Migalhas de Peso

A hipervulnerabilidade do consumidor idoso

A condição especial do consumidor idoso o deixa mais suscetível às práticas abusivas no mercado de consumo, considerando as típicas debilidades que acompanham a idade avançada.

13/10/2022

No Brasil, a defesa do consumidor é direito fundamental preconizado na Constituição Federal, sendo nela igualmente apresentado como princípio conformador da ordem econômica. Por oportuno, destaca-se o quanto preconizado nos arts. 5º, XXXII e 170, V, ambos da Carta da República:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;”.

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[...]

V - defesa do consumidor;”.

Por seu turno, a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo é um dos indicativos da necessidade de sua proteção, exercida sobretudo por meio de intervenção estatal nas relações de consumo. Confira-se o quanto disposto no art. 4º, I, do CDC:

“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;”.

Ainda, não se pode olvidar que o processo de envelhecimento coloca o indivíduo em uma situação singular de vulnerabilidade, valendo destacar que o constituinte preceituou, no caput do art. 230 da Constituição Federal, que é dever da família, do Estado e da sociedade amparar as pessoas idosas, garantindo sua dignidade e o seu bem-estar. Veja-se:

“Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.

A partir da análise do aludido dispositivo, observa-se o princípio da proteção integral da pessoa idosa, o qual pode ser entendido como um feixe de direitos inerentes aos cidadãos em processo de envelhecimento, que diversamente dos direitos considerados fundamentais e reconhecidos a todas as pessoas, consubstanciam-se em pretensões relacionadas a um comportamento negativo (dever de abstenção de sua violação) e comportamentos positivos impostos à autoridade pública e todos os demais cidadãos, os quais deverão assegurar a citada proteção especial.

Pois bem, sob a óptica consumerista, tendo-se de um lado o fornecedor/prestador de serviços, e de outro a pessoa idosa como consumidora do serviço, evidencia-se a natural vulnerabilidade desta última.

É cediço que que a vulnerabilidade é tida como princípio básico no Direito do Consumidor, tendo como escopo essencialmente à proteção do consumidor, que é considerado, frente aos fornecedores, a parte mais fraca e vulnerável na relação. Ocorre que, além da condição de vulnerabilidade, alguns consumidores, por possuírem determinadas características, se tornam ainda mais vulneráveis (“hipervulneráveis”).

Sobre o tema, destaca-se o entendimento de Bruno Miragem1:

“[...] certas qualidades pessoais do consumidor pode dar causa a uma soma de fatores de reconhecimento da vulnerabilidade, razão pela qual se pode falar em situação de vulnerabilidade agravada, ou como também vem denominando a doutrina, hipervulnerabilidade do consumidor”.

Nesse cenário, da análise conjunta do Código de Defesa do Consumidor e do Estatuto do Idoso, incide a ideia de hipervulnerabilidade do idoso, que consiste no agravamento da tradicional condição de vulnerabilidade do consumidor, preconizada pelo já mencionado art. 4º, I, do CDC, mediante a verificação de condições pessoais especiais, a exemplo da idade avançada, referenciada no art. 39, IV, também do CDC. Veja-se:

“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: 

[...]

IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;”

O consumidor, por excelência, já é tido como vulnerável. Contudo, o consumidor idoso é portador de uma vulnerabilidade ainda maior, a qual lhe coloca em uma condição especial quando está envolvido com relações jurídicas de consumo.

A caracterização da hipervulnerabilidade do idoso é assim entendida por Cláudia de Lima Marques2:

“Efetivamente, e por diversas razões, há que se aceitar que o grupo dos idosos possui uma vulnerabilidade especial, seja pela sua vulnerabilidade técnica exagerada em relação a novas tecnologias (home banking, relações com máquina, uso necessário de internet, etc.); sua vulnerabilidade fática quanto à rapidez das contratações; sua saúde debilitada; a solidão de seu dia-a-dia, que transforma um vendedor de porta em porta, um operador de telemarketing, talvez na única pessoa com a qual tenham contato e empatia naquele dia; sem falar em sua vulnerabilidade econômica e jurídica, hoje, quando se pensa em um teto de aposentadoria único no Brasil de míseros 400 dólares para o resto da vida”.

A condição especial do consumidor idoso o deixa mais suscetível às práticas abusivas no mercado de consumo, considerando as típicas debilidades que acompanham a idade avançada (sejam elas físicas, emocionais, sociais ou econômicas), de modo a exigir o reconhecimento da sua vulnerabilidade extrema.

É cediço que o consumidor idoso, na condição de hipervulnerável, precisa de maior respaldo numa sociedade em que as transformações diárias são tantas, que a própria senilidade e o natural cansaço o deixam fragilizado nas relações de consumo no mundo moderno, carecendo, portanto, da proteção estatal e judicial.

A título de exemplo, serão citadas 2 (duas) situações muito comuns em que os idosos demandam uma proteção mais intensa, bem como melhor atenção do Estado nas formas de contratação, são elas contratos de planos de saúde e as relações havidas perante instituições financeiras.

