de “inversão” do ônus da prova em desfavor do reclamado, porque a alegação de que o reclamante prestou algum serviço é um fato modificativo do direito do autor, o que promoveria a “atração” do ônus probatório para o réu.

Nesse caso, prevalece o entendimento segundo o qual o reclamado teria admitido a prestação de serviços. Logo, presume-se que essa prestação se submete às normas da CLT, cabendo ao reclamado a produção de provas em sentido contrário.

A princípio, essa (re)distribuição do ônus da prova pode ser elogiada. Isso porque é possível enxergar nela o respeito aos princípios da proteção e da primazia da realidade, que funcionam como importantes mecanismos de contrabalanceamento das forças envolvidas na relação entre empregado e empregador, sobretudo porque é cediço que os interesses deste último costumam ser impostos em desfavor do trabalhador.

Esse elogio, no entanto, não deve obscurecer um enorme problema do caso: aquela espécie de “inversão” do ônus da prova, além de não ter previsão legal – como ocorre, por exemplo, no direito do consumidor (CDC, art. 6º, VIII) – gera uma distorção terrível, capaz, inclusive, de levar as partes – ou apenas uma delas – a assumir posições contrárias à boa-fé processual.

Ora, se a parte reclamada na demanda trabalhista nega a existência de qualquer prestação de serviços pela parte reclamante, a esta incumbiria toda a carga probatória. Se, ao contrário, a parte reclamada resolve discutir a prestação de serviços alegada pela parte reclamante, atrairia para si toda a carga probatória.

Nesse esdrúxulo cenário, atribui-se a apenas a uma das partes todo o ônus da prova, desconsiderando a dialeticidade do processo – pois privilegia um monólogo no qual somente uma parte precisa (e precisa muito e sozinha) apresentar e provar seus argumentos –, desvirtuando a cooperação processual e pondo em xeque a própria boa-fé.

Aliás, cria-se uma situação, sobretudo para a parte reclamada, na qual seria mais vantajoso se afastar da verdade (pois a si não é admitida a negativa geral como defesa – CPC, art. 341, parágrafo único c/c CLT, art. 769) que se dispor à discussão dos fatos relacionados à prestação de serviços, pois, caso o faça, teria que suportar todos os ônus probatórios.

Há, aqui, uma estranha inversão do famoso ditado jurídico “ninguém pode se valer da própria torpeza”, pois, se a parte agir com a necessária e esperada boa-fé processual, assumiria todos os ônus da prova e teria sua atividade probatória restringida, em situação pior do que se a revelia tivesse sido decretada.

Na revelia, a parte reclamada deixa de comparecer à audiência designada (CLT, art. 844, caput), sendo-lhe aplicada a pena de confissão em relação à matéria de fato, o que não obsta a contestação da matéria de direito – inclusive com a admissão da peça de defesa trazida pelo advogado constituído (CLT, art. 844, §5º).

Por outro lado, ao iniciar ou adentrar a discussão sobre a prestação de serviços, contra a parte reclamada parece ser imposta uma penalidade maior que a confissão decorrente da revelia, porque será como se tivesse feito um “reconhecimento” da procedência do pedido relacionado à existência do vínculo empregatício.

Uma saída digna para esse imbróglio – que ainda não parece preocupar os tribunais – pode ser criada a partir da conjugação do princípio da cooperação processual e da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova.

Esperar que as partes cooperem para a resolução do litígio (CPC, art. 6º) não significa dizer que elas devam renunciar à defesa de seus interesses, nem que ajam ativamente para a produção de provas contra si mesmas. Exige-se, pelo contrário, que atuem efetivamente para que a lide não se prolongue em demasia, assumindo, cada uma, a responsabilidade pela (re)construção dos fatos relacionados ao caso concreto.

E é no caso concreto analisado que o julgador poderá aplicar a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, atualmente prevista na CLT no art. 818, §1º: “Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”

A partir dessa teoria, a parte que tem melhores condições para produzir ou indicar a prova a ser produzida para o esclarecimento de determinado fato deverá fazê-lo.

Voltando ao exemplo sobre a prestação de serviços, a parte reclamante estaria incumbida de demonstrar que trabalhou como empregada, enquanto a parte reclamada precisará comprovar que a prestação não se deu segundo os moldes celetistas.

É possível reparar que nessa situação nenhuma das partes será encarregada da produção de provas sobre fatos negativos – a parte reclamante não deverá demonstrar que não prestou serviços numa relação civil, nem a parte reclamada será responsável por comprovar que a prestação de serviços não se deu segundo as normas da CTL (como o faria segundo o entendimento prevalecente mencionado outrora).

Ademais, tratando-se de regra de instrução, como já está consolidado no processo civil3, o julgador, em decisão fundamentada, (re)distribuirá os ônus da prova antes da instrução processual, devendo, inclusive, adiar a audiência designada (CLT, art. 818, §2º) para que a parte possa se desincumbir de sua obrigação.

Dito isso, vale ressaltar que, requerida a aplicação da teoria citada, em caso de apreciação do pedido e indeferimento do julgador em sede de audiência, a parte interessada deverá pedir para que conste em ata seu “protesto”, com a menção ao requerimento e ao indeferimento, a fim de que possa recorrer no momento oportuno.

Assim, é imprescindível que os sujeitos que interpretam e aplicam o direito processual do trabalho superem a lógica reducionista de atribuição de todos os ônus para uma das partes, especificamente quando se estabelece a discussão sobre a natureza da prestação de serviços, promovendo-se a cooperação processual e  cessando a atual marcha rumo à destruição da boa-fé processual.

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1 Ambos os princípios admitidos no processo do trabalho por parte da doutrina, a exemplo de Carlos Henrique Bezerreira Leite em seu Curso de Direito Processual do Trabalho, 19ª Edição.

2 A título de ilustração, pode-se citar os seguintes julgados do TST: RR-1331-58.2015.5.09.0020, RR-100353-02.2017.5.01.0066, RR-1125-66.2011.5.04.0006, RR-10918-51.2015.5.01.004.

3 A título de ilustração, pode-se citar os seguintes julgados do STJ: REsp 1395254 / SC, REsp 802832 / MG e AgRg no REsp 1450473 / SC

Igor Rodrigues Santos
Advogado e pós-graduado em Direitos Humanos.

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