Infelizmente, atualmente, comuns são os casos em que os planos de saúde impõem o cancelamento unilateral de apólice anterior, que muitas vezes perdurou por anos, de modo a forçar o idoso a contratar uma outra com valores exorbitantes, bem como correção vultosa em razão da idade.

Veja-se que, a premente necessidade de manter sua condição de beneficiário, faz com que o idoso se coloque na angustiante posição de sujeitar-se ao domínio das operadoras de planos de saúdo ou, caso contrário, não terá opção, senão render-se ao sistema público de saúde (sabidamente deficitário).

Ora, é lamentável observar que em tempos em que mais precisa de segurança, a pessoa idosa se vê abalada diante da impossibilidade financeira de continuar arcando com o adimplemento de seu plano de saúde, o que a deixa à própria sorte, em desrespeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e função social do contrato.

Sob a óptica consumerista, tendo-se de um lado a empresa operadora de plano de saúde como fornecedora, e de outro a pessoa idosa como consumidora do serviço, evidencia-se a natural vulnerabilidade da parte contratante. E isso não apenas por se tratar de contrato de adesão, no qual não se permite a discussão das cláusulas, mas sobretudo porque o consumidor, após atingir determinada idade, vê-se impedido do direito de permanecer coberto pelo seu plano em função dos aumentos impraticáveis, forçando, conseguintemente, o seu desligamento.

Diante de tal situação, o Superior Tribunal de Justiça reconhece o consumidor idoso como hipervulnerável:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. CONTRATO COLETIVO POR ADESÃO. FALECIMENTO DO TITULAR. DEPENDENTE IDOSA. PRETENSÃO DE MANUTENÇÃO DO BENEFÍCIO. SÚMULA NORMATIVA 13/ANS. NÃO INCIDÊNCIA. ARTS. 30 E 31 DA LEI 9.656/98. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA DOS PRECEITOS LEGAIS. CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR HIPERVULNERÁVEL. JULGAMENTO: CPC/15.

1. Ação de obrigação de fazer ajuizada em 27/11/17, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 24/9/19 e atribuído ao gabinete em 17/4/20.

2. O propósito recursal consiste em decidir sobre a manutenção de dependente em plano de saúde coletivo por adesão, após o falecimento do titular.

3. Há de ser considerado, à luz do disposto na Resolução ANS 195/09, que, diferentemente dos planos privados de assistência à saúde individual ou familiar, que são de "livre adesão de beneficiários, pessoas naturais, com ou sem grupo familiar" (art. 3º), os planos de saúde coletivos são prestados à população delimitada, vinculada à pessoa jurídica, seja esse vínculo "por relação empregatícia ou estatutária" (art. 5º), como nos contratos empresariais, seja por relação "de caráter profissional, classista ou setorial" (art. 9º), como nos contratos por adesão.

4. É certo e relevante o fato de que a morte do titular do plano de saúde coletivo implica o rompimento do vínculo havido com a pessoa jurídica, vínculo esse cuja existência o ordenamento impõe como condição para a sua contratação, e essa circunstância, que não se verifica nos contratos familiares, impede a interpretação extensiva da súmula normativa 13/ANS para aplicá-la aos contratos coletivos.

5. Em se tratando de contratos coletivos por adesão, não há qualquer norma - legal ou administrativa - que regulamente a situação dos dependentes na hipótese de falecimento do titular; no entanto, seguindo as regras de hermenêutica jurídica, aplicam-se-lhes as regras dos arts. 30 e 31 da lei 9.656/98, relativos aos contratos coletivos empresariais.

6. Na trilha dessa interpretação extensiva dos preceitos legais, conclui-se que, falecendo o titular do plano de saúde coletivo, seja este empresarial ou por adesão, nasce para os dependentes já inscritos o direito de pleitear a sucessão da titularidade, nos termos dos arts. 30 ou 31 da lei 9.656/98, a depender da hipótese, desde que assumam o seu pagamento integral.

7. E, em se tratando de dependente idoso, a interpretação das referidas normas há de ser feita sob as luzes do Estatuto do Idoso (lei 10.741/03) e sempre considerando a sua peculiar situação de consumidor hipervulnerável.

8. Recurso especial conhecido e desprovido, com majoração de honorários.

(REsp 1871326/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 1/9/20, DJe 9/9/20)

Notadamente, se o consumidor é considerando como vulnerável junto ao fornecedor, o consumidor idoso, tendo em vista ser mais suscetível à doença e, portanto, mais dependente dos serviços de assistência à saúde, apresenta uma hipervulnerabilidade perante as operadoras de planos de saúde.

Desse modo, considerando a hipervulnerabilidade do consumidor idoso junto às operadoras de planos de saúde, comuns são as decisões do Poder Judiciário que, por exemplo, obstam os reajustes abusivos das mensalidades, bem como impedem as rescisões unilaterais dos contratos.

Cabe ainda destacar as situações envolvendo instituições bancárias e idosos, novamente para que possa ficar demonstrada a pertinente situação de hipervulnerabilidade da citada categoria.

Importante salientar a situação dos empréstimos consignados, destacando os ensinamentos de Bruno Miragem3:

“[...] deve se ter em conta a vulnerabilidade agravada do idoso, em especial frente à realidade social dos baixos valores pagos pela Previdência Social, que fazem do recurso ao empréstimo consignado em folha de pagamento, muitas vezes, uma necessidade do consumidor idoso para atendimento de despesas ordinárias pessoais ou ainda, em vista da taxa de juros favorecida, como recurso para o atendimento das necessidades de parentes ou amigos próximos”.

Notadamente, com a redução da renda, e a consequente a diminuição da sua capacidade financeira, além do aumento das despesas decorrentes da idade, os consumidores idosos ficam, por exemplo, mais sujeitos à contratação de crédito (e, assim, sujeitos à condição de superendividamento), sendo, portanto, consumidores potencialmente vulneráveis em razão do aludido fator.

Cumpre salientar o entendimento jurisprudencial acerca da hipervulnerabilidade do idoso nas relações junto às instituições bancárias:

APELAÇÃO - APOSENTADA - CARTÃO DE CRÉDITO - RMC - AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO COM PLEITOS CUMULADOS DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA - RECURSO DA CASA BANCÁRIA DEMANDADA. 1. CONDUTA ABUSIVA DO BANCO - NULIDADE CONTRATUAL - REPETIÇÃO DE VALORES - Contrato de mútuo com desconto consignado em benefício previdenciário, porém, disponibilizado pela instituição financeira modalidade de cartão de crédito RMC (Reserva de Margem Consignável) - Banco requerido que não demonstrou a devida disponibilização de informação para que a aposentada tivesse subsídios que ensejassem decidir efetivamente pela modalidade ora contestada - Incidência do art. 51, IV do Código de Defesa do Consumidor – De rigor a reforma parcial do julgado, para, mantido o reconhecimento da nulidade da contratação, determinar não simplesmente a devolução, por parte da autora, do valor mutuado de forma singela, mas sim a readequação do contrato para a modalidade regular de empréstimo consignado, com recálculo do valor do débito e compensações com pagamentos efetuados. 2. DANOS MORAIS - Caso concreto que apresentam particularidades que levam ao reconhecimento de que acertada a sentença ao condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais - Autora, idosa aposentada - Instrumento contratual assinado a rogo, por pessoa de sobrenome distinto (não sendo, ao menos a princípio parente próximo da autora) - Banco que, como bem consignado na sentença, não comprovou a outorga de poderes por parte da autora, por meio de instrumento público - Autora, hipervulnerável, foi envolvida em uma situação da qual, pela análise de todo o quadro, não tinha a menor ideia do que se tratava e, desde 2016, mensalmente vê descontados valores de seus minguados proventos de inatividade (aposentadoria por idade), sem diminuição de sua dívida - Danos morais caracterizados - Verba fixada com moderação, em R$ 3.000,00, valor não mais do que suficiente aos fins a que se destina e que guarda consonância com as características do caso em análise - Recurso, no tema, desprovido. RECURSO PROVIDO EM PARTE.  (TJSP; Apelação Cível 1000259-20.2019.8.26.0484; Relator (a): Sergio Gomes; Órgão Julgador: 37ª Câmara de Direito Privado; Foro de Promissão - 2ª Vara Judicial; Data do Julgamento: 14/11/19; Data de Registro: 18/11/19)

Com efeito, a facilidade e o incentivo para a aquisição do crédito, somados à hipervulnerabilidade do consumidor idoso e a ausência ou omissão de informações pelas instituições financeiras, especialmente informações acerca dos riscos e ônus decorrentes da aquisição do crédito, são fatores preponderantes para conduzir o consumidor idoso à situação de superendividamento.

Desta feita, considerando a hipervulnerabilidade do consumidor idoso junto às instituições financeiras, comuns são as decisões do Poder Judiciário que, por exemplo, sopesam que, havendo dúvida quanto à interpretação dada às cláusulas contratuais, será feita a mais favorável ao consumidor, bem como ponderam a necessidade de recálculo dos valores devidos pelo consumidor.

Por todo exposto, é certo que os consumidores idosos demandam uma proteção mais intensa, bem como melhor atenção do Estado para algumas formas de contratação, em que a idade se apresenta como fator de vulnerabilidade mais acentuada. Como exemplo, observa-se a situação de contratos de planos de saúde e as relações havidas perante instituições financeiras.

Com efeito, a partir da análise de casos envolvendo o consumidor idoso junto as operadoras de planos de saúde e instituições bancárias, foi possível observar que há fórmulas para se conter abusos contratuais perpetrados contra a aludida categoria de pessoas.

---------

1 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 125.

2 MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Ed. RT, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 76.

3 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:  Revista dos Tribunais, 2014, p. 131

Mayara Barretti
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho - UNINOVE. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Universidade Nove de Julho - UNINOVE. Pós-graduada em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP

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